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quarta-feira, janeiro 31, 2007

GERALDINHO CARNEIRO E A PAIXÃO PELAS PALAVRAS




Geraldinho Carneiro nasceu em 11 de junho de 1952, em Belo Horizonte. Três anos mais tarde, mudou-se para o Rio de Janeiro. Poeta, publicou Na Busca do Sete-Estrelo (74, Mapa Editora), Verão Vagabundo (80, Editora Achiamê), Piquenique em Xanadu (88, Espaço & Tempo, Prêmio Lei Sarney de melhor livro do ano), Pandemônio (93, Arte Editora), Folias Metafísicas (95, Editora Relume-Dumará), Por Mares Nunca Dantes (Editora Objetiva, 2000), Lira dos Cinqüent’anos (Relume-Dumará, 2002) e Balada do Impostor (Garamond, 2006).

Em prosa, publicou “Vinicius de Moraes: A Fala da Paixão” (Brasiliense, 84) e “Leblon: A Crônica dos Anos Loucos” (Rioarte/Relume-Dumará, 96). Lançou também a tradução de alguns sonetos de W. Shakespeare, na coletânea Sonhos da Insônia (Impressões do Brasil, 97), publicada em parceria com Carlito Azevedo.

Escreveu mais de duas centenas de letras para músicas de Egberto Gismonti, Astor Piazzolla, John Neschling, Eduardo Souto Neto, Nando Carneiro, Francis Hime, Wagner Tiso e outros, gravadas por diversos intérpretes, entre os quais os acima mencionados e mais Tom Jobim, Ney Matogrosso, Gal Costa, Olivia Byington, Miúcha, Fafá de Belém, Lenine, Zé Renato, Olívia Hime, Zezé Motta, Cauby Peixoto, Vinicius de Moraes e Toquinho , Moacyr Luz, AfroReggae e Michel Legrand.

Foi traduzido, radiofonizado e publicado em francês, inglês, espanhol e italiano. Também com Francis Hime, escreveu poemas para a cantata Carnavais, executada em 88, e para a Sinfonia do Rio de Janeiro de São Sebastião, encomendada pelo Governo do Estado, que estreou em 2000, no Teatro Municipal.

Escreveu artigos, poemas e ensaios para a maior parte das publicações brasileiras. Teve diversos textos teatrais encenados, originais e traduções, entre os quais A Tempestade e As You Like It, ambas de William Shakespeare (encenadas em 82 e 85, sendo a primeira publicada pela Relume-Dumará), A Bandeira dos Cinco Mil Réis (encenada em 86, por Aderbal Freire-Filho, publicada em 92), Manu Çaruê (ópera performática com música de Wagner Tiso, encenada em 88, por Walter Lima Jr.), Fausto, de W. Goethe (encenada em 2003 por Moacir Chaves), Baque, de Neil Labute (encenada por Monique Gardemberg em 2005) e Antônio e Cleópatra, de Shakespeare, a convite de Maria Padilha (encenada em 2006, com direção de Paulo José).

Escreveu roteiros de cinema, minisséries e participou da criação do programa Você Decide, do qual foi supervisor de texto. Adaptou diversas obras literárias para a TV, entre as quais a minissérie O Sorriso do Lagarto (com Walter Negrão) e especiais para as séries Brasil Especial e Brava Gente. Foi um dos escritores da minissérie JK, de Maria Adelaide Amaral e Alcides Nogueira.

Participa, desde 2004, como poeta e sócio-atleta, do Projeto Arca das Letras, do Ministério do Desenvolvimento Agrário, que implanta bibliotecas em comunidades rurais. No mesmo ano, deu início à oficina de poesia Escola das Rosas que Falam, no Centro Cultural Cartola, que coordena ainda hoje. No último dia 29, no Rio de Janeiro, lançou o CD “Gozos da Alma”, terceiro volume da coleção Poetas da Canção.

