Pesquisar este blog

sexta-feira, março 13, 2009

Poemas de Armando Freitas Filho


SOBRE UMA FOTO DE EDWARD WESTON

Nua, anônima, 1923. Vinte anos presumíveis
branca, em decúbito dorsal, com o tronco
arqueado (talvez pela respiração presa
no instante único da foto, ou melhor:
foi a foto que a sustou, a suspendeu
para sempre), e mais o cheiro, parado
do grosso cabelo preto do púbis
do pouco que aparece nas axilas não raspadas
que saboreio, degusto, engulo em seco
sinto o gosto, agora, porque a pele
do corpo é de hoje, setenta e oito anos depois
e brilha, lisa, morena de sol, sem nenhum sinal
de vida, porém. Teus olhos fechados te encerram.


MONROE

Marilyn, de memória, 1949
clicada pela mão de Tom Kelley
em local desconhecido, sem nada
“exceto o rádio ligado”, sem nem
o futuro véu de chanel nº 5, nua
absoluta, sobre veludo vermelho molhado:
mancha de leite elástica, corpo veloz
em ascensão, muito antes de depois
da queda, boca aberta, chama
despenteada, extática no vento da música
com os cabelos, entre o louro e o cobre.


SOBRE UMA FOTO DE ANA C.

para Helô

O verbo colear cabe aqui, justo
em todas as suas flexões, e cola
exato, no músculo puro e nu
que se movimenta assim, escaldante
na velocidade de cobra ou de mercúrio:
de zero a cem, cobre o espaço do corpo
sem sentir a força da aceleração
nem a volta, serpentina, à inércia
do anel inicial. Nos dois estágios
cai como uma luva, veste-se somente
de si, com sua pele mais fina e final.


FOTOGRAFIA

Não amava o amor. Nem as suas provas.
Amava sua engrenagem. A urdidura
do palco, o holofote cego
com a possibilidade da luz.
A cortina caindo em pano rápido
na boca de cena, sob o coração imaginário
artificial e monitorado, diverso
daquele que batia dentro de si:
sem controle — na bela e na fera.


ATRÁS DA MÁQUINA

para Andréa Garcia e José Góes

Delineador de luz, de luar
feito à mão, fora da série
atmosférica e do registro do mar.
Dentro do escuro seco do estúdio.

Fotografar é ver de novo, envernizado.
É dar linha ao corpo para que ele voe
saia, desde o novelo, com todo o élan.

Para que ele se revele e entre
entre o preto e o branco, em foco:
flou, firme, na superfície, em face
do espaço, e se configure até o fim.


(Poemas do livro Numeral / Nominal que abre Máquina de escrever — poesia reunida e revista, publicado pela Nova Fronteira em 2003)

Nenhum comentário: