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quarta-feira, dezembro 31, 2008

Pausa para pensar


Sylvio Costa

Os escritores, e colunistas do Congresso em Foco, Marcelo Mirisola e Márcia Denser formam um caso único na cena literária brasileira. Reconhecidos pela crítica como dois dos nomes mais importantes da prosa nacional contemporânea, distinguem-se pelo destemor com que expressam suas opiniões.

Deram novas provas disso ao participarem no último dia 19 de um debate, sobre os rumos da literatura contemporânea, no Espaço Brasil Telecom, em Brasília. Algumas afirmações feitas pela dupla durante o debate, mediado pelo jornalista e professor Sérgio Sá:

- O escritor português José Saramago é um chato. Assim como Clarice Lispector e Virginia Woolf.

- Se aparecessem hoje, pessoas como José Carlos de Oliveira, Paulo Mendes Campos e Nelson Rodrigues provavelmente não teriam espaço nos principais jornais do país, que fecharam as portas para os escritores brasileiros.

- A falta de originalidade e de grandes talentos marca a produção literária atual, tanto no Brasil quanto no mundo.

- O escritor brasileiro é um pangaré, que vive das migalhas que seus contatos (e não seu eventual talento) lhe garantem.

- Debilitaram-se os vínculos entre os meios universitários e os mais inventivos autores nacionais contemporâneos, e a academia recuou no tempo, priorizando o estudo de grandes nomes da literatura brasileira do passado, como Machado de Assis e Guimarães Rosa.

Pois é, a dupla não tem papas na língua e, concordemos ou não com suas opiniões, eles nos fazem pensar. Por isso, integram, para nosso orgulho (alô, mamãe!), o time de colunistas do Congresso em Foco. E, por isso, decidimos brindar vocês, leitoras e leitores, com os principais trechos do citado debate. Vai como uma espécie, digamos, de bônus de Ano Novo. Os temas tratados não dizem respeito exclusivamente ao mundo da literatura. Se você se interessa por cultura brasileira ou tem alguma pretensão de entender um pouquinho este país complexo chamado Brasil, vale a pena ouvir o que Márcia e Mirisola dizem.

O recuo da universidade

Márcia Denser – Antônio Cândido é o nosso grande mestre, é o nosso guia espiritual ainda porque não se forjou algum outro parecido, nesse meio tempo. Até porque até a geração de Antônio Cândido e a geração posterior a ele, o pessoal da universidade acompanhava a par e passo o trabalho dos escritores. Interessante que o trabalho deles acadêmico , de pesquisa, ia crescendo ao mesmo tempo em que o nosso trabalho, de ficção, ia crescendo, as apostas eram recíprocas. Hoje, a universidade recuou. Recuou para Machado, recuou para 1930, recuou para nomes consagrados como Guimarães Rosa. (...) Há um recuo da universidade, há um recuo do pensamento construído, a extinção do pensamento dos inteligentes, e isso é muito triste. Porque a literatura tem que ir, passo a passo, junto com o pensamento que se produz a respeito dela.

A atual geração de escritores

Márcia – O que eu percebo na geração do Marcelo [Mirisola], que é uma geração posterior à minha, é que o Marcelo apareceu quase que como uma estrela solitária, em meio a essa geração dos anos 90. Na minha geração, havia muitos escritores muito bons, mulheres e homens. Na geração dele, como ela é uma a geração epigonal, ela duplica aquilo que a gente já tinha feito, não inventou nada de novo. Novo foi o Mirisola.

Marcelo Mirisola – Eu li outro dia... por que não existem mais escritores, cadê os gênios, essa coisa toda e tal... quem foi que escreveu? Acho que foi no Jornal do Brasil... ele disse que no Brasil existem dois escritores, um morto e um vivo, o Machado de Assis e o Cristóvão Tezza, né?

Márcia – Que ninguém lê...

Mirisola – Você não leu também?

Márcia – Não.

Mirisola – Eu também não. Mas o livro [O filho eterno] é bom mesmo?

Sérgio – O livro é bom, mas é sintomático de uma situação. Ganhou todos os prêmios e não é lido, não está na lista dos best sellers.

Márcia – Não é lido pelos escritores, e quem consagra um escritor é outro escritor... (fala que, quando Mirisola apareceu, foi uma unanimidade, todo mundo lia e comentava)

Sérgio – E os escritores não estão se lendo, é isso? Falam uns dos outros, mas não se lêem...

Márcia – Não, por exemplo, o Milton Hatoum é uma coisa que... se fosse algo inquietante, eu...

Sérgio – E o Milton Hatoum não é inquietante?

Márcia [confirma com a cabeça e acrescenta] – E Cristóvão Tezza, para mim, não é interessante...

Sérgio – Quem são os interessantes, Márcia, além do Mirisola?

Márcia – Isso aí deixa a gente constrangida porque, sabe, eu estou esperando alguém interessante...
(...)

Sérgio – Se não há nada interessante no Brasil, no resto do mundo não há nada interessante, que atraia a atenção de vocês dois?

Márcia – Não, também não tem. Nada.

Mirisola – Você já leu Bolaño, Márcia? Eu gosto, acho um cara interessante.

Sérgio – Roberto Bolãnho, escritor chileno, morreu em 2003...

Márcia – Eu estive na Alemanha, na Espanha... e na Europa a esperança deles é que surja alguma coisa no Third World, na América Latina, nos países africanos... Não há criação de linguagem.

Sérgio – Quero entender qual é o problema da literatura de hoje...

Márcia – Veja o caso do Marcelo. O que ele faz é absolutamente novo. É uma coisa que se chama originalidade, talento, entende? Você não fica lendo “dejá li”, e é uma coisa que você não encontra facilmente em outros autores.

Sérgio – Marcelo, você também não vê nada de interessante no panorama da literatura brasileira, como a Márcia está dizendo?

Mirisola – Vejo, eu encontro...

Márcia – Tem. Tem o André Sant’Anna, filho do Sérgio...

Mirisola – É, o filho do Sérgio...

Márcia – Ele se repete muito, né?

Mirisola – Mas aquela história de se repetir é jeito de escrever...

Márcia – Mas ele conseguiu fazer um trabalho realmente importante...

Mirisola – Tem um cara que eu sempre falo para a Márcia e que ela não quer ler. É o Peçanha...

Sérgio – Juliano Garcia Peçanha.

Mirisola – É. Você não leu, né, Márcia?

Márcia – Não, eu reluto...

Mirisola – Por quê?

Márcia – Não sei.

Mirisola – É, a Márcia é engraçada, ela tem dessas coisas...

A era do escritor microempresário

Sérgio – Isso significa o quê? Não aparece esse escritor interessante porque nós não preparamos pessoas para serem escritores? O que falta?

Márcia – Não tem nada absolutamente interessante, novo... veja, o escritor agora tem que ser o microempresário dele mesmo, isso é muito besta.

Mirisola – O escritor tem de ter agenda. Isso é uma coisa complicada. Você tem que ter talento para escrever e para fazer contato também.

Sérgio – Aqueles que são considerados bons escritores têm agenda, é isso?

Mirisola – Acho que eles têm agenda, sabem manipular agenda, eles têm os contatos... (...) Eu não sei fazer essas coisas, eu sou um desastre para fazer relações pessoais. (...) Eu entendi que literatura é isso, é agenda. O que hoje se faz de literatura é o que se faz a partir de agenda. Então seus amigos vão viajar, vão para o exterior, descobrem uma Lei Rouanet que de repente todo mundo... você quer ir para onde? Você quer ir para Paris? Você quer escrever uma história de amor em Roma, funciona assim (entenda). Eu fiquei impressionado quando descobri que era assim. Eu pensei: pô, eu sou um ingênuo no meio desses tubarões.

Sérgio – Mas não foi sempre assim? Não houve sempre essa política literária?

Márcia – Não, não, não, não... era por merecimento. Não era assim. Até os anos 70, 80, era preciso ter muito talento. A minha geração revelou cerca de 300 a 400 escritores no Brasil. Só a Ática lançou de uma batelada só 75, no finalzinho dos 70 para os 80. Sobraram...

Sérgio – Sérgio Sant’Anna, Ignácio de Loyola Brandão...

Márcia – Fora os mortos. Paulo Leminski, Caio [Fernando Abreu], João Antônio...

Sérgio – Nesse sentido, houve uma certa profissionalização?

Márcia – Não se trata de profissionalização. A profissionalização vem depois que você tem uma certa consagração entre os escritores. Existem escritores hoje que têm uma consagração a partir do nada.

Sérgio – Mudou o lugar da consagração? Hoje ele é mais midiático?

Márcia – Mudou o lugar... e se ele for midiático, é falso, não está consagrando nada. Fica aquele cara que não existe como literatura.

Sérgio – Mas não foi a mídia que consagrou o Marcelo?

Márcia – Não, primeiro fomos nós, escritores.

A persona de Mirisola

Mirisola – Mas aí aconteceu o seguinte, eu tinha que desautorizar isso daí, entendeu? Se eu soubesse administrar a minha agenda, vai ver que foi essa minha falta de talento, eu estaria hoje numa boa, tranqüilo, estaria indo pra Paris escrever história de amor, mas eu fiz questão de desautorizar essa mídia. (...) Saía uma resenha atrás da outra, todas elogiando, eu virei um cara cult. Aí eu... ah não, não vou vestir esse figurino, não sou cult. Eu dava entrevista dizendo que era matador, que fui garimpeiro, que matei gente, e os caras levavam a sério aquilo. Eu sou escritor, sou um cara que vive de fabular, de inventar... eu sou assim, gosto muito de brincar com a autoridade do escritor. O lugar do escritor é a liberdade, é poder subverter, é não vestir a roupa que querem que você vista.

