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quinta-feira, janeiro 04, 2007

Conversa com Chacal

Chacal é o nome artístico de Ricardo de Carvalho Duarte, que nasceu em 24 de maio de 1951, no Rio de Janeiro. Publicou 13 livros, dos quais Muito Prazer (1971), Preço da Passagem (1972), América (1975), Quampérius (1977), Drops de Abril (1983), Comício de Tudo (1986), Letra Elétrika (1994), Posto Nove (1998) e A Vida é curta pra ser pequena (2002). Colaborador de revistas de poesia nos anos 70, nos 90 editou, entre outros, O Carioca. Publicou periodicamente nos jornais Correio Brasiliense, Folha de S. Paulo e Jornal do Brasil. Participa das antologias 26 Poetas Hoje (1976) e Os Cem Melhores Poemas Brasileiros do Século (2001). Letrista (parcerias com Lulu Santos, Fernanda Abreu e Moraes Moreira, entre outros), criador e diretor do CEP 20.000, evento que acontece no Rio desde 1990. A entrevista foi feita por Fabrício Marques (*).

MARÇO DE 1998

Poeta, letrista, editor, mas principalmente saltimbanco e performático da poesia, você é um dos mais notórios representantes da “geração mimeógrafo” que marcou com sua presença nos anos 70. Vinte e cinco anos depois do primeiro lançamento, é relançado seu livro de estréia, “Muito Prazer”. É uma edição comemorativa – da editora Sette Letras – do livro que, em 1971, teve apenas 100 exemplares mimeografados e distribuídos na noite carioca, de bar em bar, por um jovem com então 25 anos. Qual a diferença entre a primeira edição e esta, 25 anos depois?

No meu último livro, “Letra Elétrika”, de 94, tem um texto chamado “Quântico dos Quânticos”, que diz: ‘Será o texto reescrito outro ou serei outro ao reescrever o texto ou já que tudo muda porque você me olha com essa cara de bunda toda vez que lhe digo que já fui?’ 25 anos é o tempo que vai de uma encarnação à outra. A primeira edição do “Muito Prazer” em 71 tinha a cara da urgência, do panfleto, da guerrilha urbana. Agora, é uma edição revista, ampliada e bem cuidada, com pequenos textos críticos, orelhas, e um elogio feito por Waly Salomão, publicado em 72 na coluna de Torquato Neto, “Geléia Geral”, que foi meu salvo conduto nas veredas da poesia. Agora, meu prazer ficou maior.

Você poderia contar alguma experiência marcante dessa época?

Me lembro de chegar na sala de aula da escola de Comunicação da UFRJ, com os primeiros exemplares mimeografados na mão. Foi um espanto. Algumas pessoas queriam comprar. Lembro até hoje da dificuldade que tive em colocar um preço naquele negócio. Era a primeira vez que eu ganhava dinheiro com poesia. Lembro de tentar vender, sem sucesso (minha timidez era gigante), o livro na entrada do show “Gal Fa-Tal”, no teatro Tereza Raquel, num dos primeiros shoppings de Copacabana, ponto de encontro noturno da galera da época. De dar um livro para Jards Macalé, no Píer, em Ipanema, point diurno da rapaziada. E lembro das opiniões e conselhos de Waly, meu primeiro leitor do ramo.

Como você viu e viveu as transformações (se é que houve alguma) das décadas de 70, 80 e a atual.


É divertido falar disso, estando dentro da parada. Mudam os anos, os modos, o país, mudei eu. 70 foi um período sinistro, vertiginoso, cercado de treva e droga. Mas no meio algo brilhava: a luz negra dos poetas possessos. E a voz penetrou o silêncio imposto e fertilizou a poesia. 70 foram anos “punk”, de uma poesia urgente, mal acabada, irresistível, vital. A poesia olhava a vida nos olhos e dizia como era ela e vice-versa.

