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quinta-feira, novembro 23, 2006

Cacaso e o poemão de todos nós




















Heloísa foi a primeira voz da "Academia" a tratar com respeito a geração mimeógrafo



Heloísa Buarque de Hollanda (*)


Mesmo inacessível por mais de 15 anos, a obra de Antônio Carlos de Brito, o Cacaso, não desapareceu do nosso panorama poético. Ao contrário, sua presença nos idos da década de 1970 continua sendo uma forte referência para os poetas da geração 1980/90. Talvez por causa disso, a atual edição de sua obra completa, em "Lero-Lero", não seja apenas a redescoberta do poeta Antônio Carlos de Brito, mas uma importante dívida saldada para a compreensão da poesia dos anos 70.

Poeta em tempo integral, ensaísta, letrista, desenhista, principal articulador e teórico da poesia marginal, Cacaso foi, antes de mais nada, personagem totalmente singular numa hora em que a poesia foi eleita como a forma de expressão predileta da geração que experimentou, de forma cabal, o peso dos anos de chumbo. Num certo sentido, Cacaso nos colocou uma armadilha interessante: pensar sua poesia sem pensar na sua vida é quase errado.

Sobre a personagem Cacaso, que começava insofismavelmente no layout que criou para si próprio, não posso evitar de citar Roberto Schwarz, que, com argúcia, fez o desenho mais definitivo que temos do poeta (e como pára-efeito, também de sua poesia):

"A estampa de Cacaso era rigorosamente 68: cabeludo, óculos John Lennon, sandálias, paletó vestido em cima de camisa de meia, sacola de couro. Na pessoa dele entretanto esses apetrechos de rebeldia vinham impregnados de outra conotação mais remota. Sendo um cavalheiro de masculinidade ostensiva, Cacaso usava a sandália com meia soquete branca, exatamente como era obrigatório no jardim-de-infância. A sua bolsa a tiracolo fazia pensar numa lancheira, o cabelo comprido lembrava a idade dos cachinhos, os óculos de vovó pareciam de brinquedo, e o paletó, que emprestava um decoro meio duvidoso ao conjunto, também".

Sabidíssimo, meio interiorano, meio irônico, ressabiado, conseguindo manter uma ambiguidade cortante, Cacaso foi fiel a esse personagem em todas as situações. Como poeta, como professor, como letrista, como amigo.

Quando escreve, por exemplo, o poema "Na Corda Bamba": "Poesia/ Eu não te escrevo/ Eu te/ Vivo/ E viva nós!", num poema que, à primeira vista, poderia ser classificado como um versinho "rápido e rasteiro", Cacaso mostra o que seria o traço distintivo do conjunto de sua obra. Ao escrever "Na Corda Bamba", o poeta não estava na certa defendendo uma posição ingenuamente vitalista nem mesmo pregando a gratuidade como valor poético. O poema, que se tornou um de seus best-sellers e foi dedicado a Chico Alvim, tem um sentido bem mais fino e ácido do que aparenta.

Cacaso era um aplicado teórico em tempo integral. A questão que levanta aqui - a gratuidade como ponto de partida e pressuposto da criação artística - é, na realidade, um problema que perpassou vários estudos do crítico-poeta. No artigo "Alegria da Casa", de 1980, diz: "O modernismo, para quem a criação é igual à realização, em ato, de um ideal, é portanto um esforço empenhado em prol da gratuidade, da autonomia das coisas e dos valores, um jeito de constranger para que a espontaneidade pudesse aflorar sem constrangimento, o que em si já configura um paradoxo".

Voltando ao emblemático poema de Cacaso, tudo indica que a aparente gratuidade proposta no poema coloca em pauta a contradição que inevitavelmente se esboça quando nos aproximamos de um poema "autenticamente marginal". Ou seja, quando o poeta marginal propõe uma quase coincidência entre poesia e vida, essa proposta poderia, no limite, resultar no desaparecimento da própria poesia. É a produção poética literalmente "na corda bamba" (que aliás dá nome não apenas ao poema, mas também ao livro), na qual o poeta marginal consegue equilibrar-se quase sempre com alguma dificuldade. Um caminho difícil e conflituado que pode ser entrevisto na própria trajetória da obra poética de Cacaso.

