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quarta-feira, maio 06, 2009

Minhas andanças com Thiago de Mello (final)


Comigo, Thiago cumpriu o prometido. Na manhã do dia de Natal, ele pegou seu mini-barco “Princípe dos Mares” e me levou pra ver a melhor Pastorinha da zona rural do baixo-Amazonas, a vinte minutos de sua residência.

De cara, me apaixonei pela Cigana (uma voz linda), logo em seguida pela Florista (uns olhos de azul infinito) e, na sequência, pela Pastora Perdida (que bundão!). Minha macuxi me trouxe de volta ao mundo real.

Na forma mais tradicional desse folguedo, que assisti em Parintins, as moças se vestem de pastoras – chapéus de palha, túnicas multicoloridas, segurando arcos, cestas de flores e castanholas – e bailam diante de um presépio.

A dança não se restringe a lugares fechados, mas em forma de “desfile” pelas ruas da cidade, onde as pastorinhas cantam marchas em louvor ao menino Jesus e acabam envolvendo o resto da população na brincadeira.

Na zona rural, elas se apresentam em uma espécie de galpão improvisado – chão de barro molhado, cobertura de palha –, mas ficam tão compenetradas e graciosas, a despeito das roupas ordinárias, que é difícil não se emocionar.

Os responsáveis pela trilha sonora incidental – uma viola meia boca, um tambor de couro de gato e um acordeão carcomido pelo tempo – são agricultores pobres, analfabetos, que sabem os versos de memória e vão passando oralmente para as futuras gerações.

Essa Pastorinha que visitei existe há mais de 60 anos. Desde que voltou do exílio, Thiago de Mello tem sido um de seus patronos. A festa que eles fazem durante as visitas ocasionais do poeta são dignas de uma final de Copa do Mundo.

Na véspera do Ano-Novo, Thiago resolveu me mostrar sua segunda casa projetada por Lúcio Costa, localizada na praia Ponta da Gaivota, na Freguesia do Andirá. Para chegar lá, navegamos pelo Paraná do Ramos e pegamos um furo do Igarapé do Pucu, que se abre na Boca do Andirá.

No mini-barco “Princípe dos Mares”, ele, pilotando, eu e o prestativo Raimundo. Devia ser umas 5h da tarde. O rio Andirá, da cor de chumbo, estava cheio de “carneirinhos”, que é como os nativos chamam a espuma branca que se encrespa nas ondas por conta do vendaval que, vira e mexe, açoita o rio.

A gente não tinha avançado três metros em direção à travessia do Andirá, quando uma onda nos pegou de jeito e quase vira a embarcação. Fiquei nervoso, já que não sei nadar. Thiago consultou o céu e encostou o barco em um banco de areia. Ficamos ali, esperando o vendaval passar.

“Sabe por que esse lugar é chamado de vento geral?”, me perguntou ele, que tem um livro batizado com o referido termo. Eu não tinha a menor idéia. “É que aqui o vento sopra nas quatro direções, o dia inteiro, o tempo todo. Quando menos se espera, ele muda de direção. O navegador que não for experiente, acaba naufragando. Esse rio Andirá é tinhoso, mas de vez em quando ele se acalma. Basta ter paciência e esperar”.

Por volta das seis da tarde, quando começava a escurecer, o agitado Andirá se transformou em uma verdadeira piscina. Não havia uma única marolinha. Thiago ligou o barco e, em menos de 20 minutos, alcançamos a praia Ponta da Gaivota. Mal tiramos o barco d’água, o vento geral voltou mais abusado do que nunca. Eita rio tinhoso!

Batizado com o nome do tucano de estimação - Flor da Mata -, o refúgio é uma adaptação simplificada do projeto de Barreirinha. Mantidas as mesmas medidas - um retângulo de 10 por 8 metros -, além do telhado em duas águas e da estrutura com esteios e vigas de madeiras nativas, a divisão interna foi mudada. São dois dormitórios, banheiro, cozinha e uma sala-varanda num único piso.

À direita da casa principal há outra, para hóspedes, com três quartos. À esquerda fica o escritório onde Thiago passa a maior parte do dia. Ali ele mantém a biblioteca com obras queridas e material de consulta, CDs, televisão e vídeo. É onde escreveu “De uma vez por todas”, seu livro de memórias.

Quando se cansa de trabalhar, fica cismando na rede - a melhor “terapia”. Ou sai para ver o pôr-do-sol no Lago Itapecuru com os amigos, caboclos do rio, que “conhecem os segredos do vento, conversam com as estrelas da noite e vivem em permanente estado de solidariedade, embora não saibam soletrar a palavra Utopia.”

Na manhã seguinte, Raimundo pegou o “Princípe dos Mares” e foi a Barreirinha, para buscar a mulherada. Nossa passagem de ano foi curtida ouvindo Violeta Parra e Victor Jara. Desconfio que eu e Thiago, juntos, detonamos duas garrafas de uísque.


No primeiro dia do novo milênio, ele me levou para conhecer a festa da Marujada da Freguesia do Andirá, cujo mastro estava erguido a 800 metros de sua casa. Como o mundo é mesmo pequeno, durante o fuzuê encontrei Paloma e Amanda, as duas filhas mais novas do poeta Zemaria Pinto, que estavam passando as férias na casa da mãe.

A Marujada é organizada e dirigida quase exclusivamente por mulheres. Os homens são tocadores ou simplesmente acompanhantes. Não há número limitado de marujas, nem tão poucos há papéis a desempenhar. Nem uma só palavra é articulada, falada ou cantada como auto ou como argumentação. Não há dramatização de qualquer feito marítimo.

Os homens, músicos e acompanhantes, são dirigidos por um capitão. Eles se apresentam de calça e camisa branca, com golas vermelhas, e gorro de marujo, enfeitados com fitas multicoloridas. Os instrumentos musicais são tambor grande e pequeno, cuíca, pandeiros, rabeca, viola, cavaquinho e violino.

No dia 26 de dezembro, consagrado à São Benedito, há na casa do juiz da Marujada um almoço, do qual participam todas as marujas e pessoas especialmente convidadas. O jantar é oferecido pela juíza, na noite desse dia.

A 1º de janeiro o juiz escolhido para a festa seguinte é o anfitrião do almoço desse dia. Durante o ágape é transmitido ao novo juiz da festa o bastão de prata com uma pequena imagem de São Benedito, que é o emblema do juiz, usado nos atos solenes da festividade. É nesse dia que ocorre a derrubada do mastro.

No dia 5 de janeiro, Thiago de Mello nos levou diretamente da Freguesia do Andirá até Parintins, via rio Andirá-Amazonas, pilotando garbosamente o “Príncipe dos Mares”.

A viagem durou cerca de três horas e foi uma das mais tranquilas que já fiz ao longo desse meio século de existência. O mini-barco só fez confirmar o dito célebre, “pequetito, pero cumpridor”. Valeu, poeta!

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