A prosa do observatório

o poeta esquadrinha a natureza
em busca de indícios: eclipses
o grafismo das garças no lago
estrelas cadentes e outros sinais
da língua de deus.
e deus, crupiê do acaso,
foi passar o verão noutra galáxia
deixou no céu uma guirlanda de enigmas
e mais meia dúzia de coincidências
pra orientar o frenesi dos tolos
e as especulações da astronomia


Pequenas ocupações da poesia

a procura da palavra mágica
a contrasenha do apocalipse
o codinome do diabo os esconjuros
as juras aquém-além palavra
amor e outros monstros inomináveis
Iracema é anagrama de América
termo é anagrama de morte
dog, em inglês, é o contrário de deus


Futurologia

o futuro é o jardim dos impossíveis
o shangrilá das paralelas da esperança
o céu onde revoa a ave vida
o rendez-vous das coisas nunca dantes
(onde florescem flores de utopia
e cada dia é sempre mais além).
futuro do pretérito é o contrário
é o sonho que seria se não fosse
o caos,certa palavra impronunciada,
o horror, os desenredos do amor
e enfim (à falta de outra flor) a morte


A semântica das rosas

o signo rosa significa a rosa
a rosa em si mora no mundo
e é no fundo a flor da metaflora
que só floresce nos jardins suspensos de Platão
(assim,se não se sabe se uma pena
é uma pena ou é uma pena
também nunca se sabe se uma rosa
é uma rosa ou é somente a insígnia
um enigma uma senha uma metáfora
significando alguma outra rosa)
em suma,cada signo é uma ponte
entre as palavras, seu império
e cada rosa sempre indecifrada
em seu mistério


À flor da língua

uma palavra não é uma flor
uma flor é seu perfume e seu emblema
o signo convertido em coisa-íman
imanência em flor: inflorescência
uma flor é uma flor
(de onde talvez decorra
o prestígio poético das flores
com seus latins latifoliados
na boca do botânico amador)
a palavra, não: é só florilégio
ficção pura,crime contra a natura
por exemplo, a palavra amor


À flor da fala

é daqui mesmo que eu te conheço?
ah,não? então de que outro lugar será
que eu não te conheço? se eu fosse místico
talvez redecifrasse a tua face
de alguma encarnação imemorial
(ou desde o princípio dos tempos,
antes que os deuses desinventassem
os carnavais do caos);
mesmo não sendo místico diria
desse pequeno prenúncio de apocalipse:
agora sim compreendo a música das esferas,
os teoremas de Arquimedes de Siracusa,
a mecânica celeste e todos os demais
mistérios do reino desse mundo: só quero
conhecer-te ainda nesta encarnação:
antes que a minha alma improvável
se arremesse na província do nada,
o rendez-vous dos seres sem amor


Os fogos da fala

a fala aflora à flor da boca
às vezes como fogos de artifício
fulguração contra os terrores do silêncio
só espada espavento espelho
ou pedra ficção arremessada
ou canção pra cantar as graças
as virilhas as maravilhas da amada
a deusa idolatrada do amor:
essa outra voz quase jazz
que subjaz ventríloqua de si mesma


O espelho

do outro lado um estranho
faz simulações como se fosse
um demônio familiar
é sempre noite,um assassino sonha
com mulheres assassinadas em série
sob as palmeiras de Malibu
o mundo é só uma ficção plausível
a imagem que baila ao rés-da-lâmina
é um último improvável vestígio
da existência de Deus
os restos são ecos de outras faces
gestos de espanto e despedida
a música dos relógios , a morte


Manual dos 40

1) não mencionar as ilusões perdidas
(é só um romance de Honoré de Balzac)
2) cultivar os poetas gregos
para provar que, desde os primórdios,
o mundo faz ( ou não faz ) sentido
3) trocar a máscara da rebeldia
pela fantasia da satisfação
esquecer os trotes e os foxtrotes do mundo
(talvez converter-se ao zenbudismo)
4) acreditar,conforme os mestres do espírito,
que as piratas e conspiratas da carne
são contrárias ao processo civilizatório
5) amancebar-se com Mnemosyne, a memória,
musa dos corações veteranos:
enfim, proustituir-se
6) recordar (à sorrelfa) que os poetas
espadachins espanhóis do Século de Ouro,
a despeito de suas façanhas físicas e metafísicas,
morreram ao redor dos 80


Crítica ao manual dos 40

1) é falsa a menção às ilusões perdidas:
o poeta continua crédulo e cretino,
no melhor dos mundos
2) esforço de afetar certo ceticismo
(fracassado, aliás)por pudor de confessar
secretas fantasias de poder
3) não merece comentário
4) o único fragmento ao menos sincero,
no qual o poeta exprime sua paixão
pelo sublime
5) alusão bizarra ao romancista Marcel Proust,
de quem o poeta não leu nem a Recherche
6) erro bisonho; no Século de Ouro
octogenário só Calderon de la Barca,
dramaturgo, não os poetas; provável
sintoma da decrepitude do poeta