Escritor brasileiro é pangaré

Olha, eu vi uma coisa em Parati, foi o ano do Cristopher Hitchens, eu vi a nossa esquerda, a esquerda brasileira enfiar o rabinho entre as pernas pra esse cara. Ele barbarizou, ele defendeu o Bush lá, a invasão do Iraque, não sei o quê, e não teve ninguém lá na platéia para dizer um ai... estava o Milton Hatoum, estava todo mundo lá e ninguém deu um pio. Foi exatamente o ano em que cheguei pra esse cara e perguntei “how much”, quanto é que você está ganhando para estar aqui, ele deu risada na minha cara. A grande encrenca que eu arrumei lá foi exatamente por causa disso: por que vocês, escritores brasileiros, não ganham um centavo para estar aqui? Eu levantei esse negócio e foi um... o escritor brasileiro é pangaré. Essa agenda que eu falei é uma agenda de migalha, é uma agenda de miudeza. O cara vai lá a troco de traslado, a troco de tapinha nas costas, de ver a foto no jornal.
(...) Teve uma época em que eu remoia isso, eu me consumia, eu me sentia prejudicado... eu parei com isso. Eu continuo escrevendo, fazendo minhas coisas, estou publicando no Congresso em Foco, sabe, tenho uma baita duma audiência lá, estou tranqüilo, eu parei com essa história... se não, fica aquela história do ressentido, do invejoso... até falei para o Maurício [Melo, jornalista responsável pelo programa Leituras, da TV Senado] no almoço. Eu tenho inveja de Dostoievski, cara. Vou ter inveja de vocês? Eu queria ter escrito Memórias do subsolo, não vou ter inveja de piquenique de pangaré, pô. Faz favor...

A colaboração para o Congresso em Foco

Márcia – Eu acho ótimo. Foi um desafio para mim, aí eu pude realmente ousar. Estou desenvolvendo uma outra vocação, que é a vocação de ensaísta. É um trabalho que faço com carinho e com bastante reflexão, acho isso importante.

Mirisola – Eu me vejo lá como um corpo estranho. Muita gente que me lê me pergunta: o que você está fazendo nesse site? Estou escrevendo, uai, é o único lugar onde tenho liberdade para escrever. (...) Às vezes eu mando a crônica e penso. Não, essa aqui não vai passar não, não é possível. E sai, e nunca mudou uma vírgula. Estou muito feliz, é um lugar que realmente dá para exercitar a liberdade e para espalhar muita confusão no ar, viu? As crônicas têm uma repercussão muito grande, elas vazam demais, é muito legal isso daí.

(Um parêntesis necessário para os que estranham a presença de Mirisola neste site. O Congresso em Foco pretende cobrir o Congresso e a política sem virar as costas para o mundo real, que é aliás o pano de fundo e a matéria-prima do que se decide na esfera política. Daí nosso permanente interesse em abrir espaço, de modo democrático e pluralista, para pessoas que possam contribuir para a compreensão da realidade que nos cerca).

De prêmios, de Saramago e de chatos em geral

Mirisola – O grande autor está condenado a ser um grande autor. Pode ser que ele seja um grande autor uma semana depois de morrer, mas ele vai ser.
(...)

Márcia – Não se dá prêmio em geral para pessoas realmente muito talentosas, eu já notei. Quem ganha prêmio são os autores médios.
(...) O Saramago é um chato, um pé no saco. (...) A Virginia Woolf também, consegue ser mais chata ainda. A Clarice Lispector [faz uma expressão de desaprovação]...

Mirisola – Ela é chata mesmo, sou muito mais a Márcia...

Márcia – Não que eu seja genial, é gosto pessoal...

Mirisola – É uma questão de birra, de escolha pessoal, arbitrária. É afinidade. Uma das grandes vantagens de ser escritor é você ter liberdade para ser arbitrário. Eu sou formado em Direito, tentei advogar durante dois anos, mas eu não podia ser arbitrário. Eu tinha prazo, tinha um monte de coisa para cumprir... eu não podia ser parcial como sou hoje, ter liberdade para dar palpite, e uma das coisas mais gostosas é esta, poder falar que o Saramago é chato.

A falta de um projeto de país

Márcia – Está faltando que a gente lute em torno de uma idéia comum. Por exemplo, um projeto de país, que existia. Antes, o futuro era possível, o Brasil era possível. Isso antes da globalização, de cair o muro de Berlim, sabe como é que é? Eu e o Caio achávamos que nós seríamos famosos mundialmente, que iríamos ganhar o Prêmio Nobel. Nós tivemos um pequeno colapso em nosso projeto de país. Fora a Ivete Sangalo, que aparece em todas, não vejo mais nenhum artista que aparece. Ninguém aparece, não há mais discussão literária... a academia está defendida, não põe a cara pra fora, a academia é extremamente política, é um momento em que ela não pode se arriscar. Ainda há professores que se interessam, conversam com a gente, mas não é nada comparado com o que existia.

Sérgio – Isso não é uma coisa mais paulista, uspiana? A universidade não ficou mais fechada em São Paulo.

Márcia – Sim, a USP fechou, ela não interfere mais, não participa mais daquela forma apaixonada como participou. Só faz a crítica do negativo. Acho que há toda uma narrativa do desencanto em torno da cena brasileira dos últimos dez anos. Os grandes professores não botam a cara para fora.
Sérgio – O Silviano Santiago põe.

Márcia – Mas ele é uma coisa isolada.

Os escritores de fora dos grandes jornais

Mirisola – Nos grandes jornais, o escritor foi substituído pelo técnico. Tem muito psicanalista escrevendo, tem antropólogo escrevendo, tem médico escrevendo. Os escritores apaixonados não têm mais lugar para escrever. Se o Carlinhos de Oliveira estivesse vivo hoje, se, sei lá, o Tarso de Castro... o Paulo Mendes Campos... se esses caras estivessem vivos hoje, duvido que estariam escrevendo nos grandes jornais. Eles estariam sendo pulverizados, pô. Não tem mais aquela figura do escritor como intelectual público, e tem muita gente boa escrevendo que poderia fazer isso. O que tem não é o escritor, é o especialista. A palavra do escritor hoje não interessa muito. Você vê crônica em jornal em que o médico começa a falar de placenta, pô. Cadê o Nelson Rodrigues aqui? O mundo acadêmico... eu passo longe disso daí, mas a voz do escritor, a voz até romântica do escritor não existe mais.

Tensão: poeta ataca Mirisola à queima-roupa

(Durante o debate, o poeta e agitador cultural Nicolas Behr, uma das raras figuras da cena literária de Brasília que alcançaram reconhecimento nacional, questiona duramente Mirisola:)

Nicolas Behr – Vou fazer uma pergunta para o Mirisola. O Sérgio Sá acha ele um grande escritor, eu acho ele um grande marqueteiro. Quanto ao Saramago, acho que é inveja. Vamos pegar outros escritores... o Marcelino [Freire] assume aquilo, de fazer uma balada literária em São Paulo, e ele não assume.

Márcia – Mas o Marcelino é de quinta categoria...

Mirisola – Deixa ele falar, ele está dando a opinião dele...

Nicolas – É uma questão de afinidade. Isso, de marqueteiro, marqueteiro, me afastou da prosa do Mirisola. Hoje, acho positivo, ele parece estar renunciando a isso, investindo mais na escrita do que na imagem de escritor que a mídia adora porque fala mal dos outros. Você faz isso, faz esse joguinho também...

Mirisola – Não, não faço...

Nicolas – Você não me convence...

Mirisola – Mas, além das acusações, qual é a pergunta?
(Nicolas fala que começou a ler um dos livros de Mirisola – Joana a contragosto – e parou porque o livro “não lhe deu prazer”. “Eu parei, quem sabe eu volto”.)

Mirisola – Eu invisto na escrita desde o primeiro livro. O que acho que aconteceu é a reação dos escritores, que querem mais dar tapinha nas costas e fazer contatos. Mídia? A mídia me isolou. Se eu entendesse as expectativas da mídia, eu estaria na mídia. Faz muito tempo que saí dos suplementos, que saí da mídia. A minha agenda do ano inteiro é duas horas da agenda do Marcelino, e sou amigo dele, gosto dele, é um baita duma simpatia. Que marketing é esse que só me prejudica?

(Encerrado o debate, Mirisola e Nicolas conversam amistosamente e combinam de se encontrar em um boteco, estilo copo-sujo, onde se refestelam com codornas com farofa e selam a paz. “Eu tinha que falar porque o Mirisola fica aí esculhambando com poesia, estava com isso preso na garganta”, explica o poeta.)

quarta-feira, dezembro 17, 2008

Memórias burlescas da ditadura


Omar L. de Barros Filho

O jornalista, geógrafo e tropeiro Mouzar Benedito, um dos patronos do reconhecimento do Saci como brasileiro honorário e colunista de ViaPolítica, acaba de lançar, em São Paulo, o livro 1968, por aí... Memórias burlescas da ditadura. É difícil não admirar o original trabalho de Mouzar Benedito justo na época em que prolifera a erva daninha da literatura transgênica do tipo terminator, cujas sementes sem pátria são proibidas de brotar na geração seguinte.