A torre de marfim, atingida pelo raio da vida, ruiu boquiaberta. E desses escombros, brotou o rock dos 80. Os poetas migraram para a música porque o som distorcido e amplificado das caixas de som eram as caixas de guerra que eles precisavam. A tecnologia veio junto com a indústria cultural. A poesia se performatizou, se profissionalizou, aprendeu os truques marqueteiros e aprofundou suas olheiras com maquiagem barata.

Nos 80, os poetas invadem os palcos, armados de guitarras até os dentes. Nas garagens da poesia, o verso era recauchutado. Cientistas do verbo, exasperados com tanto barulho e diluições, recuperavam o vigor do verso, a coluna vertebral do poema era estimulada como antídoto aos maus modos marginais. E chega 90 com seu jeito collorido. A biodiversidade campeia. A indústria drenou a alma do rock e partiu para o interior. As editoras deixaram o barco bêbado da poesia à deriva e os poetas acordaram. Dos laboratórios das faculdades de letras, veio à luz um verso novo, eivado de referências poéticas.

A poesia, cansada de lidar com a vida, de brigar para mudar o mundo, se volta para dentro de si mesma. Os cadernos de cultura exultam. As referências agora são mais fáceis de achar. Saem das ruas e vão para as bibliotecas e livrarias. Mas a contraparte dessa tendência estoura nas rádios e se chama rap, hip-hop, funk. A poesia falada, cantada no ritmo eletrônico, celebrando a miséria urbana. Final de milênio. Vale tudo que venha somar. Radicalmente.

Quais os poetas que são referências para você?

Oswald de Andrade, Bob Dylan, Guimarães Rosa, Caetano Veloso, Chico Buarque, Allen Ginsberg, João Cabral, Ferreira Gullar, Manoel de Barros, Arnaldo Antunes.

E o que você tem lido atualmente?

Releio “Naked Lunch”, de Willian Burroughs. E acabei de ler a biografia de Noel Rosa, de João Máximo. A rua me interessa.

Os poetas da Poesia Concreta, de modo geral, sempre torceram o nariz para a poesia dita “marginal”. E você, o que pensa da poesia concreta? E que avaliação faz dos poetas “marginais”?

Concretismo: dez em matemática. Dez em política. Zero em português.

Poesia marginal: zero em português. Dez em biologia. Zero em matemática.

Como foi sua participação no disco da Fernanda Abreu? Fale um pouco de seu lado letrista.

Eu e Fernanda temos um vício em comum: a dança. Fernanda dança pelos poros. Tudo que ela faz tem swing. Eu gosto disso. Se o homem não fosse bloqueado por ondas de cultura repressiva, ele dançaria como quem respira. Trabalhar com Fernanda é só ligar o automático. Ela é rápida, inteligente, toca a bola e se desloca para receber na frente. A gente pensa junto. Mas eu não sou letrista. Eu escrevo sem música. A Fernanda cria o ritmo, funkeira de primeira que é. Nunca compus nada de nota. As músicas que mais gosto das que fiz é “A Lata”, “Be Sample”, com Fernanda e Chico Neves; “Vamp”, com Mimi Lessa, que o Barão gravou; “Andréia Andróide”, com Ricardo Barreto; e “Leontina”, com Moraes Moreira.

Que tipo de som você tem ouvido?

Planet Hemp, Fernanda Abreu, Piu Piu, Cabeça.

Há algum tempo, o poeta Bruno Tolentino levantou uma polêmica em torno da diferença entre letra de música e poesia. Na concepção dele, Caetano Veloso, por exemplo, não seria um poeta, mas um letrista. Como você vê essa questão?


Tolentinices. O Bruno confunde poesia com poesia culta que tem como referência a própria poesia. A poesia que viaja com a música é meio vira-lata, vadia. Uma é poesia de língua. A outra, da fala. A poesia do Bruno tem que ter uma espinha dorsal como quer também João Cabral. Mas há muito a poesia vendeu as muletas da métrica e foi extrair ser ritmo da respiração entrecortada pelos sustos do imprevisto. Feliz do país que pode cantar seus poetas em alto e bom tom como aqui.

AGOSTO DE 2000

De sua experiência com a poesia tanta falada quanto escrita, quais as principais características que se podem depreender delas?

