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terça-feira, março 03, 2009

Rescaldo da carnavália ximango - Parte 2


A galera do Luizinho durante um apronto em Petropólis (RJ) em 2005. Não faço idéia de quantos quilos de ganja eles detonaram em duas semanas...


Gustave Dirram na festa de carnaval (?!) em New Orleans, em 2003. Chamar aquela merda ("mardi gras") de carnaval, só o cara sendo francês, anão e viado...

Eu havia combinado com o Gil da Liberdade fazer o lançamento do meu livro “Alô, Doçura”, no Kais Bar, em Parintins, durante o “happy hour” da segunda-feira gorda. Calculei que, saindo de Manaus ao meio-dia de domingo, o barco chegaria à cidade, no máximo, por volta das 9 da manhã da segunda-feira gorda. Daria tempo de sobra para arregimentar os cachorros (Carlos Paulain, João Pedro Baranda, Careca, Bi Garcia, Vicente Matos, Gato, Henrique Medeiros, Raí Cabeça, Toni Albuquerque, Inaldo Medeiros, Tadeu Garcia, Fred Góes, Emerson Maia, etc) e transformar o convescote em um porre federal.

Na noite de domingo, no momento em que saio do camarote do barco para ir em busca de algum rango no bar – eu estava sem comer há mais de 24 horas, o que, para um cara obeso como eu (118 kg, bem pesados), é quase um crime hediondo! –, me deparo com o poeta Luizinho Marques, que eu não via há uns trezentos anos. Sabia apenas que ele continuava morando no Rio de Janeiro.

Foi uma festa! O sacana estava comandando uma verdadeira delegação de neo-hippies em direção ao “carnaval místico de Alenquer” (conforme ele me explicou). Passamos o resto da noite conversando sobre futilidades e enchendo a cara de cerveja Kaiser quase morna. Poeta ligado ao movimento práxis, Luizinho chegou a participar de um concurso de poesia falada que promovi no Barraka’s Drinks, na Cachoeirinha, no começo dos anos 80 (salvo engano, vencido pelo poeta Almir Graça).

Pra quem não sabe que merda é essa, a poesia práxis se classifica como um processo literário marcado por considerar as palavras que integram um vocabulário não como um mero objeto inerte de composição, mas, sim, como energia, matéria-prima em permanente transformação – repudiando a palavra-objeto dos concretistas –, onde a forma-conteúdo do texto se transforma em uma estrutura genérica e aberta, de tal modo que o leitor possa intervir crítica e criativamente no texto, exercendo uma função de co-autoria. Parece complicado? Nas não é.

O movimento teve como principal teórico o paulista Mário Chamie e como avatares o mineiro Afonso Ávila e o carioca Armando Freitas Filho, todos poetas de real grandeza. Exemplo de poema:

PLANTIO (Mário Chamie)

Cava,
então descansa.
Enxada; fio de corte corre o braço
de cima
e marca: mês, mês de sonda.
Cova.

Joga,
então não pensa.
Semente; grão de poda larga a palma
de lado
e seca; rês, rês de malha.
Cava.

Calca
e não relembra.
Demência; mão de louco planta o vau
de perto
e talha: três, três de paus.
Cova.

Molha
e não dispensa.
Adubo; pó de esterco mancha o rego
de longo
e forma: nó, nó de resmo.
Joga.

Troca,
então condena.
Contrato; quê de paga perde o ganho
de hora
e troça: mais, mais de ano.
Calca.

Cova:
e não se espanta.
Plantio; fé e safra sofre o homem
de morte
e morre: rês, rés de fome
cava.


Luizinho ficou meio puto quando perguntou pelas minhas poesias (eu também fui ligado ao movimento práxis) e, com o distanciamento brechtiano que se exige nessas ocasiões, expliquei que, agora, francamente, eu achava que poesia era “coisa de viado”. Claro que isso foi apenas o pretexto para fazer o motor do carro pegar. Falei sobre o que estava fazendo ultimamente (livros sobre música, causos, machismo, folclore político, essas coisas). Rimos muito ao nos lembrarmos das presepadas da “poesia marginal” (éramos todos jovens, pois não?), quando invadíamos botecos para “passar” (esse era o termo) nossas mensagens poéticas. Valeu a pena? A gente acha que sim.

Quando soube que eu estava indo pra Parintins, para lançar um novo livro, ele quase surtou. Tentou, a todo custo, me convencer a não ir dar força praquela “baboseira bovina” (Luizinho não sabe que a baboseira bovina chamada “carnaboi” acontece exclusivamente em Manaus. Em Parintins, o carnaval é como sempre foi e deveria ser: blocos na rua, com gente animada curtindo marchinhas e sambas de enredo. Simples assim.) Permaneci irredutível. Ele apelou.

