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quarta-feira, fevereiro 14, 2007

Tanussi Cardoso: Para iluminar o silêncio!




Salgado Maranhão (*)

Da geração de poetas que cultivam a poesia desde a década de 70, Tanussi Cardoso é um dos mais atuantes. Vem do tempo em que (ainda mais do que hoje), era preciso lutar muito, correr aos bares, portas de teatro e praças públicas, numa verdadeira guerrilha de afirmação do verso.

Publicou três livros individuais e trabalhos em parceria com amigos poetas como Socorro Trindade, Leila Miccólis, Bráulio Tavares, Claufe Rodrigues, Glauco Mattoso, Mano Mello, Ulisses Tavares. O seu último lançamento foi o Beco Com Saídas, de 91, que traz uma rascante visão do cotidiano firmada na ironia, no sarcasmo, e, sobretudo, numa lírica enxuta e visceral.

Já neste Viagem Em Torno De, Tanussi Cardoso muda o tom. O que antes fora oswaldianamente irônico, vira elegíaco; o que era o circo da paixão, fica solene; reflexivo. É o poeta diante do nada. Frente ao semblante da morte e seu olhar e seu inconfundível. E é o próprio poeta quem pergunta:

Quem morre antes,
o morto ou seus objetos?

E afirma: Nesse momento nenhum pássaro é possível.

O livro, que está dividido em três partes, embora com matizes variados, trata da dor extrema e de sua transcendência. Permanece, no entanto, em sua verve, o aquecimento do verso e a alta tensão emotiva a incendiar as veias:

(E quem ásperas mãos
me cravam seus dardos?)

Segundo João Cabral de Melo Neto, há dois tipos de poetas: os que escrevem por excesso de ser, e aqueles que o fazem por deficiência de ser. Neste mais vale o labor que a inspiração; já nos outros a poesia é um rio sem fronteiras.

É é esse o rio de Tanussi. Nele é o coração que busca o verbo. Não o sentir puramente abstrato e impalpável, mas a vida em suas lanhuras e esplendores e corporificar o sentimento com palavras de carne, concretas e explosivas:

O amor é, exatamente
o tiro no peito do matador.

Se na primeira parte (Livro dos Elos), o poeta esgrime com a morte equilibrando-se no verso, no poder da poesia para seduzir a fera, na segunda parte, no Livro das Impressões , há um clarão de vitória, um renascer da fênix:

Estou em paz, amor
(...)
Novo eclipse não verei mais
(...)
Se te disser que estou triste ou alegre
Será apenas detalhes de uma lâmina que corta.

E continua a subida na terceira parte, no Livro do Acaso, onde é mais nítido o sentido de transcendência:

A palavra
viva
transcende a sua hora.


E ainda:

E o poeta é só
um homem
dentro
de Deus.

Por estas e por outras, é que Viagem Em Torno De é uma ótima oportunidade para um reencontro com a poesia de Tanussi Cardoso, que nos toca com a humanidade e bravura dos seus versos, com a sua forma de decantar o ser e iluminar o silêncio.


(*) Salgado Maranhão é poeta, compositor e jornalista

As baladas de vida ou morte de Tanussi Cardoso




Marcello Rolemberg (*)


Há mais de duas décadas lidando magistralmente com versos, o poeta Tanussi Cardoso é um curioso paradoxo dentro da literatura brasileira: dono de uma das mais belas e respeitadas vozes poéticas do país, publicado nos Estados Unidos, Uruguai, Argentina e Portugal, detentor de vários prêmios literários e uma unanimidade no Rio de Janeiro – cidade onde nasceu e sempre morou –, ele é quase um desconhecido para o grande público.

Essa incoerência talvez possa ser explicada pelo fato de o poeta sempre ter preferido desfilar seus versos com sua fala mansa e pausada pelos inúmeros saraus literários cariocas – onde é sempre a principal atração – do que colocá-los em forma de livro.

Encontros de poetas e escritores são uma constante no Rio, uma espécie de happenings que não se multiplicam por outras cidades brasileiras. Por essa razão talvez faça sentido que sua última coletânea de poemas – “Beco sem Saída” – tenha sido lançada há uma década.

De 1991 para cá, contudo, Tanussi Cardoso leu muito, escreveu muito e acabou cedendo à tentação do livro. Com o lançamento recente pela Sete Letras de “Viagem em Torno De”, o poeta volta ao universo de papel e dá mais uma grande chance para que os leitores que não vão a saraus cariocas conheçam melhor a sua obra. Vale a pena.