Ao contrário, este mineiro egresso do berço materno em Nova Resende, perito em cachaças (das boas ou daquelas matadoras), especializou-se em Brasil, e em descobrir nossa identidade, nossas mazelas e virtudes, o que revela e semeia país adentro. E sempre com um olhar crítico e bem humorado, voltado para o patético da existência de Sua Excelência, o brasileiro.

Agora, com 1968, por aí... Mouzar Benedito deixa as estradas poeirentas do sertão e transfere-se para o mundo estudantil em revolução. Há 40 anos, como muitos ainda lembram, a América Latina fervia sob as botas militares. Nosso autor, naqueles tempos um estudante de geografia da Universidade de São Paulo (USP), já enchia a cara de trago, jogava conversa fora, e matava os amigos de rir no sem fim de enredadas conspirações de botequim. O epílogo, não se sabe ao certo até hoje, foi desfavorável para a milicada, mas que Mouzar Benedito colocou seu grão de areia no angu verde-oliva, isso ninguém pode negar.

Acho que a maior contribuição deste escritor mineiro – protagonista e testemunha do processo histórico – ao desfecho da etapa histórica iniciada há 40 anos, foi mesmo o tiro fijo do humor singelo e admirado pelas coisas do Brasil. E aí entra o povinho que habita os grotões, estando ele nas lonjuras rurais, periferias urbanas, universidades, passeatas, quartéis ou na melhor mesa do bar, nós mesmos. Esse contador de histórias é antes de tudo um inveterado gozador, que faz piadas com a desgraça alheia e a sua própria. Ele descobriu cedo que só existem duas maneiras de sobreviver na selva de Macondo: ou ser imortal ou rir até morrer.

A seguir, alguns breves episódios de 1968, por aí... Memórias burlescas da ditadura, selecionados pelo autor para os leitores de ViaPolítica.

Milagre: tô fora!

Ocorreu durante o governo Médici o chamado “milagre brasileiro”, com o país crescendo mais de 10% ao ano e a classe média ganhando mais (os operários, nem tanto: o milagreiro Delfim Netto não queria que eles participassem da festa, dividir os lucros, dizia que tinha primeiro que esperar o bolo crescer para depois dividir, e a divisão nunca aconteceu, não é?).

Começou uma onda de viagens ao exterior como nunca tinha acontecido. Eu mesmo, com bom emprego no Sesc, estava ganhando bem e podia viajar pra fora, mas evitava, preferi conhecer o Brasil. Já vinha viajando de carona, de trem, em situações precárias, no milagre passei a viajar com mais dinheiro, mas sempre pelo Brasil, com pequenas incursões ao Paraguai e à Bolívia. Um dos motivos era que eu queria conhecer o Brasil mesmo, outro era que só de ouvir os relatos de comportamentos de brasileiros endinheirados no exterior eu ficava morrendo de vergonha.

Uma moça que foi numa excursão para a Argentina me contou com alegria:

— Nós fomos num ônibus só de brasileiros a uma casa de tango, mas levamos surdo, tamborim, tudo, e entramos batucando e dançando samba. Acabamos com o tango deles a noite inteira.

Nos aviões que chegavam do Brasil a alguns países europeus (soube que aconteceu inclusive na Inglaterra), quando abriam a porta para os passageiros saírem, em vez de gente o que saía primeiro era uma bola e atrás dela um monte de caras se exibindo como originários do “país do futebol”.

Na Bélgica, uma amiga viu uma loja com uma placa escrita em português, na porta: “Proibida a entrada de brasileiros”. Isto porque muitos achavam que tinham que roubar alguma coisa da loja, trazer um souvenir roubado.

Vários exilados me contaram que quando encontravam grupos de excursionistas do Brasil fingiam ser estrangeiros, não falavam português, por vergonha de ver o que faziam.

Isso fora a breguice da maioria de nossos conterrâneos ascendentes social e economicamente. Ficou famosa a história de uma mulher (saiu até em reportagens) que entrou num táxi e pediu para ir ao Museu do Louvre. O táxi parou em frente a ele, a mulher olhou, olhou, sem descer, e disse:

— Agora vamos à Torre Eiffel.

É assim que faziam atividades “culturais”, conheciam os lugares.

Outra visitou um apartamento em que moravam brasileiros, resolveu fazer uma comida para a turma e precisava de canela. Foi a uma farmácia (!) comprar a dita cuja, não sabia como era a palavra canela em francês e julgou que era só pôr um acento no final. Começou a pedir “canelá”. Como ninguém entendia o que ela queria, ela levantou um pouco a calça na altura da canela e batia na perna, insistindo: “canelá, canelá”.

Diz o dito popular

Não eram só turistas deslumbrados que faziam besteiras. Alguns exilados de verdade, até de nível universitário, também davam suas bolas foras. Como alguns que aprenderam francês no Brasil. Um deles, recém-chegado em Paris, foi levado pelo seu grupo de esquerda para uma reunião com militantes franceses. No meio da discussão, quis se exibir, dizer que com ele tudo era assim “pão-pão; queijo-queijo”. Achou que podia simplesmente traduzir esse ditado literalmente e sapecou:

— Avec moi c’est ainsi: pain-pain; fromage-fromage.

Os franceses ficaram olhando com cara de quem não entendia nada que o cara falava e ele não entendia a cara de espanto deles, ficou se sentindo o máximo.

Interrogatório difícil

Titomu era colega de faculdade. Quer dizer, da Geografia. Tímido, gaguejava demais. Na frente de qualquer moça, era uma dificuldade falar com ele. Na madrugada de 17 de dezembro de 1968, descobrimos que era também sonâmbulo. Foi quando os militares, utilizando um grande contingente de soldados e armamentos de todos os tipos, invadiram o Crusp, onde morávamos, considerado, ao lado da Faculdade de Filosofia da USP, um dos maiores focos de contestação ao regime.

Eles chegaram às 4 horas da manhã. Quando acordamos com o barulho, estávamos cercados de soldados e veículos militares, que rodearam todo o conjunto de prédios, todos com armas pesadas apontadas para nós. O Titomu morava no mesmo prédio que eu, o Bloco F, com o Ariovaldo e não sei quem mais. Das janelas, todos olhávamos a movimentação das “gloriosas” forças armadas, avaliando se havia possibilidade de fuga, quando o Titomu falou para o Ariovaldo, sem gaguejar:

— Vou lá conversar com eles.

Ninguém deu bola, achando que ele brincava, mas foi. Quando viram, ele estava saindo do prédio, de peito aberto, rumo a um tanque de guerra. Todo mundo gritava pra ele voltar, mas ele nem ouvia. Estava dormindo! Era sonâmbulo.

De repente, vários soldados pularam sobre ele. Foi aí que acordou, sem entender o que estava acontecendo. Foi jogado dentro de um caminhão coberto com uma lona, onde um coronel tentou interrogá-lo durante horas. Às 11h da manhã, estávamos todos presos, esperando transporte para nos levar ao presídio Tiradentes, e vimos soldados descerem o Titomu do caminhão. Veio para junto de nós, para ir preso também. Perguntei o que fizeram com ele. Disse que o coronel queria saber que tipos de armas nós tínhamos. Mas para isso gastou mais de meia hora, de verdade. Segundo ele, o coronel fez mais duas perguntas. Ele quis nos contar como foi, mas é claro que desisti de ouvir...

— Do Titomu ninguém arranca informação nenhuma... — concluímos. — O coronel se ferrou nessa. Imagine ouvir o Titomu nervoso!

Preso de novo

Para justificar a invasão do Crusp, foi instaurado um IPM (Inquérito Policial Militar — uma coisa temida durante a ditadura), que tinha a função de provar que havia lá dentro um foco de guerrilhas e outras coisas. Um exemplo ridículo de acusações era que lá não havia nenhuma virgem. As moradoras trepavam, diziam os acusadores.

Logo nos primeiros dias de 1969, consegui licença para retirar meus pertences no apartamento em que morava com mais três colegas — Chico Beltramini, estudante de Geografia; Osvaldo Siqueira, de História; e João Chalita, de Economia. Era retirar mesmo, pois não havia chance de voltarmos para lá.

Todas as minhas roupas razoáveis haviam sido roubadas, assim como todos os livros com aparência de maior valor, para vender nos sebos, além daqueles com títulos suspeitos, apreendidos como “provas” que o Crusp era um centro de subversão e treinamento de guerrilha.

O material de cartografia, todo importado, que comprei a duras penas, pagando prestações, dançou também. Sobrou para mim uma malinha pequena de roupas velhas e outra de livros sem capa ou muito manuseados. Mais tarde cheguei a uma conclusão interessante: nunca fui tão livre quanto nesse tempo em que não tinha mais nada. Mudei seis ou sete vezes em um ano e nem precisava pegar táxi, ia com uma malinha de livros numa mão e uma de roupas na outra. Hoje, cada vez que tenho que me mudar, me lembro disso com saudade. Nada de geladeira, mesa, cama, roupa de cama, estantes e muitos livros para levar.