A rima, a aliteração, a paranomásia (imagens sonoras), junto com a metáfora, a metonímia (imagens visuais) são da praia da poesia. Para apreciá-las, é útil que se leia ou que se ouça o poema em voz alta. Senão é como consumir música apenas com a leitura da partitura. A poesia impressa matou aos poucos o hábito de se ouvir poesia. A poesia provençal não se criaria no planeta de Gutemberg. Mais que o som, a poesia no papel tira a presença do recitador, seja ele o poeta ou outra pessoa. Perde-se a emoção, a dicção, a presença do poeta, que nos ajuda a perceber as divisões, o ritmo a que ele se propôs quando criou o poema (a esse respeito, ver como crescem as Galáxias, de Haroldo de Campos, quando faladas por ele). Ganha-se, por outro lado (perdida num recital, mas não de todo no CD), a possibilidade de se voltar de imediato, a determinados versos, para melhor percebê-los. Para a poesia mais reflexiva, talvez o melhor veículo seja a poesia impressa, lida no sossego. Mas uma poesia que se quer relato do cotidiano, com uma linguagem mais próxima da fala, com suas impurezas e tiques nervosos, como na poesia dos anos 70, cabe melhor a apresentação ao vivo, onde a dicção, o gesto, o ritmo, características da fala, dão à poesia a impressão do passageiro.

Rodolphus Agrícola disse que a poesia serve para ensinar, comover e deleitar. João Cabral fala em poesia como máquina de como ver, realçando sua visualidade. Os concretos falam em poesia verbivocovisual, querendo esgotar as possibilidades da palavra. A poesia falada nos leva a um novo estudo. Algo que se passe pela música, pelo canto, pelo teatro, pela performance. Não estamos diante da poesia escrita, nem do monólogo dramático. Estamos diante de uma simbiose dessas diversas expressões. Nada melhor que o poeta para ler suas próprias composições. Ele saberá, melhor que ninguém, falar seus poemas dentro das divisões desejadas. Claro está que alguns poucos recitadores podem compensar uma divisão equívoca com uma boa colocação de voz e gesto. Mas, na maioria dos casos, o que se vê é um ator querendo se sobrepor ao poema, querendo dramatizar e dar intenções que devem ficar a cargo do espectador. O recitador deve ter a medida exata do palavra. Não chutá-la como se fosse pedra. Nem encharcá-la de perdigotos melodramáticos. As palavras, essas baixinhas, sabem direitinho o que querem dizer. Cabe a quem fala transmiti-las com sabor, e a quem as recebe, ouvidos abertos. No mais, ficam o gestual, a dicção, o domínio do microfone de quem fala, às condições acústicas do espaço, a respiração da platéia e, acima de tudo, a qualidade do poema.

O que um poema falado "diz" que o poema escrito, tipográfico, não pode dizer?

Talvez a distância do rosto e seu retrato. A palavra, quando plena de sentido, fica prosa, como diria meu primo. E por isso não se contenta em ficar chapada sobre o papel como um cachorro atropelado. Ela quer inflar, viajar, ganhar outras dimensões. Aí ela maquina aqui, maquina ali, se enfurece, se faz de sonsa, dribla, ilude e, fulminante, escapole pela porta da boca, enchendo o espaço com seu som único, mágico, imantado. Quando o poeta alça a voz, o sol fica vermelho de inveja porque sabe que é a única energia que pode superá-lo em sua grandeza e calor. A voz plena de força para fazer a poesia acontecer e encher de pássaros o espaço de uma sala, de uma noite, do vazio. A voz com sua precisão cirúrgica mesmo imprecisa como a de Drummond, pequena como a de Bandeira, áspera como a de Cabral, apresenta ali, gota a gota, pelo filtro do verbo decantada, a vida condensada. Palavra, fonte de cura e loucura, tão expressivas como um olhar, um gesto, um esgar.