Uma marca constante do trabalho de Tanussi é o seu lirismo à flor da pele, uma ternura que envolve as palavras e inocula paixão em cada verso que compõe, seja para falar de Humphrey Bogart – personagem de um de seus grandes sucessos em leituras no Rio – ou para tratar de assuntos mais áridos como a morte, um tema recorrente em “Viagem em Torno De”.

O poeta, quem quer que seja ele, é um ser apaixonado por natureza. Tem de ser. E Tanussi Cardoso não camufla o sentimento, não maquia as tensões, não baixa os olhos. O resultado é um livro denso mas sutil, ao mesmo tempo forte e terno, como o próprio poeta. E eivado de esperanças mesmo diante do fim, apesar de, como escreveu certa vez Clarice Lispector.

Uma prova disso é o poema “As Mortes”: “Quando o primeiro amor morreu/ eu disse: morri/ quando meu pai se foi/coração descontrolado/ eu disse: morri/ quando as irmãs mortas/ a tia morta/ eu disse: morri/ depois, a avó do Norte/ os amigos da sorte/ os primos perdidos/ o pequinês, o siamês/ morri, morri/ estou vivo/ a poesia pulsa/ a natureza explode/ o amor me beija na boca/ um Deus insiste que sim/ sei não/ acho que só vou/ morrer/ depois de mim”

Talvez esses versos sejam uma síntese, na verdade, de uma parcela significativa do trabalho atual de Tanussi, que desbundou nos anos 70, fez poesia marginal e que desde começo da década de 80 vem construindo um sólido castelo poético.

Este é um trabalho de poeta que chega à maturidade, tem consciência plena de sua finitude – e de todos os que o cercam –, passeia de mãos dadas com o limite mas se recusa a colocar um ponto final, no que quer que seja. Nem nos versos, nem na vida. Colocá-lo para que?

“Neste Viagem em Torno De, Tanussi Cardoso muda o tom. O que antes fora oswaldianamente irônico, vira elegíaco; o que era o circo da paixão, fica solene; reflexivo. É o poeta diante do nada. Frente ao semblante da morte e seu olhar inconfundível”, escreve o também poeta Salgado Maranhão na apresentação do volume.

Os poemas de Tanussi Cardoso, por mais que tratem de dores profundas, de perdas irreparáveis – todas as perdas são irreparáveis para um poeta –, não se travestem de catarse, de dor.

Eles não gritam. Sussurram. Antes de vislumbrar o fim, os versos apontam novos caminhos, fazendo o poeta rever e discutir a própria vida. E Tanussi Cardoso, que não é um homem egoísta, convida o leitor para essa discussão e essa revisão vital.

Esse processo de interiorização, de esgarçar a alma e de romper o casulo se torna claro na própria divisão de Viagem em Torno De. As três partes que compõem o volume – Livro dos Elos, Livro das Impressões e Livro do Acaso – retratam a peregrinação particular do poeta, uma viagem de visitação a morte, à vida e à poesia.

Cada uma dessas subdivisões tem sua dicção própria, mas sempre acompanhadas por uma lírica visceral. E com uma insistente esperança no recomeçar do ciclo da vida.

Como em “Carta Aberta aos Bruxos”, poema que abre o Livro das Impressões e que remete a um certo diálogo com os versos “não sou alegre nem sou triste/ Sou poeta”, de Cecília Meirelles, mas com um outro fervor, uma outra semântica: “(...) Estou em paz amor/ Como os bruxos costumam estar/ se te disser que estou triste ou alegre/ será apenas detalhe de uma lâmina que corta/ será apenas o fio da faca/ que enfeita faces para ceifar/ :Palavras restando inúteis querendo sangrar/ Absolutamente te digo:/ não estou alegre nem triste – estou em paz/ Que é o outro lado do eclipse/ Que não vejo/ Mas que sutilmente, amor/ Posso tocar”

Esse “tocar” o lado oculto do eclipse parece ser, no final das contas, a grande missão de Tanussi Cardoso – espreitar o desconhecido, olhar nos olhos do indizível, tangenciar palavras e emoções e, depois de muita análise, mergulhar de cabeça em tudo “como um cego a flutuar no escuro”, com ele mesmo escreveu em “Das Configurações”. Para, ao voltar à tona, transformar a tudo em belos versos, em poesia vigorosa e atenta.