Bem. Encontrei alguns dias mais tarde com meus três ex-companheiros de moradia, que também haviam sido roubados, saqueados pelo Exército e pela polícia, e resolvemos ir nós quatro juntos fazer uma reclamação. Procuramos o coronel Alvim, que comandava as tropas que permaneceram no Crusp e era o responsável pelo IPM, mas nem tivemos tempo de abrir a boca. Sem ele nem saber quem éramos, teve um ataque histérico, xingando a Polícia Militar, que fazia a guarda dos prédios, me apontando e dizendo que a polícia militar era tão incompetente que deixava um terrorista andar por ali sem fazer nada. Vi aí uma rusga entre o Exército e a PM. Mas o certo é que o coronel mandou nos prender. Fomos logo cercados por uns trinta soldados, comandados por um tenente, armados e com medo da nossa reação, pois éramos “terroristas” muito perigosos.

Enquanto discutiam para onde nos mandavam, colocaram a gente num apartamento do Bloco A, do Crusp, prédio em que — no tempo que servia de moradia estudantil — só moravam mulheres.

Fomos colocados num quarto, com soldados na porta e outros na porta do apartamento. Éramos perigosos mesmo, hein?! Estávamos putos da vida e não podíamos nem conversar. Lembrei-me então de folhar o jornal que levava, e os soldados não me incomodaram. De repente, me levantei e pedi para um deles:

— Chame o tenente, por favor. Preciso falar com ele urgente.

Ele ficou meio sem saber o que fazer, falou com outro, saiu e logo voltou com o tenente, que estava tenso, aparentemente com um pouco de medo.

— O que você quer? — perguntou.

— Quero te avisar que não posso ficar preso hoje.

Ele fez cara de surpresa e nem partiu para a porrada, o que era de se esperar na época.

— Por que não? — perguntou.

Abri o jornal e mostrei o horóscopo pra ele:

— Veja aqui o meu signo, Sagitário. Olha o que está escrito: “Não mantenha-se isolado”.

Ele saiu dando risada, e o que eu queria que fosse uma gozação serviu pra quebrar o clima hostil.


SERVIÇO
1968, por aí... Memórias burlescas da ditadura, de Mouzar Benedito
Editora Publisher Brasil
livros@publisherbrasil.com.br
www.publisherbrasil.com.br
Tel: (11) 3813 1836

Leia outros textos de Mouzar Benedito na coluna Brasil Adentro, de ViaPolítica, em
http://www.viapolitica.com.br/brasil_view... e nas edições anteriores.

Por este Brasil adentro


Mouzar Benedito (*)

Quando conheci a poeta goiana Cora Coralina, praticamente ninguém que morava em São Paulo sabia de sua existência. Foi num trabalho de pesquisa de cultura popular em Goiás, em 1976. No ano seguinte, fiz uma entrevista com ela, para publicar no jornal Versus, em que eu era um dos editores. Mas os outros editores achavam que eu estava exagerando, quando dizia que ela “tinha futuro”, apesar dos seus oitenta e tantos anos de idade. Ninguém quis publicar. Voto vencido, levei a matéria para o jornal Movimento, em que a editora de cultura era a Maria Rita Kehl. Foi, que eu saiba, a primeira matéria com Cora Coralina publicada em São Paulo.

Cora Coralina era doceira, e só começou a publicar poesias com mais de oitenta anos, viúva e morando sem ninguém da família na cidade de Goiás, que o pessoal de fora chama de Goiás Velho, irritando seus moradores.

— Goiás Velho por quê? Onde é que fica Goiás Novo? — perguntavam irritados aos desconhecedores dessa sutileza.

Bem, numa das viagens a Goiás, eu vinha da Paraíba, onde havia me reencontrado com dona Roseirinha, uma mulher que tinha alguma afinidade com Cora Coralina. Dona Roseirinha foi casada durante um tempão, até ficar viúva, com um homem típico da elite local da época, tipo coronel. Não saía de casa, a não ser pra visitar parentes. Se saía à janela e ficava olhando a rua, em João Pessoa, o marido achava que ela estava se exibindo, ou qualquer coisa assim. Até as visitas ele mandava embora às 9h da noite. Quando ele morreu, ela passou a ter uma vida bem diferente, muito melhor. Os filhos não puxaram para o marido dela, eram todos animados, festivos, e sua vida melhorou muito, com passeios, muita leitura... Pode-se dizer que ela “desabrochou”, como se dizia antigamente.

Comentei com a Cora Coralina, a história da dona Roseirinha, e pedi que ela confirmasse ou não minha impressão: a de que a viuvez dela, como de dona Roseirinha, foi uma libertação. Ela só começou a ter coragem de escrever e mostrar seus versos depois de viúva. Ou não?

— Não. Não foi — disse ela. — Eu me libertei mais tarde ainda: só depois que meu último filho casou e fiquei sozinha. Não só o marido é uma prisão. Os filhos também — completou sorrindo.

Numa das minhas viagens a Goiás, muito tempo depois, voltei a falar com a Cora Coralina, comprei mais um livro dela, “Poemas dos becos de Goiás e estórias mais”, e pedi que sua dedicatória contivesse um pouco de reflexão sobre ela mesma. Ela escreveu uma coisa parecida com um texto que conheci muitos anos depois, atribuído a Jorge Luis Borges (autoria contestada pela secretária dele). Acredito que ela não conhecia o tal texto, pois, pelo menos por aqui, ele só apareceu muito depois. É esta a dedicatória de Cora Coralina para mim:

Mouzar,
Como mulher, deveria ter sido mais bonita e menos idiota. Mais vaidosa e menos inteligente. Mais sofisticada e menos simplória. Devia ter tido a coragem que me faltou e não devia ter tido o medo que me sobrou. Devia ter sido mais mentirosa e menos sincera. Devia ter me casado com um moço e me casei com um homem 22 anos mais velho do que eu. Errei de ponta a ponta. Quando reconheci o erro já era tarde.
Cora Coralina
Cidade de Goiás 24-1-83.


(*) Jornalista, cronista, romancista, folclorista, boêmio e geógrafo, autor, entre outros, dos livros Memória Vagabunda, Pequena Enciclopédia Sanitária, Pobres, porém perversos e Santa Rita Velha Safada.

sábado, dezembro 13, 2008

A morte e a morte de Valêncio Xavier


Wilson Bueno

Conto com que os grandes jornais e as revistas especializadas estejam preparando, no mínimo, um alentado dossiê sobre a vida e obra de Valêncio Xavier - um dos mais inventivos prosadores surgidos no Brasil nos últimos tempos, recém-falecido em Curitiba, aos 75 anos. À exceção da imprensa local, pouca ou quase nenhuma foi a repercussão nacional da morte do escritor, em condições cruéis, devastado pelo Alzheimer.

O paulistano, e polaco, Valêncio Niculitcheff, morava há mais de 50 anos entre nós, onde produziu vídeos, peças, filmes, textos, programas de televisão. Foi colaborador assíduo de Nicolau, o tablóide lendário. Ali, garanto, fez história.

Trabalhador incansável, o interesse por diversas áreas o tornava inquieto, excitado sempre e rabugento em tempo integral.

Nunca deixei de o perdoar, mesmo as vezes em que me atacou duramente, num delírio que já era a sua marca, muito antes de a doença começar a devorá-lo, devagar e de modo insidioso, em 2002. Jamais criticou o que escrevo, coisa que ele, mesmo engolindo em seco, parecia admirar. Afinal vibrávamos na mesma pauta - a da busca de uma maior expressividade da prosa brasileira. Ao largo, ao menos, dos romancetes que se fazem por aí com vistas a provocar comoção e lágrimas.

De todos os livros de Valêncio onde, de modo singular, único e insubstituível, a intervenção gráfica era o seu estilo & estalo e a sua mais insolente maneira de criar, prefiro o Mez da Grippe. A meu ver, um autêntico clássico contemporâneo, ao lado apenasmente do Catatau, de Paulo Leminski, e de Galáxias, de Haroldo de Campos.

Várias vezes instado por amigos a visitá-lo em sua casa do Campina do Siqueira, não tive coragem de vê-lo derruído pelo Alzheimer. A última vez que nos falamos foi através de um longuíssimo telefonema que ele, já desconhecendo que estávamos estremecidos, me privilegiou. Fomos além de todos os anéis de Saturno...

Ultimamente sabia de Valêncio por ouvir falar. Diziam que levava seus textos à Gazeta do Povo, onde colaborou por décadas e que, puro caos infantil, não eram, óbvio, publicados. Ele pensava que sim e renovava a colaboração com obsessiva freqüência. Abraçava inimigos fidagais na rua...

E acho que não sabia mais se escrevia ou bordava. Adeus, velho! Fica a sua lição, a grande lição do inconformista e do iconoclasta que achava a literatura brasileira uma coisa "pouca digna de Alain Robbe-Grillet", um dos santos de sua devoção.

Pelo que disturbava, claro, a exemplo dele mesmo, Valêncio Xavier Niculitcheff, o coro dos contentes.

(publicado em 12 de dezembro de 2008, no site Paraná Online)

As muitas vidas de Valêncio Xavier


Os cineastas Pedro Merege e Beto Carminatti com Valêncio Xavier (ao centro) e seu fusca em foto de 2004: paixão pela cultura

Rafael Urban

Beto Carminatti, como todo adolescente típico dos anos 70, não era dos mais silenciosos quando assistia a um filme no cinema. Na Cinemateca do Museu Guido Viaro, criada em 75 e mais tarde, em 98, rebatizada como Cinemateca de Curitiba, Carminatti ia com freqüência com seu irmão Rui Vezzaro e as respectivas namoradas. Era bagunça na certa. "E o Valêncio não curtia isso. Para ele, cinema era algo sagrado, que não permitia essas molecagens", conta Carminatti. O Valêncio de sua frase é, de batismo, Valêncio Xavier Niculitcheff, o homem por trás da criação da Cinemateca, espaço que deu origem a toda uma geração de cineastas.