Projeto

título: (provisório) os lusíadas
tema: a conquista da África e das Índias
as proezas da brava gente lusitana
amplificadas com engenho e arte,
os deuses clássicos como coadjuvantes
mais a fauna de ninfas sereias etc.
(esses deuses gentios só como fábula,
estilo: poema em decassílabos heróicos
em estilo grandíloco e corrente
como convém ao pathos da epopéia:
a linguagem solenizando os feitos
e ofuscando os desastres da língua-pátria
(explicar ao secretário de el-rei
que o elogio aos heróis e reis do passado
suscita, em relação a el-rei presente,
o prenúncio de façanhas futuras)
orçamento: trinta mil-réis por ano
(ou seja, um décimo do salário
do almirante-mor dos Mares Índicos
esse imbecil do Vasco da Gama)

Canção do exílio

o poeta sem sua plumagem
é um deus exilado do cosmo
strip-teaser metafísico
só lhe resta sambar no inferninho
do caos
sob os neons do nada
sempre nu diante do espelho
sem espelho diante de si


Fortuna crítica

sonhou sonhos de poder & glória
pavoneou-se: espalhou jactâncias
pensou que era um profeta angelicaos
o penacho como um sol na solidão
no céu dos deuses marginais;
foi morar num palácio do Parnaso
entre líricos e burlescos
num penthouse pra lá de suas posses:
não passava de um novo-rilke


Bilacmaquia

livre espaço a ave aurora
as asas cantando climas céus
nuvens agora o sol o vôo
a vida o olhar (re)volta
tempo alegria de novo


Nevermore

fizemos piqueniques em Pasárgada
tramamos romances rocambolescos
nas praias mais improváveis.
cifras grifos dragões d’além mar
cuspiam fogo em nossa eros-diccção
você era mais luz: eu era mais treva
fomos quase felizes para sempre
antes que você escolhesse o dia
a hora o grand-finale do espetáculo
(ou não escolhesse: a morte é sempre
um pas-de-deux com o deus do acaso)


Romântico de Cuba (2)

é louco o amador que crê no amor:
a cadeia (incandescente) de sóis
e girassóis; o rastro dos astros
no carrossel do céu: a conspiração
dos cometas no kindergarten da galáxia:
a aritmética de coxas e lábios;
o astrolábico do deus dos desenredos
maquinando o erro tipográfico
que converte ocaso em acaso
e fabrica as cintilações do sim


Neoplatônica

a boca é o lugar onde se engendra
o silêncio e se proferem sentenças
de morte e se colhem blasfêmias
e serpenteiam sortilégios
e se enfunam as flores da fala
até forjar a ficção de outra boca
de onde se extrai a idéia do beijo


Juízo Final

amou três ou quatro sereias, sempre
marinheiro de primeiro naufrágio;
jurou em falso,disse meias verdades;
perambulou em busca do sublime,
sem nunca descobrir o Santo Graal;
andou atrás de um deus que fosse cômodo;
como esse deus não se desencantasse,
cantou a lua e outras deusas inconstantes;
refratário às ciências, desconfia
que o Sol gira ao redor da Terra
e o homem é um animal fadado à extravagância;
às vezes sofre acessos de grandeza,
supõe-se demiurgo e pandemônio,
mas o mundo sempre se rebela
contra suas mal fundadas esperanças
e o reduz à sua insigne insignificância .


A fala da paixão

em tua fala a língua caravela
desenovela em busca de outros mares
metáforas da fala: a anti-fala
ou inefável fala com caprichos
de boca navegada nunca dantes
AH SE EU SOUBESSE AMOR A TUA TRAMA
ao sul de qualquer fala decifrasse
esse país de fala indecifrada
amor que me não singra as minhas angras
mas sim me sangra em mar amor amor


Pacto sinistro

quem sabe a vida é uma novela
série noir
cheia de som e fúria etc.
ou filme B sem verossimilhança
e deus é o rival de Humphrey Bogart
que se fartou de luz na Martinica
& agora à luz da lua
se empenha por capricho a maquinar
what’s the next step
of the story
ou
what’s the next stop
of the starry
way to nowhere?


Principalmente

sempre fui bem tratado como um príncipe
e fui me afeiçoando aos privilégios
aos florilégios e às vilegiaturas
que me couberam neste reino etéreo
e deletério, porque o esquecimento
é tão inevitável quanto a vida
e a morte é toda feita de mistério.
procuro ouvir a sorte nos meus búzios
como o Bilac ouvia suas estrelas,
coisa que nunca ouvi, mas compreendi
mesmo não tendo credo acreditável.
fui construindo assim meu edifício
sobre essa arquitetura de quimeras,
cujo arquiteto talvez fosse cego,
ou gênio, ou simplesmente ausente.

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