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quinta-feira, novembro 12, 2009

Chico da Silva em cinco tempos


Chico da Silva mostrando uma nova toada para o advogado Tagore Arruda

1
Amigo há várias décadas do empresário Murilo Rayol, Chico da Silva telefonou para ele, para contar uma novidade:

– Murilinho? Aqui é o Chico da Silva. Quero te apresentar um amigo meu, compositor, músico e dramaturgo, que acabou de chegar de uma excursão na Europa. É o meu compadre Pedrinho Ribeiro, um dos canários de Parintins. O cara é pedra noventa, compadre!

Murilo Rayol convidou os dois músicos para irem à sua casa, onde estava rolando uma sessão de comes e bebes.

Na casa do empresário, feitas as apresentações de praxe, Chico da Silva e Pedrinho Ribeiro começaram a encher a cara, já que Murilinho é pródigo em tratar bem seus comensais.

Lá pelas tantas, Murilinho se aproximou da dupla, acompanhado de um rapaz portando um violão, e avisou:

– Olha, Chico da Silva, esse aqui é um amigo meu de muito talento, que está começando sua carreira como cantor e compositor de toadas. O nome dele é Carlinhos do Boi.

Chico da Silva cumprimentou o sujeito e este foi logo vendendo seu peixe:

– Sabe, Chico, eu estou com uma toada nova, mas ainda não terminei ela toda, está faltando burilar um pouco. De repente, a gente poderia fazer uma parceria e concluir esse trabalho, que, tenho certeza, vai fazer muito sucesso. O que qui você acha?

Chico da Silva tomou uma dose de uísque, encheu o copo novamente, olhou para o cantor iniciante, que continuava em pé, e mandou ver:

– Toca ela aí...

Carlinhos do Boi puxou uma cadeira, sentou-se de frente para o músico, dedilhou os acordes iniciais e começou a tocar uma música bem animada.

Chico meteu a mão nas cordas do violão, interrompendo a cantoria:

– Pode parar, pode parar! Isso não é toada, meu irmão!... Isso é rock’n roll!... – detonou.

Carlinhos do Boi se levantou e foi embora, puto da vida. A parceria terminou antes mesmo de começar.

2
O radialista Jurandir Vieira estava entrevistando o compositor Chico da Silva em seu programa na rádio Difusora e iniciou a rasgação de seda:

– Esse aqui todo mundo conhece. Além de meu amigo particular, Chico da Silva já foi um dos campeões de audiência do “Fantástico”, da rede Globo, já foi o maior compositor de jingles políticos de Manaus, já foi jogador de futebol profissional, já foi compositor da Alcione, já foi parceiro do Noca da Portela, já foi compositor do bumbá Caprichoso, já foi compositor do bumbá Garantido, já foi membro do Clube do Samba, já foi...

Tomando o microfone do radialista, Chico da Silva reagiu indignado:

– Porra, compadre, me enterra logo!!! Me manda logo de volta pro cemitério São João Batista, que pelo jeito esse seu amigo aqui já morreu e não sabe!!! Já foi, já foi, já foi... Já foi, um caralho!!! Eu sou, porra, eu sou!!!

Jurandir Vieira não sabia onde esconder a cara.

3
Feira do Tururi em Manaus. O compositor Chico da Silva encontra casualmente o cantor de toadas e compositor Alex Pontes, que acabara de se apresentar com o grupo Canto da Mata.

– Escuta aqui, parente, tu conheces o Aurélio? – indaga Chico da Silva.

Surpreso com a pergunta, Alex Pontes titubeia:

– Aurélio?... Que Aurélio?!

– O Aurélio, porra, o Aurélio... – insiste Chico da Silva

Pensando tratar-se de algum compositor da velha-guarda do boi Caprichoso, Alex Pontes resolveu sair pela tangente:

– Olha, parente, eu vou ser sincero: não conheço o Aurélio não...

– Logo vi, logo vi... – fuzilou Chico da Silva. “Porque eu folheei o meu Aurélio de cabo a rabo e não descobri o significado da palavra ‘pararara’. Que porra quer dizer aquilo?...”

Alex Pontes riu amarelo e foi embora.

A música “Pararara” (“Agora dance dance dance dance / Vai no gingado na batida do tambor / Pararara... Pararara... Pararara”), composição de Alex Pontes e Mailson Mendes, foi um dos grandes sucessos do bumbá Caprichoso.

E “pararara” foi uma omonatopeia criada pelos dois músicos apenas pra caber dentro dos compassos musicais. Simples assim.

4
Um dia, o músico Guto Rodrigues encontrou Chico da Silva bebendo em um bar na Praça 14, bastante introspectivo e sorumbático. Ele quis saber que mal o afligia e o sambista não se fez de rogado:

– Compadre, eu estou pensando aqui no nome artístico dos nossos músicos. Por exemplo, Paulinho da Viola. Esse é um nome que evoca uma linhagem nobre de instrumentistas, de violeiros, que lembra Mano Décio da Viola, pai do Paulinho. E Paulinho é um nome elegante, altaneiro, sonoro, alegre. Paulinho da Viola. Perfeito. Tem tudo a ver.

Chico tomou outro gole de cerveja e continuou:

– Veja o nome Zeca Pagodinho. Zeca porque é a versão carinhosa de José. Quer dizer, o cara não é nenhum Zé, é Zeca. E Pagodinho porque indica um partideiro de responsa, um bambambam que tem intimidade com os pagodes de subúrbio. Zeca Pagodinho. Perfeito. Tem tudo a ver.

Chico tomou outro gole de cerveja e continuou:

– Veja o seu nome. Guto Rodrigues. É um nome agradável, vistoso, de personalidade forte, que pode ser sinônimo de bancário, de militante comunista, de cantor de MPB, ou de tudo ao mesmo tempo agora. É um nome versátil, eclético, vibrante. Guto Rodrigues. Perfeito. Tem tudo a ver.

Chico tomou outro gole de cerveja e continuou:

– Veja o meu nome. Chico da Silva. Chico lembra Chico Alves, o rei da voz, o cantor das multidões, o canarinho de ouro do samba-canção. Silva lembra de cara a nossa estimada Xica da Silva, aquela escrava negra, bonita, orgulhosa, que bagunçou com a sociedade hipócrita do período colonial. Chico da Silva. Perfeito. Tem tudo a ver.

Chico tomou outro gole de cerveja, limpou a espuma dos lábios e fulminou:

– Agora vê esse nome: Carlinhos do Boi. Que porra é essa?! Que merda isso quer dizer?! Você já viu um nome de artista mais buceta do que esse, compadre?...

Guto Rodrigues preferiu não responder.

5
Considerado o “Rei do Carimbó”, o compositor paraense Aurino Quirino Gonçalves, o Pinduca, encontrou o compositor Pedrinho Ribeiro em Santarém, em 1997, e disse que queria gravar uma toda em que fossem homenageados os bois de Parintins.

Uma semana depois, Pedrinho lhe enviou a toada “Selva encantada”, de sua própria autoria, que Pinduca gravou e fez um razoável sucesso no estado do Pará. O compositor parintinense, entretanto, não recebeu um centavo de direitos autorais.

Em 2000, Pedrinho Ribeiro e Chico da Silva estavam em Belém, envolvidos naquela famosa quizumba para cobrar do PT os direitos autorais pela utilização da música “Vermelho”. Enquanto o nó não era desatado, os dois passavam as tardes na Pensão 77, folheando revistas de mulher pelada ou conversando sobre as toadas de Parintins.

Numa dessas tardes, Chico da Silva, que estava deitado em uma “baladeira”, interrompeu a leitura compenetrada que fazia de uma revista Playboy, se sentou na beira da rede, ajeitou os óculos e fuzilou:

– Naquela tua música, que foi gravada pelo Pinduca, há um equívoco...

Pedrinho tomou um susto:

– Equívoco?! Onde?

Chico da Silva lhe estendeu o violão e falou:

– Quer ver, toca ela aí...

Pedrinho começou a dedilhar o violão e cantar: “No meio da selva encantada / apareceu a ilha Tupinambarana / e o povo parintintim...”

– Taí o equívoco, taí o equívoco! – disparou Chico da Silva, interrompendo a cantoria. “A ilha não apareceu... A ilha já estava lá...”

Marxista empendernido, Pedrinho Ribeiro não se deu por vencido.

– Como assim já estava lá? Olha, Chico, eu não acredito nesse papo de criação vendido pela Bíblia. Isso é conversa pra boi dormir. Aliás, você já deve ter olhado para o céu e perguntado: de onde vieram os planetas, o Sol, as estrelas? Ou olhado para a Terra e perguntado de onde vieram as rochas, os animais, as plantas e os seres humanos? Pra mim, tudo o que existe no universo veio de uma bolha que, há cerca de 10 ou 20 bilhões de anos, surgiu em um tipo de “sopa” quentíssima e começou a crescer, até explodir, dando origem a toda a matéria que conhecemos. Essa bolha era formada de partículas de luz, os fótons, e de outras partículas minúsculas, que se criavam e se destruíam o tempo todo. Essas partículas foram se juntando e formando átomos cada vez mais pesados. Os primeiros átomos a surgir foram os de hidrogênio e os de hélio. Esses elementos se misturaram, formaram nuvens e uma parte delas gerou estrelas. As estrelas deram origem aos planetas, que inicialmente eram muito quentes. A Terra, por exemplo, não tinha água líquida quando se formou. Foram necessários milhões de anos para que se resfriasse. Isso permitiu a formação de rios e oceanos, nos quais os cientistas acreditam que apareceram as primeiras formas de vida, e a partir das quais vieram os bichos, as plantas e o homem. E também foi assim que apareceu a ilha Tupinambarana. Então, porra, a minha letra não tem nenhum equívoco!

Chico da Silva ajeitou os óculos de novo e comentou:

– Porra, meu irmão, agora você viajou pra caralho... Essa era da boa... Legítima manga-rosa do Maranhão...

Aí, se deitou na rede, e voltou a ler a sua revista Playboy.

Um comentário:

Tágore Aryce disse...

O Chico da Silva é uma lenda viva. Foi uma honra indescritível conhecê-lo pessoalmente. Textos assim ajudam a manter bem viva essa história genial desse magnífico compositor. Viva o Chico!