"Com toda e absoluta certeza, esse grupo, conhecido como Geração Cinemateca, não existiria sem a atitude de Valêncio. O que ele fez foi um ato heróico", enaltece um dos expoentes do grupo, o cineasta Fernando Severo. O ato de heroísmo foi promover a criação de um espaço cultural dentro da prefeitura da cidade, com poucos recursos e uma programação vasta. "Vi diversas retrospectivas e pela primeira vez muitos dos filmes do Cinema Novo. E lá tive aula de montagem com o Peter Przygodda, editor dos filmes do diretor alemão Wim Wenders, e de direção com (os cineastas brasileiros) Ozualdo Candeias e o Rogério Sganzerla", lembra.

Xavier não é apenas o criador do espaço que deu abertura a toda uma geração do cinema paranaense. É também um escritor de reconhecimento nacional, celebrado a partir de 98, quando sua obra passou a ser editada pela Companhia das Letras. "O Mez da Grippe e Outros Livros", escrito desta forma, com grafia de época, reúne uma série de trabalhos e foi listado entre os mais vendidos da Revista Veja.

"Ele já tinha sentido esse reconhecimento antes, quando foi para São Paulo, onde escreveu no Estado e na Folha. Foi aí que ele se deu conta do quanto era admirado", explica a filha de Valêncio Xavier, a engenheira de alimentos Ana Pasinato Niculitcheff, 35. "Meu pai sempre falou da dificuldade de ser reconhecido em Curitiba e entendia isso como uma característica do povo daqui."

Há três meses nasceu Laila, filha de Ana e a primeira neta de Valêncio. "É só uma pena que ele não esteja bem para curtir esse momento. O Alzheimer faz com que tenhamos de dividir as atenções entre ele e a pequena." Depois do diagnóstico, em 2002, Valêncio Xavier ainda escreveria um conto publicado no livro "Rremembranças da Menina de Rua Morta Nua e Outros Livros".

Xavier veio para Curitiba em 68, para trabalhar no Canal 6, deixando para trás a São Paulo da infância, retratada no livro "Minha Mãe Morrendo e o Menino Mentido", e o emprego com Sílvio Santos. Na época, escrevia para os programas do apresentador que comprava horários nas TV Globo e Tupi. A função incluía roteirizar, ao lado de Tulio de Lemos, "Namoro na TV". "Mas meu pai não se considerava paulistano. Ele dizia: Sou curitibano. E por isso mesmo escreveu sobre a cidade", lembra a filha Ana.

Em "O Mez da Grippe e Outros Livros", ele retrata o surto da gripe espanhola na Curitiba de 1918. Usa de imagens de arquivo, jornais da época e trechos que ele mesmo escreveu e que descrevem a trajetória de um estuprador. A estética não-usual em que combina imagem e texto é uma marca de sua obra. "Ele foi dos escritores precursores da multimídia", comenta Cristovão Tezza, escritor nascido em Lages (SC), mas que mora no Paraná desde os dez anos de idade.

A opinião de Tezza é compartilhada pelo professor de literatura brasileira da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Paulo Venturelli. "O trabalho de Valêncio é extremamente de vanguarda. E quebra a estética realista, marca da literatura brasileira atual."

Venturelli entende que Xavier é um autor também reconhecido no Paraná. "Há muitos alunos de mestrado e doutorado escrevendo teses sobre a sua obra", diz. "Pela sua inquietude e preocupação metalingüística, se destaca dos demais. Valêncio Xavier é um autor de ponta."

Box

Biografia e adaptação para longa-metragem

De freqüentador assíduo da Cinemateca, nos anos 70, Beto Carminatti virou cineasta e leitor compulsivo da obra de Valêncio Xavier. "Ele escreve como se estivesse fazendo o roteiro para um filme." Carminatti levou ao pé da letra a sua afirmação e no lugar do roteiro levou o livro "O Mez da Grippe e Outros Livros" para o set de filmagem na adaptação da obra que realizou ao lado de Pedro Merege, também discípulo do escritor e cineasta.

O filme, que já está pronto, deve ser lançado no segundo semestre. "Estava preocupada, pois apesar de a obra do meu pai ser bastante cinematográfica, achava que era impossível de ser adaptada ao cinema. Mas fiquei orgulhosa. É um filme que carrega o clima dos livros", comenta Ana Pasinato Niculitcheff, filha do escritor.

O longa Mystérios nasceu da parceria com Merege, com quem Carminatti já tinha trabalhado no belo curta "O Mistério da Japonesa", também adaptado da obra de Valêncio. O cineasta, porém, não quis parar por aí e já está filmando um segundo longa. Intitulado As Muitas Vidas de Valêncio Xavier, o filme é uma biografia sobre o escritor.

Há três anos, com a pesquisadora de cinema Solange Stecz, gravou algumas cenas com Valêncio em sua casa. O material será somado àquele que Carminatti está realizando agora.

"A cena de abertura é a Cinemateca sendo tomada pelas pessoas que vão ver os seus filmes e, depois, através de depoimentos, reconstruir a história do Valêncio", explica o diretor.

A pesquisadora Solange Stecz fala com carinho de Xavier. "Quando ainda estava na faculdade de Jornalismo, ganhei um concurso de crítica na Cinemateca. O prêmio era um livro de cinema. Fui conversar com Valêncio e lhe disse que queria o Curitiba de nós, escrito por ele e ilustrado pelo Poty (Lazarotto). Ele gostou tanto daquilo que não apenas ganhei o livro como o cargo de estagiária."

Harry Luhm, 78 anos de idade e boa parte deles dedicados ao cinema, conheceu Valêncio quando o escritor foi diretor do Museu da Imagem e do Som (MIS), nos anos 80. "Ele era extremamente dedicado e um tanto quanto temperamental", conta.

O jeito forte e por vezes ríspido de lidar com as pessoas é lembrado pelo colega Fernando Severo. "Como todo gênio, ele tinha os seus rompantes." Luhm recorda de algumas noites que Valêncio passou em sua casa telecinando o filme argentino Tango, o que foi feito debaixo de muita discussão. "O Valêncio sempre tinha razão e eu discutia com ele por achar que eu tinha mais razão, mas ele nunca concordava."

No projeto do documentário, Carminatti ainda propõe uma viagem a Porto Alegre, Rio de Janeiro e São Paulo para gravar depoimentos de personalidades como José Rubens Siqueira, Jean-Claude Bernardet, Eduardo Coutinho, Vladimir Carvalho e Arnaldo Antunes; pessoas que tiveram contato com Valêncio Xavier ou que têm uma relação forte com a sua obra. O cineasta pretende ainda restaurar trechos dos curtas de Valêncio a serem utilizados no longa.

A obra cinematográfica do paulistano radicado em Curitiba foi toda realizada de maneira independente e com condições técnicas simples. "A lentidão da tecnologia não alcançava a velocidade de seu raciocínio", comenta Carminatti. (R.U.)

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"Grippe" no teatro

Não é apenas no cinema que a obra de Valêncio Xavier ganha destaque. No dia 24 de julho, estréia em Curitiba "Mez da Grippe", no Teatro Novelas Curitibanas. No palco, a Pausa Cia. de Teatro, companhia jovem, criada em 2005, busca a sensualidade no texto de Xavier.

"E como faz para levar isso ao teatro? Essa resposta a gente ainda não tem", comenta o ator da companhia Rodrigo Ferrarini. "Consideramos o (Paulo) Leminski e o (Dalton) Trevisan, mas foi na obra de Valêncio que encontramos o desafio maior." O trabalho será dirigido pelo carioca Moacir Chaves, que Ferrarini considera o melhor diretor de atores do País. (R.U.)


* Reportagem originalmente publicada no Caderno Folha 2 do Jornal Folha de Londrina, do dia 29/06/2008.


Sobre o texto: o “Mez da Grippe” é arrebatador. A reportagem é a minha primeira colaboração ao Folha 2, caderno de cultura do jornal.

Ponto de partida: ler “Mez da Grippe” durante a faculdade foi algo incrível. Me dava conta ali que outra literatura era possível. Mais tarde, ainda na universidade, descobri que Valêncio não era apenas um baita escritor, mas o grande responsável pela Cinemateca de Curitiba. Aumentou aí a minha curiosidade de saber um pouco mais sobre sua vida. As filmagens da cinebiografia concluíram com chave de ouro essa idéia.

A reportagem: aproveitei para ler as obras de Valêncio que ainda desconhecia. Quando fiz as primeiras entrevistas, ainda por telefone, uma questão começou a martelar minha cabeça. Merege, Solange, Severo e mesmo Carminatti me sugeriram que eu não deveria citar a doença que acomete Valêncio desde 2002: o Mal de Alzheimer. “A família não gostaria de ver isso publicado”, me disseram. Carminatti chegou a propor que eu conhecesse Valêncio, o que não foi aceito pela família. De algum modo, já estava resignado que a família não iria dar um depoimento.