Em 1967, Antonio Carlos de Brito lança "Palavra Cerzida", um livro ainda muito tímido e dentro dos padrões literários do momento. Já "Grupo Escolar" (1974), uma edição que traz a marca da produção coletiva e semi-artesanal, mostra o poeta pressentindo outros caminhos, identificado com o grupo que integra a "Coleção Frenesi": Chico Alvim, Geraldinho Carneiro e Roberto Schwarz.

É interessante registrar que só em 1975, com "Beijo na Boca" e "Segunda Classe", Antônio Carlos de Brito passa a assinar Cacaso (1944-87). É esse o momento no qual definitivamente abandona o tom elevado e começa um duro trabalho de "desrepressão" da linguagem que se consolida com a publicação de "Na Corda Bamba" (1978) e "Mar de Mineiro" (1982).


É dessa época a intensificação de seu contato com os poetas mais novos, do grupo "Nuvem Cigana", como Charles, Chacal, Luiz Olavo Fontes, João Carlos Pádua, Guilherme Mandaro, Ronaldo Santos, Bernardo Vilhena e outros.


É também dessa época sua performance como o teórico e maior aglutinador da poesia marginal, articulando projetos, coleções, interpretando, criticando, até "explicando para os poetas o que eles estavam fazendo", como lembrou Charles em recente entrevista.


Nessa mesma época, começa a releitura sistemática do projeto modernista e a escrever seus ensaios mais complexos sobre o novo "surto poético" que fazia a cena dos anos 70. Exemplares são os artigos "Tudo de Minha Terra", "26 Poetas Hoje", "Coleção Capricho" ou mesmo o "Poeta do Outros", estudo inacabado sobre Chico Alvim. Incansável, Cacaso colocava a poesia marginal em perspectiva, punha questões em marcha, denunciava as mazelas da vida literária e acadêmica, como na polêmica que alimentou sobre o estruturalismo, muito em voga naquela hora.

Foi ainda nesse período, que começou a desenvolver seu grande insight sobre a poesia marginal, a tese do "poemão". Percebendo uma certa transitividade entre os autores, os assuntos e as atitudes, Cacaso começa a sistematizar a idéia de que cada poema marginal era, na verdade, parte de uma experiência mais geral e transcendente. Como se a poesia de cada um fosse parcela integrante de um mesmo poema maior, um poemão, que todos estivessem escrevendo juntos e cuja matéria era a experiência do período da repressão.


Insight que desenvolve com mais cuidado no artigo que deixou inédito sobre Chico Alvim. Dizia Cacaso: "Houve um momento em que a poesia tornou-se um banquete de todos". E observa como nesse movimento de produção, o peso maior é do coletivo, o que traz como contrapartida uma notável desindividualização da autoria, na qual o grande lugar-comum poético foi o poema curto, de registro direto e breve, em tom coloquial.


Essa questão da não-autoria e do poema curto foi experimentada diretamente em "Segunda Classe" (1975). Escrito durante uma viagem ao rio São Francisco em parceria com Luiz Olavo Fontes, "Segunda Classe" não tem nenhum poema identificado como tendo sido escrito por este ou por aquele poeta, construindo meticulosamente um eterno disfarçar da autoria.


Um ponto inexplicável na editoria de "Lero-Lero" é ter "corrigido" essa indefinição nomeando, em cada poema, seu "verdadeiro autor" e, por consequência, golpeando ao mesmo tempo o grande "leitmotiv" e a questão central de "Segunda Classe".