A palavra, que estremece e percorre por dentro o corpo, numa corrida de obstáculos, quando sai da boca é vida, mesmo que inspirada na morte. A poesia na voz do poeta é um digno espetáculo. Ver como a criatura se contorce ou se transtorna, sorri ou gesticula para dizer o que para ninguém é fácil, mas é bom, saudável, depurativo. Com ou sem recursos eletrônicos, com ou sem trabalhos de corpo ou voz, a poeta ali se agiganta, incorpora um sistema solar e se manifesta cidadão do planeta Terra.

JULHO DE 2003

De onde veio o apelido Chacal?

De uma gíria antiga: onda chacal. Usei-a depois de um treino da seleção carioca infantil de vôlei em 1964. As pessoas, depois do treino, comendo em silêncio na cantina, eu cheguei e mandei: Que onda chacal! Foi pra rua. Pegou.

Você nasceu na Gávea e com um ano foi para Copacabana. Depois voltou para a Gávea, onde mora desde 83. O que esses lugares do Rio representam pra você? Afinal, o que o Rio significa pra você inclusive, você escreveu um livro sobre o Posto 9 (estou certo?), não é (o rio é basicamente o mar)? Chacal, queria que você se detivesse mais nessa pergunta, e viajasse no tempo, lembrando tudo que quiser de sua infância, seus pais, irmãos (os tem?)


Tenho três irmãs. Duas mais velhas e uma mais nova. O Rio é a minha cidade. Adoro cantá-la de todo jeito. Além do Posto 9, editei uma revista chamada O CARIOCA, e faço há 13 anos o CEP 20.000, que é o código postal da cidade. O Rio é a minha praia na infância e adolescência em Copacabana. Muita onda, muito jacaré e futebol. As primeiras domingueiras e festinhas ao som de Satisfaction. A primeira namorada. Depois o clássico no Colégio Estadual André Maurois de 67 a 69, já na Gávea. O movimento estudantil. A descoberta do samba em Mangueira, no Império Serrano. Sexo, drogas e poesia na Escola de Comunicação da UFRJ e no eixo Baixo Leblon / Pier (Praia de Ipanema). O encontro com Waly e Torquato Neto em 72, no Teatro Teresa Raquel em Copacabana, durante a temporada do show "Gal Fatal". A vida quase sempre na rua, nos bares, na praia. O Rio é uma cidade out door. A vista quase sempre é um colírio. A cidade é dispersa, festiva, difícil de se concentrar no trabalho. Mas o Rio é principalmente a cidade onde nasci e vivo há 52 anos.

Tem quanto tempo que você está ligado à poesia? O que significa pra você essa longa ligação? O que a poesia trouxe (ou tirou) para a sua vida? (poesia incidental, pra acompanhar a pergunta: "A gente vai ficando velho e escreve menos/ (...) não há nenhum critério em ser velho").

Descobri a poesia em 1970, através de livro sobre Oswald de Andrade, da coleção Nossos Clássicos, da Editora Agir. A partir daí comecei a escrever meus poemas kodak. Flashes da vida, do momento. A poesia é meu canal de comunicação com o mundo. Através dela, traduzo minhas experiências. A poesia me ajudou a estar no mundo e me tirou da angústia do sempre difícil contato humano.

A vida é curta pra ser pequena é seu livro mais recente, certo? Há nele quase que uma contaminação permanente de poemas por letras de música e vice-versa, concorda? Gostaria que comentasse essa "hibridização".

Não percebo muito essa diferença. Acho que de uma forma geral, trafego por várias poéticas. Do poema mais curto, como o título do livro, pela poesia em prosa, pelo poema rimado. Acho que minha poesia não se encaixa em modelos. Eu os uso, simplesmente.

O poema que abre o livro é "ouro preto a pé". Como é "bater pedra/ pisar pedra/ em ouro preto"?

Acho que fala de uma obsessão, de uma necessária obstinação para poder criar, sem que a dispersão, a avalanche de solicitações do cotidiano te impeçam de compor.