No dia 24 de julho, uma terça-feira, os ventos mudariam de direção. Fui acompanhar a gravação dos primeiros depoimentos de “As muitas vidas de Valêncio Xavier” – título do qual me aproveito e utilizo na matéria. A Cinemateca estava tomada não apenas pelos amigos e conhecidos de Valêncio, mas por Ana, sua filha, com a neta Laila no coloco. Ela estava um tanto receosa, mas topou falar comigo numa boa. Não toquei no assunto da doença de seu pai, mas, por alguns momentos, ela citou o assunto, comentando que tinham de dividir as atenções entre ele a pequena Laila. Conversamos por um bom tanto, em que ela me falou de como era ser filha de Valêncio Xavier. Escrevi um trecho sobre a conversa, que acabou cortado pela editora da versão final (afinal de contas, a página de jornal tem seus limites físicos), e que reproduzo abaixo:

Eu queria um pai normal

Quando era criança, Ana Pasinato Niculitcheff escutava alguns nomes estranhos nas constantes conversas que seu pai tinha ao telefone: Polanski, Visconti e Saura. Pouco mais tarde, se encantaria com a exibição de “Bodas de sangue”, na Cinemateca. Depois, viveria próxima daquele universo, chegando a trabalhar na bilheteria de um dos cinemas administrados pelo pai. Quando adolescente, estava certa de uma coisa: queria um pai médio, um pai normal. “Eu achava que se ele fosse advogado, médico ou dentista não passaríamos tanta dificuldade”, conta, uma vez que Xavier não entrava apenas com a paixão e dedicação em seus projetos como com o dinheiro do próprio bolso.

Ana sentia-se livre para fazer suas escolhas. Conta que seu pai nunca insistiu para que visse um filme ou lesse uma obra do escritor argentino Jorge Luis Borges. “Eu falava: ‘Pai, faz a minha tarefa da escola?’, e ele me dizia: ‘Filha, você tem que aprender sozinha’.” Na adolescência sentiu a pressão por ter um pai especial, mas de uma coisa estava certa: queria trilhar um caminho diferente. “Olhava para ele e pensava. ‘Não quero ser comparada a você.’ Também não queria ser apenas uma versão medíocre do que ele era.” Ana acabou optando pela engenharia de alimentos. No mundo das artes, chegou a flertar com a fotografia, o que deixou o pai bastante animado.

O que parecia um fardo, mais tarde Ana percebeu como uma dádiva. “Hoje dou graças a Deus por ter nascido nessa família. Noto que o que há de melhor em mim eu aprendi com ele.” (R.U.)

Depois, tirei algumas dúvidas com Ana pelo telefone. Sua mãe, dona Luci, não quis dar entrevista. Mas a filha fez a ponte, repassando algumas perguntas simples. Eu precisava saber qual a época que tinham vindo em definitivo para Curitiba. A voz de dona Luci, que eu escutava ao fundo da ligação, lembrava dos detalhes. Falei de um livro que estava buscando (“Rremembranças...”) e Ana me disse que eu poderia buscá-lo em sua casa no dia seguinte, pois ela tinha um exemplar para me dar. A sala de estar da casa de Valêncio Xavier, no bairro Ahú, é pequena e aconchegante. Nas paredes, algumas pinturas e duas gravuras do amigo Poty. Ana chega e se diz preocupada por me fazer esperar. Eu, do lado de cá, estava feliz por ela me dar a oportunidade de estar ali. Ela me apresenta o livro "Rremembranças da Menina de Rua Morta Nua e Outros Livros", o último publicado por Valêncio e me diz que aquela cópia é para mim. Lamenta por Valêncio não poder autografá-lo.

“Uma coisa sobre esse livro é que o meu pai queria que tivesse sete contos, pois tem um em que ele trabalha com o número 7. Por isso, ele escreveu o conto ‘Coisas da noite escura’. É o único publicado e escrito depois do diagnóstico da doença. E, que me lembre, é a primeira vez que conto isso para alguém.” Ana assentiu: sim, aquela era uma informação que poderia estar na matéria. Fiquei triste, pois, na edição, parte do trecho acabou cortado e o nome do conto acabou ficando de fora. “Coisas da noite escura” encerra-se assim: “O padre tina rosto cinzento e os olhos vermelhos, as unhas compridas e afinadas na ponta, isso tudo me deixou assustado e resolvi sair: ‘Boa noite senhor padre, vou para o hotel’. ‘Não, não vai. Vai ficar aqui’, disse ele. E me matou, eu Valêncio! Estou morto.”

“Rremembranças” é de algum modo, um retorno ao “Mez da Grippe”. Ana ainda me conta que “Macao”, um dos contos do livro, é um dos favoritos de seu pai. Das coisas que não couberam na página de jornal, essa matéria foi pródiga. Foram muitos depoimentos interessantes que ficaram de fora – como os de Eloi Pires Ferreira, Pedro Merege ou mesmo outros trechos de Severo, Carminatti e Solange. Tentei contato com a editora que levou Valêncio à Cia. das Letras, mas não consegui falar com ela. Por alguma razão que desconheço, ela não topa falar do assunto.

Ainda me restava a questão que me atormentava. Conversei com a editora da sucursal, Drica, que falou: “Rafael, se não aparece na matéria o porquê de ele não dar um depoimento, isso só chama mais à atenção das pessoas.” Matéria terminada, eu liguei para Ana, filha de Valêncio. – Olá Ana. – Ah! Oi, Rafael. – Ana, gostaria de citar a doença de seu pai na matéria, mas quero que seja algo sutil. Você topa que eu leia o trecho para você e você me diz se está razoável? – De acordo. – (aqui eu leio o trecho...) – Rafael, está respeitoso. Gostei sim. Pode colocar (...) – assim, um peso de algumas toneladas deixou o meu peito.

Repercussão: Eduardo Baggio, cineasta, amigo e professor de cinema, leu a matéria e comparou o trabalho ao de um cronista, relatando o seu tempo – idéia que, por sinal, me apetece. Sugeriu a leitura das crônicas jornalísticas de Rubens Braga. Severo e Solange leram e gostaram da matéria, sem maiores exaltações. A editora do caderno Folha 2, de Londrina, Phoenix Finardi, ficou um tanto furiosa com o tamanho da reportagem que enviei. Por um engano, contei errado os caracteres e ultrapassei uns 30% o permitido – o que levou ao corte do trecho que reproduzi acima e a cortes no box sobre o longa, especialmente trechos em que ambientava a gravação. Quando devolvi os livros que Ana me emprestou (além do que ela me deu ela deixou comigo um livro sobre a história da TV no Paraná e outro sobre a Cinemateca de Curitiba, que reproduz a bela carta de fundação), deixei um exemplar do jornal com ela. Porém, desde então não nos falamos. Não sei como a família recebeu a reportagem.

Beto Carminatti achou tenebrosa a escolha de sua foto, com uma lâmpada sob seu rosto e que abre a página de jornal. "Os amigos do norte (do Estado) me ligaram tirando sarro, dizendo que parecia que eu tinha saído nas páginas policiais", me disse Carminatti ao telefone bastante entristecido. Quanto ao texto, ele julgou que "tentou tratar de diversos assuntos, mas que ficou bacana", comentou, por fim, sem muita exaltação. "Cara, fiquei tão abalado com a foto, tão chateado, que nem dei muita bola para o texto. E não foi um, nem dois, muita gente me ligou falando da imagem. Confiei no fotógrafo; na hora de fazer a foto, não achei que ele cometeria tamanha infelicidade."

Erros, lapsos e confusões: a grafia de época de "Rremembranças” acabou ficando sem o segundo “r”. Tinha avisado a editora sobre “Mez da Grippe”, mas não deixei claro que a grafia não usual também era o caso do outro livro.

Para completar, segue um pequeno quadro com as obras de Valêncio Xavier publicadas pela Cia. das Letras:

"O mez da grippe e outros livros"
328 páginas, Companhia das Letras (1998), R$ 59

"Minha mãe morrendo e o menino mentido"
224 páginas, Companhia das Letras (2001), R$ 53

"Rremembranças da menina de rua morta nua e outros livros"
144 páginas, Companhia das Letras (2006), R$ 42,50

(publicado no blog materiaspublicadas.blogspot.com em 29 de junho de 2008)

quinta-feira, dezembro 11, 2008

Leônidas Arruda: o eterno guerreiro


Pedro Wilson Guimarães (*)



“Vai companheiro
vai meu irmão
no paraíso canta a canção
que diz da vida
que diz da morte
que anda solta no meu sertão/cerrado”


Geraldo Vandré



O Partido dos Trabalhadores perde Leônidas Arruda, fundador do PT de Goiânia, de Goiás, do Brasil. A CUT perde um militante, um dirigente, um lutador. A Universidade Católica perde um mestre. A Amazônia perde um poeta – assim como Thiago de Melo e como Chico Mendes – Leônidas Arruda era um Filho da Floresta. A OAB e os trabalhadores perdem um advogado militante, Leônidas Arruda era um defensor das causas do povo. O mundo perde um ativista: Morreu Leônidas Arruda, dos direitos humanos, do meio ambiente, da cultura popular. Todos perdemos. Hoje, todos nós nos sentimos assim meio órfãos.