Para fustigar os medos, para dissipar a névoa. Sempre com lirismo, sempre com amor. E uma enorme crença na retomada de caminhos. Por que o poeta, se é um homem que duvida, (in)coerentemente também é um homem que crê. “Deve haver poesia no dedo de Deus”, diz ele. E certamente há algum deus na poesia de Tanussi Cardoso.


(*) MARCELLO ROLLEMBERG é jornalista e escritor

TANUSSI CARDOSO E A PRECARIEDADE HUMANA



Tanussi Cardoso é carioca, jornalista, bacharel em Direito, licenciado em Inglês.

Poeta, contista, critico literário e letrista de MPB, com várias músicas gravadas.

Publicou os seguintes livros: "Desintegração" (Ed. do Autor, 79/RJ), "Boca Maldita" (Ed. Trote, 82/RJ) e "Beco com saídas" (Ed. Edicom, 91/SPJ, Prêmios UBE/RJ e UBE/GO. Em 2000, lançou "Viagem em Torno de", pela Ed. 7Letras/RJ. Em 2003, lançou "A Medida do Deserto e outros poemas revisi¬tados", inserido na coletânea de poemas "Rios" (Ibis Libris/RJ).

É colunista do jornal RIO LETRAS e Vice-Presidente do Sindicato dos Escritores do Estado do Rio de Janeiro.

Tem trabalhos publicados nos EUA, Uruguai e Portugal, com poemas traduzidos para o francês e espanhol.

Prêmios literários: Menção Honrosa no Concurso Literário Stanislaw Ponte Preta / 95, da Secretaria Municipal de Cultura – RJ; I Concurso Nacional de Poesia Vinicius de Moraes; 1° lugar no X Concurso Onde está o poeta? (Hebraia, RJ) e 1° lugar no II Prêmio Sesc-Copacabana de Poesia e Concurso de Arte, Prosa e Poesia UBE/ 2002.

Seu trabalho poético foi tema de monografia na UFRJ, apresentado por Márcia Miranda Jayme.

Coordenou o evento Segundas com Arte no Espírito das Artes, por seis meses, em 2002.
Segundo o escritor e jornalista paraense Nicodemos Sena, “Tanussi Cardoso conhece a precariedade de todas as coisas. Seus versos ‘desinventados’, prenhes de vida e filosofia, não se podem reduzir pela análise formalista, meramente literária. Pois em Tanussi Cardoso, os significados estão muito para lá das palavras.”



Legado
o homem morreu
deixou
o cão/ o câncer/ o corpo/ o cofre/ os milhos
deixou
o hereditário ódio
para dividir entre
os filhos



Os olhos nos desvãos
O pijama despido do corpo dorme seus sonhos
O rosto no retrato estampa uma febre antiga
O piano dedilha memória e descompasso
O fantasma de um gato descansa no sofá
A escada suspira os passos dos homens
No escuro as coisas brilham seus nomes




O afogado
nu
na lisura das primeiras ondas
O amante do pôr-da-so
Um deus
face ao sagrado
Um medo
face ao degredo
O afogado
dividido
entre o mar e a secura
Como se a morte fosse
a possibilidade do desejo
ou do deserto
O afogado
as algas beijam-no
Ulisses
face ao ciclope
Ninguém / musgo
O amante do sereno
O afogado
livre
não cabe
nas intenções
do gesto
ou
na perspectiva do Sábado
O afogado
agora
é o que se perpetua
no peixe



AS MORTES
quando o primeiro amor morreu
eu disse: morri
quando meu pai se foi
coração descontrolado
eu disse: morri
quando as irmãs mortas
a tia morta
eu disse: morri
depois, a avó do Norte
os amigos da sorte
os primos perdidos
o pequinês, o siamês
morri, morri
estou vivo
a poesia pulsa
a natureza explode
o amor me beija na boca
um Deus insiste que sim
sei não
acho que só vou
morrer
depois de mim



AS TIMES GOES BY

Meu bem,
Me chama de Humphrey Bogart
Que eu te conto Casablanca
Me tira esse sobretudo;
Sobretudo, conta tudo
Que eu te dou uma rosa branca.
Meu bem,
Me chama de Humphrey Bogart...
Te dou carona em meu carro
Chevrolet — que sou bacana;
Te levo, meu bem, pra cama,
Fumamos nossa bagana;
Te provo que sou sacana...
Te faço toda a denguice:
Te dispo que nem a Ingrid,
Te dou filhos de montão
Só pra te ver sufocar...
Mas me chama de Humphrey Bogart!
Faço chover colorido
Como num bom musical,
Te chamo de Lauren Bacall!
Te danço, te canto, te mostro,
Entre as pernas, meu bom astral...
Te deixo pro enxoval
Meu chapéu preto de gangster.
Mil poemas de ninar...
Só pra te ouvir sussurrar:
Como te amo, meu Humphrey Bogart!



A Cinelândia e seus pombos


Lagos gelados incrustados nos olhos,
O travesti é o estrangeiro de si mesmo.
Que Pátrias imensas o habitarão?
A que Deus gritará a sua geografia?
Ou será o travesti a legião de todas as Pátrias?
Um cogumelo dança na cabeça dos homens;
Sangue escorrendo em pós e fumaça.
Pombos cagam nos menininhos da Praça
: Mataremos os pombos ou os menininhos?
Não consigo terminar nenhum livro;
Não consigo começar nenhum amor.
Aprendi a perguntar com Quintana: "E por que não?"
E a me responder: sempre-talvez-sim-quem sabe...
Há um baú aberto de esperas;
Um mar imenso navegando um navio assombrado.
Sou esse mar e esse navio - assombro fantasmas.
Minhas lentes de contato perderam o contato com o real
- Só o imaginário é visível.
Sonhar é desrespeitar o silêncio.
É espantar a voz do sono.
É dormir ao avesso.
Fantasio o impossível e vivo.
Há poetas demais gritando dores;
Há dores demais sendo cantadas.
Dão milho aos pombos
: As criancinhas se vingam, comendo-os.



LOUÇA
o coração é óbvio
o amor insólito
vidro
no toc se quebram



Substantivos


Faca é faca
Pão é pão
Fome é fome
Amor é amor

Estranho desígnio das coisas
De serem exatamente elas
Quando as olhamos sem paixão



Cilada



O amor não é a lua
iluminando o arco-íris
nem a estrela-guia
mirando o oceano

O amor não é o vinho
embebedando lençóis
nem o beijo louco
na boca úmida do dia

O amor não é a vitória
dos navios e dos barcos
nem a paz cavalgando
cavalos alados

O amor é, sobretudo
a faca no laço do laçador
O amor é, exatamente
o tiro no peito do matador


Ponte



Entre eu e mim
um abismo imenso



Chorando sobre um Poema

(lendo "Sob a Espada")
Para Ferreira Gullar

Debruço-me sobre o livro:
o poema invade olhos, tecidos.
Vozes.
Que espada mais aguda
que o eco de seu som?
Que fogo mais forte crepita
eterno
além da paixão?

A palavra
viva
transcende a sua hora.
Sempre
é tempo
que não nasceu.
E o poeta é só
um homem
dentro
de Deus.



A Hora Absoluta

Estranhos
meus mortos abrem as janelas
penetram em meu quarto
e me sufocam.
Insinuantes
me beijam e sangram em mim
alegrias e pecados
acariciando, sem pudor
meus sonhos, minhas partes
e meus ossos.
Meus mortos e seus gemidos
têm rostos, sinais
e olhos que fagulham calafrios.
Ousados
vêm no breu do sono
e debruçam sobre meu corpo
silentes e queridos
e rezam
e choram por mim
como a lua clamando
sua outra metade
como um espelho
colando os próprios vidros.
Meus mortos sem censura
meus delicados mortos
que, à noite, penteiam meus cabelos
e, solidários, preparam o meu jardim.



Teias


Alimentar aranhas,
eis o meu ofício.

Deixá-las criar tentáculos.
Moscas mansas
apaixonadamente sangrar.
Cuidá-las para tecer
os pequenos vícios
do seu tear
: venenos sutis
: tatos improváveis

- vivê-las.

Redescobrir as cores
as sedes e as sedas.
As sendas do meu destino
nelas entrelaçar
: véus de astúcia
: morte e viuvez.
Decifrar sua dança
: rede de valsas
: fios de arame.

Aprender com elas
o ritmo do salto.



Da Paz das Borboletas


Moram em mim animais bravios.
Perigosos, eriçam os pêlos
rangem os dentes
emitem urros
por qualquer motivo.
Mas dormem em mim, tranqüilos
quando lhes conto das borboletas
pousadas sobre os vitrais noturnos.



O Morto


Tudo permanece em seu lugar.
A tartaruga
estática, sábia
contempla a cena.
Quem morre antes
o morto ou seus objetos?

Tudo permanece em seu lugar.
O morto é um poema
acabado
solto
completo.