Em Ruas, o narrador diz que "há meio século/ ando nas ruas (...) a pé". Chacal, Esse contato direto com a vida citadina, com áreas urbanas, unindo o dado biográfico com as palavras é essencial para o poeta ("colar o ouvido no asfalto/ tomar o pulso da cidade/ e dançar")? Nessas andanças dá pra saber de que é feito o conteúdo da caixa preta do planeta? -Isso sem falar nos poemas "cidade" e "à rua".

Eu amo a rua. Como João do Rio, acho a rua, a morada do acaso, o combustível para a criação. Os livros, a escola, podem complementar o aprendizado. Mas o essencial vem das ruas, dos encontros fortuitos, da batucada.

Na seção "figuras" você desfila um cardume de personagens interessantes: leontina, sonhoníricos, bundamental... Poderia falar um pouco dessas figuras?

Leontina veio de uma matéria no Fantástico sobre alergias que pessoas tem depois do beijo. Moraes Moreira musicou-a muito bem. Bundamental é aquele lírico paquidérmico, amante das convenções. Um nostálgico dos tempos d`antanho. Acho que existe um pouco dele em todo poeta. Sonhoníricos e Burrovaldos são os delirantes de plantão em oposição aos idiotas da objetividade.

"Aqui agora" diz: "o aqui agora está mudado/ em 68/ era viver intensamente/ em 2001/ uma odisséia no atolado". Mas nessa odisséia no atolado de hoje, ainda cabe viver intensamente?

Se torna cada vez mais improvável. Hoje é tudo muito previsível. A compulsão de fazer dinheiro, de ganhar a vida, vai excluindo o desejo do planeta vida. Eu sou um utópico nato. Venho da geração de 68. Acho que a vida é curta pra ser pequena.

Enquanto preparava essas perguntas, eu ouvia uma música que está fazendo 30 anos: "Complexo de épico", do Tom Zé: "todo compositor brasileiro é um complexado. Por que então essa mania danada, essa preocupação de falar tão sério, de parecer tão sério (...) vai ser sério assim no inferno!". Você concorda que uma grande parte dos poetas e dos artistas em geral se levam muito a sério? Isso é sério?

Concordo plenamente. Escondem sobre a máscara da erudição, a dificuldade de dar um laço no cadarço do sapato. Esquecem do outro. Não sabem que a vida é troca, base do eterno aprendizado.

Fale sobre a experiência do Centro de Experimentação Poética, o CEP 20.000. (ali a onda é boa/o mundo ali é bom)?

O CEP 20.000 é o meu centro. Um caldeirão onde se mistura música, poesia, teatro, performance, toda última quarta de cada mês, no Espaço Cultural Sérgio Porto, no Rio, com apoio do Rioarte. Com o CEP, eu posso me rever nos poetas de vinte anos que ainda tem a poesia como reflexo das suas vivências, cotidiano esse muito parecido com o meu há vinte anos atrás, onde a urgência de entrar no mercado de trabalho e a insatisfação com essa situação devido à vontade de experimentar o mundo é angustiante. O CEP 20.000 serve de palco para a garotada expressar essa fúria e não morrer sufocada. Devia ter apoio da Secretaria Municipal de Saúde.

É com orgulho que comemoramos 13 anos de existência agora em agosto de 2003. Acho que a história da falada poesia falada no Rio se divide em antes e depois do CEP. Uma história que sempre se renova. Talvez por não nos levarmos tão a sério. Três gerações se criaram por lá.

Quanto tempo e quantos números durou a revista O Carioca, que você editou? Como é editar uma revista de cultura e arte no Brasil?

“O Carioca” nasceu em janeiro de 95 para levantar a bola da cidade do Rio de Janeiro, oprimida pela guerra santa entre Leonel Brizola e Roberto Marinho. “O Carioca” não é uma revista bairrista. Apenas quer cantar seu bairro porque é lá que estão suas melhores referências.

O Carioca durou de 95 a 98. Foram 5 edições. Tudo que não passa pela indústria cultural e seus departamentos de marketing, é difícil de se estabelecer. Essa perversa parceria que transforma um produto da sensibilidade humana em mais uma entre zilhões de mercadorias, é coisa de profissionais. Eu serei um eterno viajante, hóspede do planeta. Mas eu ainda faço uma revista para anões albinos.