Cumpre-nos a árdua tarefa de comunicar a população de Goiás, aos companheiros e companheiras do PT, aos amigos e amigas, muitos, de Leônidas Arruda, que ele partiu. E é com enorme pesar que comunicamos o falecimento do advogado e militante do Partido dos Trabalhadores, Leônidas Arruda. O corpo do "eterno guerreiro" vai para uma morada eterna para ficar eternamente em nossas lembranças. Memória viva de nosso Partido. Leônidas Arruda esteve em todos os momentos históricos, em todas as lutas travadas, como candidato, como dirigente, como militante, coordenador, colaborador, amigo e companheiro.

Em 1982, quando ninguém além de nós acreditava, lá estava ele, Leônidas Arruda, à frente da trincheira como candidato a Deputado Federal. Em 1985, quando Goiânia resgatou o direito de eleger diretamente o seu prefeito, estava Leônidas Arruda, candidato a vice-prefeito, travando a luta daquela gloriosa campanha inesquecível, que nos foi tirada na calada da noite. Enfim, esteve presente, sempre presente, em cada ato, em cada fato.

Ninguém, mais que Leônidas Arruda, se doou tanto à causa do povo. Militante fiel, combativo, fez do Partido dos Trabalhadores a sua trincheira para a defesa do que era certo, do que acreditava. Fez da profissão um sacerdócio na defesa dos mais humildes. Fez da vida uma poesia militante, atrevida, aguerrida, de combate. Um poeta amazonense que adotou Goiás para ser o seu refúgio e sua Pátria. Um goiano por adoção que viveu intensamente a alma do cerrado.

Leônidas combateu o bom combate em todas as direções, em todas as latitudes e longitudes, com fé e esperança, com sonhos e utopias, com intensidade e fervor. Um caminheiro da estrada da canção, dos versos, das causas e dos melhores sonhos sonhados pela humanidade peregrina de Deus que quer e merece uma sociedade melhor, mais justa e mais fraterna. Semeou a boa semente e deixou plantada no coração de milhares de amigos e companheiros a crença na liberdade, nos direitos humanos, na igualdade e no socialismo. Plantou no coração de Fabrício e Romero, seus filhos, os mais belos ideais de vida. E nós, que tivemos a honra de conviver por tantos anos na presença de Leônidas Arruda, afirmamos aqui que a luta continua.

Leônidas poeta, amante da palavra é preciso buscar em Thiago de Melo, outro poeta amazonense para lembrá-lo de forma plena: “Filho da floresta, água e madeira, voltei para ajudar na construção da morada futura. Raça de âmagos, um dia chegarão as proas claras para os verdes livrar da servidão”. E no adeus goiano de Leônidas Arruda, lembrar “Sob o olhar dos olhos d’água”, um poema seu, para eternizar a literatura: “Faça-se o poema em um piscar de olhos d’água; Poema do copo d’água, e do galhinho de (ARRUDA), que salvam as crianças, do mau olhado e do vento-caído”

Vai companheiro, vai meu irmão, no paraíso canta a canção. Vá juntar-se a Apolônio, Lélia Abramo, Mário Pedrosa, Paulo Freire e Florestan. Vá ter com Padre Josimo, Ricardo, Nativo da Natividade, também nossos irmãos, estrelas desta constelação. O Partido dos Trabalhadores guarda um luto vermelho, da cor da esperança. Goiânia, Goiás te reconhece filho desta terra: “Leônidas Arruda, Presente!!!”



(*) Pedro Wilson Guimarães. Deputado Federal PT/GO. Ex-Prefeito de Goiânia. Professor das Universidades Católica e Federal de Goiás.

Meu amigo Leônidas, de quem espero ter sido um dos 300


Algum dia de 1967. Eu devia ter uns onze anos. Minha família havia se mudado há pouco tempo para uma nova casa, quase no canto da Rua Parintins com a Borba, abandonando nosso velho ninho na Rua Waupés quase canto com a Barcelos, mas sempre no bairro da Cachoeirinha. O hoje escritor, jornalista e chargista Mário Adolfo, que devia ter uns treze anos, era meu guia nesse território inóspito e desconhecido.

Num domingo de manhã, ele passou em casa e me levou para bater bola no “campinho”, que ficava ali onde hoje é a quadra coberta do GRES Andanças de Ciganos. Ele tinha esse nome porque era do tamanho de uma quadra de futebol de salão – apesar das traves serem quase de campo oficial – e convivia com uma heterogênea mistura de barro, areia, grama, ervas daninhas e algumas árvores estrategicamente posicionadas. A majestosa castanheira na entrada da área do lado esquerdo, por exemplo, era quase um beque natural. A mangueira, do outro lado, também.

O concorridíssimo “racha” era de cinco contra cinco, tempo de dez minutos, quem fizesse o primeiro gol, ganhava, se a partida terminasse empatada em zero a zero, os dois times saíam de campo. Simples assim. Entre crianças (nós) e marmanjos (os outros), uns 20 times disputavam aquelas peladas furibundas.

Normalmente, Mário Adolfo era o nosso goleiro. Não que ele fosse ruim na “linha”. Não era. Acontece que ele tinha uma agilidade incrível, principalmente nas bolas altas, onde superava sua baixa estatura com uma elasticidade de felino, e costumava “fechar” o gol. Suas “pontes” esteticamente perfeitas e de uma segurança a toda prova são algumas das melhores lembranças que guardo da infância.

Nesse dia, Mário Adolfo decidiu jogar na linha e nos apresentou o novo goleiro do time: Leônidas Arruda. O sujeito devia ter uns dezoito anos e chegou apoiado em uma bengala. Pior: uma das pernas dele havia sido cortada um pouco abaixo do joelho. Fiquei cismado: aquele goleiro saci-pererê era queimação de filme, na certa.

Leônidas deve ter cagado e andado pras minhas desconfianças. Tranquilamente, ele vestiu a camisa de helanca de goleiro e se posicionou embaixo da trave, deitado de lado como uma coelhinha da Playboy se preparando para pegar sol. Calculei mentalmente a altura da trave (cerca de 1,80m) e senti que na primeira bola por cima a gente saía de campo.

Mal o jogo começou, o enjoado Becão tomou a bola do Luiz Lobão (nosso principal atacante) e meteu um foguete no ângulo, exatamente na forquilha onde supostamente fica o ninho da coruja. Leônidas voou na bola e espalmou, cedendo o escanteio. Confesso que nunca tinha visto aquilo: um sujeito levitar e tirar uma bola indefensável. Foi o meu primeiro alumbramento.

A partir daí, eu entendi exatamente que diabos quer dizer “superação”. O Leônidas conseguia rolar em cima de si mesmo, pra ir de um lado ao outro debaixo das traves, de acordo com o ataque adversário, sem deixar um minuto de gritar pela marcação. E fazendo acrobacias aéreas que lembravam o goleiro Gilmar, do mitológico Santos e da seleção brasileira, ou o Lev Yashin, da não menos mitológica seleção russa.

Imagine uma criança engatinhando pra um lado e pra outro, numa atividade febril, e de repente levitando para espalmar bolas indefensáveis, engatinhando até a entrada da área pra dividir a bola com um troglodita, voltando rapidamente pro gol e fazendo defesas suicidas. Eu nunca havia visto aquilo. Provavelmente, nunca mais vou ver.

Mesmo com um time capenga (eu, Mário Adolfo, Luiz Lobão e Fernando Língua), a gente ganhou umas dez partidas porque havia uma muralha no nosso gol chamado Leônidas Arruda. Quando perdemos, fui lá conversar com o sujeito. Ia agradecer por aquele domingo maravilhoso, claro (a gente nunca, antes, havia ganhado três partidas seguidas).

Em vez de se sentir o Tao da Física, o acrobata filho da puta recitou um poema do Fernando Pessoa. E me convidou a dar uma passada na casa dele, numa vila de sapé, ao lado da casa do Mário Adolfo, para conhecer sua produção literária. Comecei a querer ser poeta naquele dia. Por causa de um saci-pererê encantado chamado Leônidas Arruda.

Ficamos amigos de infância, apesar da diferença de idade. Quando eu e Mário Adolfo desenhávamos alguma história em quadrinho, Leônidas era o nosso primeiro crítico. Ele lia, apontava erros de linguagem ou de enquadramento, sugeria novas aventuras, enfim, participava ativamente de nossa formação intelectual e quadrinística.

Aí, de repente, no início dos anos 70, Leônidas sumiu. Sem mais nem menos, ele se mandou pro Araguaia, em companhia dos irmãos Ademar e Capitão. Falo disso em outra oportunidade. A dor pelo sacana ter morrido há alguns dias, sem que eu tenha voltado a abraçá-lo, ainda lateja de viés feito uma ferida não-cicatrizada. Valeu ter te conhecido, meu brother!

sexta-feira, dezembro 05, 2008

Grafitagem em Sampa



Nesse sábado, dia 6, a partir das 10h da manhã, vai acontecer em São Paulo um evento inédito, trata-se do 1º Free Arte Fest do Brasil - o It`s Yours Take It! - São Paulo. O evento, que faz parte da programação da Semana Jovem da Prefeitura de São Paulo, tem como foco principal o Graffiti. É uma exposição gratuita onde as obras serão sorteadas e entregues gratuitamente para o público presente.

Serão 12 horas de Arte de Rua de graça para o público, DJs, MCs, B.boys, Rap e o ponto alto que será o sorteio das obras que serão expostas. Chegue cedo, adquira sua senha para concorrer a uma das obras e passe o dia prestigiando a Arte de Rua!

