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domingo, junho 07, 2009

Da série "Vale a pena ler de novo": Contra Lamúria - O Livro


Na foto, o comitê do poetariado da Pindaíba, Aristides Klafke, Ulisses Tavares e Paulo Nassar (falta Arnaldo Xavier), arma sua barraquinha em feira-livre, vendendo seus peixes poéticos.

Nos anos 70, poetas e contistas se uniram em torno da Pindaíba (1974-1994), um dos grupos que convencionaram a identificar como de “literatura ou poesia marginal”.

No período mais inquietante, de 1974 a 1982, a cooperativa publicou mais de 80 mil exemplares, entre livros individuais e antologias. Sem contar jornais, cartazes, posters, e a participação de seus integrantes em recitais, palestras e performances, que, inclusive, geraram do então Regime Militar intimações para averiguações ameaçadoras.

Se a “geração marginal” do Brasil não revelou grandes poetas e escritores - qualidade que os cânones acadêmicos sempre acabam reforçando, até hoje, a visão empresarial míope vigente no país -, com certeza ampliou o número de leitores e fez crescer a leitura da obra de muitas “celebridades literárias”, que saíram das tiragens de mil livros, dos feudos dos suplementos lítero-compadristas (“do tu me citas, que eu te cito”) e “algumas” até do anonimato vitalício e hereditário.

Segundo levantamento do instituto carioca Rioarte, nessa época chegou-se a cadastrar mais dez mil candidatos a escritores e centenas de edições. O uso de recursos gráficos como mimeografía, caligrafia, xerox, tipografia e os mais inimagináveis suportes dava à movimentação um indiscutível traço de “guerrilha cultural”, contrapondo pelo avesso a idéia de “contracultura” - em voga nos 60 - porque no Brasil há muito que não se tem serviços para iconoclastas.

Nesse contexto, sem verba e com verbo, a Pindaíba não se limitou apenas às veleidades das formas de representação artística, traduzidas em poemas e contos, mas à participação política, ativa, em todo processo de redemocratização do país.

A atuação do escritor autor-produtor-vendedor nas portas de teatros, cinemas, universidades, fábricas, passeatas, comícios e necrológios como dimensão política e ideológica do seu próprio trabalho, não era algo inusitado, mas se constituíra numa das raras posturas de enfrentamento ao silêncio e ao pavor que a ditadura militar alastrava.

Poesia ou conto de época? Catarse? Confessionalismo esquerdococus de classe média? Em verso e prosa, o caos de tristes anos tristes: sagração da pornografia, o inconformismo, a humorização da tragédia, a dor da comédia política, a sujeira da linguagem, a lata de lixo dos esteticismos estruturalistas, escatologia, desregramentos morais e estéticos e a denúncia de torturas.

E, além disso, uma irônica e profunda crítica social, que mostrava não um repertório descontínuo e epifenômico - como insinuam os faxineiros ou zeladores das letras nacionais -, mas uma nítida radiografia, uma exposição das fraturas de um tempo.

A Pindaíba, hoje Casa Pyndahyba (com dois cálices), naquele momento de covardia generalizada, cooptação cínica e outros processos de fugas fugazes e recicláveis monetariamente, não queria entrar no sistema editorial tal como ele era e é.

Tecia-se uma consciência do limite da literatura como agente de transformação social assumindo o rótulo imposto de marginalidade sem autoflagelo, mas com distanciamento crítico. Era o contra-espelho debochado de uma indústria cultural culturalmente dependente dos “ismos” de plantão ou dos “cabrestos” & apeios” que a torna servil a qualquer derivação do termo “modernidade”.

Vale tudo. Nada vale. Tudo vale. Vale nada. Nem prenúria nem posfóssil. Porém no contrafluxo do subluxo discricionário: o pus da velha modernidade, como liame da relação indissolúvel entre a arte e a vida.

Esta ousadia custou aos membros da Casa alguns convites compulsórios aos órgãos repressivos que queriam saber quem financiava as edições: Albânia? Cuba? Moscou? Óbvio, vinha do inconformismo ante o arbítrio. In-fe-liz-men-te aqueles métodos e práticas da ditadura encontravam ressonantes correspondências nas esferas de celebração da norma culta literária.

Integrantes do grupo foram expulsos, por desacato a autoridade, do I Encontro de Literatura Brasileira (Sampa -1980 - Hotel San Rafael) sob a alegação atrabiliária: “Aqui é um encontro de escritores de verdade”, disse a escritora com os lábios retorcidos de nojo, envolta num cintilante vison e debaixo de uma vaia ensurdecedora. A Pindaíba não saiu.

“Contra Lamúria - O Livro” não é uma revisitação à antiga prática, neste momento em que se vende saudade até das dores doutras épocas igualmente nefastas. Apesar de continuarmos ainda numa ditadura de empresários insensíveis e de autores chorosamente ululantes, é a demonstração escancarada da lição que se teve. Sobretudo da alegria.

Chega de lamentos e reclamações do tipo: “As editoras não investem no autor nacional”; “Meus livros são obras-primas, mas foram recusados por oito editores burros”; “Falta patrocínio”; ” Cadê a política cultural dos governos municipal, estadual e federal?”; “Meus livros deveriam estar na lista da Veja, da Isto É, do Mais ou Menos”. Ou seja, ninguém me compra, ninguém me quer.

Conclusão: acabou o sonho geriátrico da imortalidade infantil, o sonho da consagração morrendo entre os copos de vinho dos lançamentos. Chega de “elucrobaçõe$” e eunucucaçõe$” porque há espaço para operar este adverso e podre pedaço do real sem contaminação, sem submissão.

Mesmo sem usar o esquema dos anos 70, a Casa continua na contramão, ou seja, no contrapé do estado de apatia que se abate sobre as letrinhas, letras & letronas, em um país de 160 milhões de habitantes. De uma minoria alfabetizada de intolerância, preconceitos e desonestidade e uma maioria analfabetizada de saúde, educação, comida e cultura.

Num país em que seus maiores veículos de imprensa escrita não chegam a uma tiragem de 700 mil exemplares e se arvoram em formadores de opinião (de quem?). O grotesco é a constatação de que ainda há escritores que têm ilusão no “poder” desta imprensa que faz de tudo para apagar, invisibilizar o artista brasileiro, e mal consegue registrar com a profundidade necessária os arrebentados do dia-a-dia que se alimentam em lixo hospitalar.

“Contra Lamúria - O Livro”, com duas edições de 75 exemplares, já nasce best seller. Edições esgotadas e pronto! Possivelmente atinge alguns dos poucos que lêem neste país. Uma pena: mas é o reflexo da vida brasileira.

Na verdade, seus editores, ao fazerem contrabando literário dos textos da maioria dos autores participantes, pagando cada com um livro, questionam os processos de intermediação entre o autor e o leitor, revelam os procedimentos seculares que pautam as discussões em torno de direitos autorais de livro no Brasil, onde o criador e a criatura são mais devorados pelas máquinas registradoras do que pelo silêncio melancólico do analfabetismo aviltante.

“Contralamúria - O Livro” é, apesar de tudo, uma sincera homenagem ao afeto. É o respeito às múltiplas adversidades - que o habita -, vale tudo, nada vale. À festa. À alegria. Uma salada mista e ecumênica para comemorar os vinte anos em que os artífices da Casa se encontraram na mesma encruzilhada do Brasil, ainda hoje, por teimosia ou “susto de bala ou vício”, com sonhos e esperanças renovados.

Arnaldo Xavier, Roniwalter Jatobá
Prefácio do Livro Contra Lamúria
São Paulo, junho de 1994.

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