Outro problema desta edição, diga-se de passagem, belíssima e bem cuidada é a eliminação das ilustrações que o poeta havia incluído nas publicações originais. Os desenhos infantis de seu filho Pedro, em "Na Corda Bamba", o desenho da Massoca em "Segunda Classe" ou sua foto de matuto, de chapéu de palha, limpando a unha com um facão, enquanto, feliz, pitava um cigarrinho em "Mar de Mineiro". Imagens com valor-texto, claramente produzidas e estruturadas no conjunto de cada livro.


Voltando às questões da poética marginal que não fogem da mira de Cacaso, quero ainda apontar os conflitos que se apresentam quando o poeta trabalha assumidamente com os valores ingenuidade, gratuidade e espontaneidade como pontos de partida de sua criação poética.


No artigo "Alegria da Casa", Cacaso lembra que Manuel Bandeira chamava a atenção para a inexistência, na nossa poesia, de inspiração nacional, do poeta matuto, aquele cuja obra se confundisse com o assunto e ambos com o sertão. São precisamente esses valores modernistas que seriam examinados e trazidos para a poesia de Cacaso num sentido bastante diferenciado daquele realizado pelo concretismo poucos anos antes. No caso de Cacaso, esse resgate revestia-se, muitas vezes, do caráter de intervenção cultural e mostrava um viés estratégico.


A valorização do coloquial, do fato cotidiano, a sistematização do direito de errar como princípio mesmo da arte ressurgem agora com ênfase em interpretações visceralmente contextualizadas e historicizadas, definindo uma releitura, digamos, mais cultural do literário.


Por outro lado, a ênfase na gratuidade e na espontaneidade, que se tornaram bandeiras da produção marginal, apresenta seu lado paradoxal: a pressuposição inevitável do poeta como um ser simples, sem duplicidade, identificado consigo mesmo. O poeta matuto que Bandeira queria. Cacaso procura enfrentar esse conflito promovendo a difícil manutenção de um equilíbrio instável, quase imobilizante, em sua poesia. A prova mais eloquente de solução deste paradoxo é "Beijo na Boca", um livro inteiro sobre o amor, curiosamente um tema não muito caro aos poetas marginais.


Sobre isso, o posfácio de Clara Alvim para a edição original é esclarecedor. Diz Clara: "A poética fundamental de "Beijo na Boca" é a não escolha face à impossibilidade de opção - entre dois amores, entre dois poemas. Fiquem as duas namoradas, o passado não se ultrapasse, fique mais de um estilo; sobreponham-se e sucessivamente briguem entre si".


É precisamente essa negociação calculada com as bandeiras e com os paradoxos da poesia marginal que promove a importância da aspereza e da ambivalência de textura na obra de Antônio Carlos de Brito, o Cacaso. Seja em suas letras de música, impregnadas de procedimentos literários, seja em sua poesia, profundamente vinculada às regularidades e irregularidades rítmicas, seja nos seus ensaios e estudos, a um tempo especulativos e militantes, ou mesmo no design inesquecível de sua personagem. Dizia Charles na mencionada entrevista: "Cacaso não era um matuto enrustido. Era um jeca abusado".


Prefiro citar o próprio Cacaso em seu poema "Modéstia à Parte": "Exagerado em matéria de ironia e em/ Matéria de matéria moderado".




(*) Heloisa Buarque de Hollanda é professora de literatura na Universidade Federal do Rio de Janeiro e autora, com Zuenir Ventura, de "Cultura em Trânsito - Da Repressão à Abertura" (Aeroplano). Esse texto foi publicado no jornal Folha de São Paulo, em 12 de abril de 2003.

Um comentário:

Anônimo disse...

Poxa! Maravilhoso encontrar num blog algo sobre Cacaso...pensei que não ia encontrar nunca algo sobre ele por se tratar de um poieta marginal "raro". Conheço poucas poesias dele, se vopcê pudesse passar pra mim alguns pelo meu blogspot...ficaria muitíssimo grata!Abraços.