Depois de me apresentar como “um dos melhores caras que ele já havia conhecido em sua vida”, mandou se sentar ao meu lado uma das fadas de seu séqüito fenomenal e abriu as comportas do inferno. Pois foi essa neo-hippie (Beth Luz do Sol, Beth Arco-íris, Beth Gota Serena ou algo do gênero – ela mudava de “sobrenome” de acordo com a posição do sol ou das estrelas), que se encarregou – por meio de massagens tipo do-in, dengos, afagos, cochichos, risinhos safados e otras cositas más – a me convencer de ir com eles a Alenquer. Eu não já conhecia Parintins? Então, por que não sair da mesmice e curtir uma coisa diferente?... Sinuca de bico. Bingo!

Depois de uma demorada negociação com o comandante do barco, Luizinho “esticou” minha passagem até a “morada dos Ximangos” e, prestativo como sempre, ainda se encarregou de vender entre os passageiros os 40 exemplares do “Alô, Doçura!”, que eu planejara lançar em Parintins e Santarém. Não sei se o pessoal comprou porque se interessava pela chamada literatura erótica de cunho pornográfico ou (o mais provável) porque poderia chegar em casa exibindo um livro autografado pelo próprio autor. Seja lá qual tenha sido a motivação dos compradores, não deu pra quem quis.

O certo é que a Beth Sunshine, Beth Rainbow, Beth Raindrops, Elisabeth Bishop, sei lá, foi responsável por me convencer a encarar a nova parada – sim, as cervejas Kaiser quase mornas também tiveram sua pequena contribuição. Mas a Beth... Pense na mulher melancia com a cara da Cléo Pires... Era por aí... Você resistiria? Nem eu.

Apesar do jeitão meio hippie (saia indiana, bustiê multicolorido, tatuagens tribais, adornos plumários na cabeça, uma incontinência verbal em pontuar suas frases sempre com um chatíssimo “entende?”), era cabeça feita: professora de Antropologia na UFRJ. Idade? Calculei – êh, cerveja morna da muléstia! – entre 25 e 30 anos. Podia ser um pouquinho mais. Podia ser um pouquinho menos. Dessas coisas de estrias e celulite eu nunca entendi bem...

Em menos de duas horas de conversa, me transformei em amigo de infância dos quase 20 acompanhantes do Luizinho. Era uma trupe miscigenada: havia cariocas (Mary, Estelinha, Rubão, Dandara), catarinenses (Beth, Jaiminho, Dolores), paraenses (Luizinho, Darley, Mônica), capixabas (Aninha, Fabrício), mineiros (Gustavo, Francine), gaúchos (Pereba e seu inseparável chimarrão, Lucinha, Margô) e o resto – eu e o francês Gustave, que eles chamavam “Dirram”, porque ele era baixinho e parecia ter “o cu de rã”. Gustave morria de rir.

Que porra era aquela?, questionei o Luizinho. Ele me explicou que há 20 anos vinha catequizando aquela turma para conhecerem o carnaval da Amazônia. Mas nada de encarar escola de samba em Belém, carnaboi em Manaus ou forrobodó em Boa Vista. A parada era ver a essência do carnaval em Alenquer, onde seus pais haviam nascido (ele é carioca). Falar que eu nunca havia ouvido falar no carnaval de Alenquer, quase iniciou uma pancadaria.

– Você está por fora, cara! Você está por fora! O carnaval de Manaus é uma merda! O carnaval de Belém é uma merda! O carnaval de Santarém, Parintins, Óbidos, é tudo uma merda! Tá tudo vendido, tá tudo dominado! Axé-music? Uma merda! Toada de boi? Uma merda! Forró-brega? Uma merda! Carnaval mesmo, de raiz, é em Alenquer! Lá só toca marchinhas das antigas! Lá ainda rola bisnagas de cheiro, confetes e lança-perfume! Você vai ver, cara! Você vai ver! – e ele vociferava isso como se a gente estivesse jogando pôquer em um saloon do Velho Oeste e o nojento tivesse percebido eu tirar um suspeitíssimo ás da manga. Pra começar a detonar seu Colt 45 de cano longo era um passo...

A interrupção providencial da antropóloga Beth Suzie Q (sim, de vez em quando ela virava roqueira) ajudou a serenar os ânimos:

– Porra, Luizinho, o carinha aqui não tem nenhuma obrigação de conhecer todas as manifestações populares da Amazônia. Dá um tempo! Ele deixou de ir fazer as coisas deles em Parintins pra ir com a gente pra Alenquer e agora você entra nessa? Ah, porra, vai tomar no cu! – e ela disse isso escandindo bem as sílabas. O cu do Luizinho acusou o golpe.

Ele pediu desculpas, me deu um abraço emocionado, falou que estava muito louco e resolveu ir dormir. Já devia ser mais de meia-noite, o bar estava ameaçando fechar e eu ainda não havia comido porra nenhuma. Falei isso pra Beth Balanço. Ela foi lá no bar, esculachou o moleque, depois desceu pro segundo piso do barco (onde fica a turma que viaja em redes) e retornou com um X-tudo, que detonei sem nenhuma cerimônia. Agradecido, a convidei pra passar a noite no meu camarote. Ela topou. O resto é história.

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