Representando os DJs e B.boys teremos Gueto Freak, Sampa Master e convidados e os DJs F-Zero, Alan (Master Crews), Ney (Tapuias Kauim), Guinho (B.boys e Cia) e Pinguim (8* Batalhão).

No Rap a presença de Enézimo e DJ Nato PK (Pau-de-dá-em-doido) lançando o seu disco "Enézimo, Um Cara de Sorte" e BV (Irmandade Negra) juntamente com DJ RM, mostrando as músicas do disco "Astro Sagitário".

Os MCs serão representados pela Afrika Kidz Crew, que vai trazer até o evento a Batalha de Freestyle, que ficou conhecida como "A Batalha do Metrô Santa Cruz".

Haverá ainda performances de Graffiti com os artistas: Chambs, Bagulhos, Morto RV, Ozi, Cris, Gejo, 8º Batalhão, Rapto, Bats, Rim, Tri minas, Gryllo, Dumeen, Dingos e Gênio.

Local: Beco do Aprendiz, Rua Belmiro Braga s/n Vila Madalena (veja mapa)

Informações: 0xx(11) 9661-2643 / imprensa@revistaelementos.com.br

Entrada gratuita

segunda-feira, dezembro 01, 2008

O pensamento muito vivo do rei da pop art








Antonio Gonçalves Filho (AE)

SÃO PAULO - O livro já começa com uma conversa telefônica maluca entre Andy Warhol (1928-1987) e uma enigmática pessoa simplesmente chamada de B., a quem pede conselhos e faz confidências do tipo "minha grande ambição é comandar um show de televisão". B. responde que é uma ambição chinfrim, que o rei da pop art (ou "rainha") deveria pensar alto, algo assim como ser presidente dos EUA e receber seus convidados cada dia com uma peruca diferente.

Ia ser igualzinho como na Factory, estúdio de Warhol, mas "tudo à prova de bala", garante a voz do outro lado da linha - menção ao atentado de Valerie Solanas em 1968, que o feriu com um tiro. Quase seduzido pela idéia de ser presidente, Warhol prova que falava sério ao se definir como uma pessoa "profundamente superficial". Duvida? Então, o livro "A filosofia de Andy Warhol" (Editora Cobogó, tradução de José Rubens Siqueira, 272 págs., R$ 43) talvez desfaça suas dúvidas a respeito da principal figura do movimento de arte pop norte-americana, que teria completado 80 anos este ano, não fosse uma operação de vesícula há 21 anos.

O livro, best-seller no original, estranhamente só agora ganha a sua tradução brasileira. Publicado em 1975, seus verdadeiros autores são a secretária do pintor, Pat Hackett, e o ex-editor da revista "Interview" Bob Colacello, que depois escreveria horrores sobre Warhol no livro "Holy terror" (1990).

Bizarro

Colacello o define como "um fofoqueiro milionário, espertíssimo nos negócios, que fingia não estar nem aí com o que se passava ao redor". A secretária Pat Hackett, antes dele, publicou "Diários de Andy Warhol" (LP& M, 1989, 799 págs.). Neles, antecipou a observação de Colacello sobre a vocação mundana do ex-patrão. Nem precisava. Dois filmes produzidos por Andy Warhol e agora distribuídos em DVD pelo selo Magnus Opus - "A revolta das mulheres" (1971) e "Flesh for Frankenstein" (1973), ambos dirigidos por Paul Morrissey - comprovam seu gosto pelo bizarro e sua inclinação para o escândalo.

Andy Warhol já era um grande empresário quando o livro "A filosofia de Andy Warhol" foi publicado nos EUA, em 1975. Um ano antes, assinara um contrato com o editor Harcourt Brace Jovanovich para publicar este e mais outro título, uma biografia da atriz Paulette Goddard, "Her", que não concluiu.

Para se certificar de que seus aforismos filosóficos teriam boa acolhida junto à mídia, Warhol fez um tour por nove cidades americanas, seguido por uma temporada européia destinada a promover o livro na Itália, França e Inglaterra. Tudo para atestar que a obra, sim, era sua, e não de sua secretária Pat Hackett, do ex-editor da "Interview" ou da amiga Brigid Berlin, com a qual gravou a maior parte dos depoimentos do livro, uma mistura de memorialismo, fofocas e guia de auto-ajuda para corações desesperados.

Avareza e paranóia

Warhol, um deprimido, resistia à entropia fazendo do livro um compêndio de citações irônicas - e freqüentemente depreciativas - sobre o amor, sexo, trabalho, morte, fama e economia. O fato de envolver tanta gente em suas produções não era sinônimo de generosidade, mas de avareza. Colacello conta, em "Holy terror", que, ao concluir cada capítulo, entregava-o a Warhol, que imediatamente telefonava para Brigid Berlin (a B. do livro), gravando sua reação e enviando a fita para que a secretária Pat Hacklett a transcrevesse e desse o retoque final.

Assim, ninguém poderia reclamar direitos autorais. Paranóico, desconfiava de todos. Ele mesmo trata de explicar a origem de sua esquizofrenia logo no primeiro capítulo. No fim dos anos 1950, sentiu que atraía para si os problemas das pessoas que conhecia e procurou ajuda psiquiátrica. Tivera três colapsos nervosos quando criança e os ataques - conhecidos como "dança-de-são vito" - sempre começavam nas férias de verão, quando não tinha nada a fazer além de ouvir rádio e deitar na cama com sua boneca.

Manter-se ocupado foi a fórmula que encontrou para resistir à entropia, forjando sua estabilidade pessoal em cima de uma estratégia: a de provocar atrito entre seus colaboradores. O relato biográfico mostra que Warhol também se sentiu usado pelos outros desde os 18 anos, quando dividiu com 17 pessoas um apartamento de subsolo.

Nenhuma trocou confidências com ele. Só quando comprou seu primeiro aparelho de TV parou de se preocupar em manter relações próximas com outras pessoas. Dizia ter um caso com ela e só a traiu quando descobriu o gravador, mais confiável que as estrelas da subcultura pop que freqüentavam a Factory. "As pessoas têm muitos problemas com o amor, sempre procurando alguém para ser a Via Veneto delas".

José Ribamar Mitoso relança "Os Artistas de Março"


O Fórum Permanente da Diversidade Cultural no Amazonas (FPDCAM) convida todos os artistas, músicos, escritores, produtores culturais e a população, em geral, para nos dias 4 e 5 de dezembro, das 9 às 18h, prestigiarem o relançamento do livro "Os Artistas de Março - Um Movimento Artístico na Amazônia", do escritor José Ribamar Mitoso, que ocorrerá no Auditório da Câmara Municipal de Manaus, com o apoio cultural do Banco da Amazônia S.A. (Basa), Escola do Legislativo Léa Antony e Fórum Permanente da Diversidade Cultural no Amazonas.

"Os Artistas de Março- Um Movimento Artístico na Amazônia" é muito mais que um livro de ensaios sobre a estética das lendas amazônicas ou sobre a identidade dos povos da floresta no pós-globalização. Este livro, na verdade, contém o pioneirismo dos fundadores, dos formuladores, dos articuladores e dos artistas que, em 1990, construíram a base conceitual e política do que hoje se tornou o Sistema Nacional de Fundos de Cultura e Conselhos Gestores.

Entre questões estéticas de todas as artes, o talento mais rebelde da Amazônia conta a história de como o conceito de desenvolvimento sustentável em cultura foi formulado e levado à prática por entidades artísticas amazonenses como o Sindicato dos Escritores, a Ordem dos Músicos, o Sindicato dos Músicos, a Federação de Teatro, a Associação Amazonense dos Profissionais de Dança, o Grupo Pombal, a Associação Amazonense dos Artistas Plásticos, a Associação Pró-Cinema e Vídeo, a Associação dos Compositores, a Associação dos Grupos Folclóricos do Amazonas, a Associação Amazonense de Escritores, entre outras.

Para ser "científico", o escritor, antes de mostrar a política cultural dos sistemas de fundos públicos e conselhos gestores que se instalou em 1700 cidades do país, mostra a política cultural monárquica de D. Pedro II, dos modernistas em São Paulo, da era Vargas, da era Juscelino Kubitschek, da ditadura militar.

Mostra também a política cultura da isenção fiscal e dos fundos estatais de Sarney, do neoliberalismo cultural de Collor e FHC, finalizando com a história de superação destes momentos, à partir da Constituinte Estadual de 1989. Para não deixar dúvidas para o nosso "complexo de inferioridade" e para a nossa vocação de importadores de modelos externos, o escritor mostra que o Art. 203, da Constituição amazonense de 1990, tornou-se a Resolução nº 2, da I Conferência Nacional de Cultura, realizada em Brasília, em 2005. Segundo o escritor, isto nos torna, pela primeira vez na nossa história, como exportadores de cultura.

Neste momento, no qual o Sistema de Fundo Públicos de Cultura e Conselhos Gestores eleitos e paritários será votado no Congresso Nacional, nada melhor do que refrescar a memória do Amazonas e do país. Assim, o relançamento deste livro, o primeiro a tratar da política cultural do governo Lula, torna-se não só o mais importante evento literário para o momento, como o mais atualizado, instigante e profundo.

O escritor informa que o debate em pauta é o sistema nacional de cultural, mas nada impede o público de debater, no mesmo evento, a estética das artes Amazônicas e a nova identidade cultural dos povos da floresta na era da "desglobalização", conceito criado por ele.