N’O Carioca você expôs uma característica de amplitude de interesses, ouvindo cineastas, músicos.

Todas as formas de expressão artística me interessam. Eles se misturam, assim como os sentidos interagem. É lamentável que um artista não tenha curiosidade por outras formas de criação. Essa amplitude que quis dar ao Carioca, talvez tenha inviabilizado-a. Daí anões albinos.


Como era o panorama editorial quando você começou a escrever e como você o vê agora?

Em 1971: por desconhecer os caminhos que me levassem a uma editora e por achar muito mais legal fazer um livro artesanal, optei pelo mimeógrafo. Escrever, publicar e distribuir, faziam parte de um mesmo ato: viver a vida, simplesmente, anotando e publicando o vivido.
A onda se alastrou e muita gente começou a escrever, ler e falar poesia. Mas viver desse ato tão natural como respirar, era difícil. Livros, mais se davam do que se vendiam. Até que veio uma grande editora (Brasiliense) e vendeu duas edições - 6 mil exemplares - do meu 9.º livro, Drops de Abril (1983), uma coletânea dos meus livros até então. Daria para viver se aquilo fosse num crescendo. Mas a editora entrou em declínio. E outras não se interessaram.
Em 2002, lanço meu 13º livro "A vida é curta pra ser pequena" por conta própria. Deixo os livros em consignação em livrarias e sou tratado a dentadas na hora de fazer o acerto. Quando a poesia vira livro e o livro, mercadoria, tudo vira coisa. E o poeta apenas um produtor de inutensílios, como diz Manoel de Barros.



Como viver do trabalho poético ?


OK, poesia não é para se viver e para se escrever. Então produzo há 13 anos, o Centro de Experimentação Poética - CEP 20.000, evento referência na área de poesia falada e performatizada no Rio de Janeiro, com dezenas de jovens sedentos de novidade presentes às últimas terças feira de cada mês. Acho que se pudéssemos juntar a poesia escrita, com seu corte e sua precisão, à poesia falada, com sua música e expressão, à poesia virtual, com seu poder de disseminação e interação, teríamos novamente meios para popularizar e aumentar o nível de comunicação poética pelo país. E talvez, viver de poesia.


Depois do CEP, algo em vista?


Poesia não é uma arte popular em lugar algum do mundo. Mas não precisa ser tão ignorada como hoje no Brasil. E, se nós, que fazemos dela nosso meio de expressão, não tentarmos reverter esse quadro, ninguém mais. Acho que a gente pode revitalizar a Poesia que se faz no Brasil hoje, ampliando e revigorando o repertório das novas gerações e re-inseminando na corrente sangüínea do país, a boa poesia de todos os tempos. Uma forma para alcançar esse objetivo: pega-se 4 capitais (Rio, São Paulo, Belo Horizonte e Curitiba que além de centros importantes, são relativamente perto uma da outra) e 1 poeta âncora que escrevam, falem e produzam eventos ou publicações de poesia em cada capital. A cada estação, seria lançada uma publicação com os poetas âncoras e os poetas de uma determinada cidade. A publicação seria lançada com um show. Um site seria criado e atualizado mensalmente e além de poemas e animações, teria o serviço dos eventos mensais e lugares de vendas das publicações e livros indicados. Uma vez por ano, um grande festival em Brasília, com poetas e performers de todo país e convidados internacionais. Esse esquema poderia ser reproduzido ao nível estadual e municipal, com escolha de cidades ou bairros do centro e da periferia em encontros semanais. Enfim, a possibilidade de tirar a poesia do gueto, é dar-lhe vida através do espetáculo, qualificá-la através de publicações e disseminá-la através da Internet. Acho que esse seria um upgrade digno para o CEP 20.000.


(*) Fabrício Marques é poeta e jornalista. Esta entrevista foi publicada no livro “Dez conversas” (Gutenberg, 2004) e cedida com exclusividade para o site Cronópios.

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