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sexta-feira, março 13, 2009

Vale a pena ser poeta


Tutty Vasques

Se fosse um filme, Armando Freitas Filho seria flor do orquidário de Woody Allen. O poeta tem sinopse para tanto, repara só: autor célebre completa 40 anos de carreira em 2003 tentando driblar a desagradável sensação de estar fechando a tampa de sua biografia ao reunir em antologia os treze livros que escreveu. Aflige-o, desde jovem, a idéia de que “não há saída viva para a vida”. Filho único de família castradora, católico praticante até os 33 anos, membro abstêmio de uma geração que pegou de tudo, hipocondríaco de pedra, gago e insone, ele ouviu música popular pela primeira vez depois de casado, o que lhe abriu as portas para o sexo livre, seu único vício na vida. Trata-se de um tipo que a gente julga só existir no cinema.

Esse roteiro foi escrito após duas horas e meia de conversa no escritório doméstico do poeta, na Urca. Armando estava ainda assustado com o volume – 608 páginas – da primeira prova em papel de Máquina de Escrever – Poesia Reunida e Revista, livro que lança quinta-feira agora, na Timbre do Shopping da Gávea. Doíam-lhe as costas e mais ainda o diagnóstico médico a respeito: ele não tinha nada. “Deve ser a TPL – Tensão Pré-Livro”, resmungou. A noite pontuou com gargalhadas o relato denso, trágico e à flor da pele que Armando Freitas Filho constrói para sua vida. Personagem de Woody Allen, segundo ele, é o escambau: “O cineasta não é hipocondríaco a sério pelo simples fato de ganhar dinheiro com isso”.

Fala sério: “Ser hipocondríaco é horrível”. Armando pensa na morte todos os dias. Enobrece qualquer sintoma vagabundo a ponto de transformar um incômodo em doença terminal. “É incrível a atenção massacrante que você dá a seu próprio corpo”, ouviu dia desses de seu clínico geral. O paciente narra suas mazelas com interpretação desconcertante. Ora indignado, ora resignado, o poeta é cândido e explosivo no exercício da palavra oral.

Fala muito. Lá pelos anos 80, o Baixo Leblon tinha imensa curiosidade de saber qual era a droga daquele cara que não consumia nada no banheiro e soltava o verbo feito louco entre as mesas do Diagonal, onde ingeria, no máximo, meio copo de Coca-Cola por noite. Armando nunca deu um tapa, um tiro, uma cafungada no lenço, coisa nenhuma que seus amigos experimentavam de monte. Arrepende-se amargamente das duas vezes em que encheu a cara na juventude. “Sempre tive medo de perder-me.” O poeta precisa estar inteiramente sóbrio para ser doido do jeito que é.

Doido a ponto de levar seu macarrão na água e sal para um jantar festivo na casa de amigos. Tem horror a viagens, pânico noturno e chama de Doutor Acaso o protagonista de suas superstições. Quanto tempo ainda lhe resta de convívio com a família? Não à toa, cuidar do corpo é uma de suas obsessões: “Faço ginástica como quem reza”. Que Deus o perdoe!

A família queria que ele fosse padre – médico e advogado também servia – e o garoto criado para a leitura e a música clássicas decidiu parar os estudos antes da faculdade. Não faz concessões. Sua obra não admite facilidades, lida com o efêmero, quando não trata da morte explícita. “Escrevo com algemas, minha poesia é gaga e empedrada.” O poeta, consta de sua sinopse, é gago e essa é mais uma de suas fraturas expostas. “Não consigo ler meus poemas em público sem gaguejar severamente.” Em conversas informais, lança mão de um truque: “Todo gago tem de ter um curinga verbal na manga para na hora do aperto colocá-lo no meio da frase.”

Acabam por aí suas fraquezas no embate com o outro. “Sempre acho que sei mais, que sou mais inteligente, e geralmente sou mesmo.” A supremacia intelectual tem uma variante inesperada. Armando considera-se craque com a bola nos pés. Ainda que não seja verdade (não há notícia de testemunha do campeonato de 1956 na Praia da Urca), sua narração para o gol do título arrepia amigos como eu e – ninguém é perfeito! – José Miguel Wisnik. Acompanhe: “Parei a bola no peito entre dois zagueiros adversários, girei 180 graus para a direita e, sem deixar a bola quicar, acertei na mosca o canto onde a coruja dorme”. Dá vontade de gritar goooool, mas esse é outro filme, nada a ver com Woody Allen.


(publicado na Veja-Rio, em 22 de outubro de 2003)

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