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sábado, novembro 07, 2009

Ensaio sobre a cegueira


Um exemplar de galo combatente do tipo taquiri

Setembro de 1976. Veterinário profissional e renitente criador de aves de capoeira, meu pai, o velho Simão, havia adquirido uma dúzia de galinhas caipiras e feito um galinheiro no quintal de casa, na rua Parintins, na Cachoeirinha, que possuía até mesmo uma chocadeira artesanal.

Seu objetivo era garantir tanto “os ovos nossos de cada dia” quanto “a galinha à cabidela de todos os domingos”, sem depender dos granjeiros da Colônia Japonesa.

No intuito de melhorar geneticamente o plantel do velho, comprei do Reinildo Cunha – um respeitado criador de galos combatentes no bairro da Glória, meu colega de classe na Utam e de trabalho na Sharp – um de seus famosos galos taquiri.

Era um galo ainda jovem, de grande porte, muito musculoso, de penas curtas, escassas e bem aderentes ao corpo, com cabeça de gavião e crista de ervilha. Devia pesar uns 5 kg. Sua única função era cobrir as galinhas caipiras.

Por essa época, o folclórico Kepelé, irmão do Wilson Fernandes, costumava desfilar pelas ruas do bairro carregando em uma sacola um robusto galo Leghorn branco, que ele chamava de “Clóvis” e também pesava uns 5 kg.


Um exemplar de galo Leghorn, conhecido na Cachoeirinha como "falso malaio"

Alguém se aproveitara da ignorância do Kepelé sobre o assunto e lhe vendera por uma pequena fortuna aquele velho galo de corte como se fosse um autêntico galo de briga malaio.

Uma tarde de sábado, aproveitando-se da ausência do velho em casa, o sempre maquiavélico Simas, meu irmão caçula, convidou Kepelé para uma luta de demonstração entre o seu suposto galo de briga malaio e o nosso recém-adquirido taquiri.

Kepelé topou, provavelmente pelo fato de seu campeão ainda estar invicto (nunca havia lutado antes). Mal comparando, foi como colocar dentro do octógono do UFC um campeão de vale tudo (o Wanderley Silva, por exemplo) para enfrentar um gordinho simpático (o Jô Soares, por exemplo).

Com trinta segundos de escaramuças, o taquiri já havia vazado um dos olhos do “Clóvis” e transformado sua vistosa crista de serra em um disforme patê de fígado.

Por causa do olho cego, o malaio começou a encarar o taquiri meio de lado durante a trocação de golpes, se transformando em uma presa fácil.

Com mais trinta segundos de escaramuças, o taquiri vazou o segundo olho do “Clóvis” e abriu um formidável corte no peito do malaio graças a uma esporada de trivela.

O altivo Leghorn branco parou de lutar e se transformou em uma submissa galinha pedrês, adotando a postura de “galinha chocando ovos”, com a cabeça pendendo para o chão.

O taquiri também parou de lutar e começou a andar em círculos em torno do rival, que permanecia acocorado e praticamente imóvel, aproveitando, de vez em quando, para emitir seu grito de guerra vitorioso que deve ter assustado a vizinhança.

Transtornado com o que estava assistindo, Kepelé jogou a toalha antes que o taquiri, mais abusado do que nunca, montasse, enrabasse e beijasse na nuca daquele desmoralizado campeão malaio.

Simas rapidamente separou os dois galos, trancou o taquiri no galinheiro e foi ajudar Kepelé a prestar os primeiros socorros ao “Clóvis”.

Nem os seguidos banhos de água gelada levantaram o ânimo do campeão malaio.

Inconformado com aquele desfecho previsível, Kepelé levou o Leghorn desfigurado para a casa do Luiz Lobão, na ladeira da rua Parintins, provavelmente para pedir ajuda de dona Francisca, mãe do Luiz e uma das enfermeiras mais competentes do bairro.

Para uma nova decepção de Kepelé e derradeira desgraça do “Clóvis”, dona Francisca estava de plantão no sanatório Adriano Jorge.

– Reage, Clóvis, reage, Clóvis! – berrava Kepelé para seu campeão malaio cada vez mais mofino. O galo nem aí.

Luiz Lobão olhou com extrema compaixão para aquele galo cabisbaixo e cego dos dois olhos, se aproximou, apanhou jeitosamente o galo no colo, começou a acariciar seu pescoço branco e ainda manchado de sangue, aí, como se estivesse pensando em voz alta, cantou a pedra:

– Em vez de deixar o Clóvis sofrendo desse jeito, é melhor a gente sacrificar o infeliz!

Antes que o Kepelé dissesse qualquer coisa, Luiz Lobão já havia quebrado o pescoço do campeão malaio.

Na seqüência, entrou na sua casa levando o galo pelo pescoço, colocou a panela de pressão no fogo e duas horas depois o “Clóvis” estava sendo servido em grande estilo.

O Simas, evidentemente, não foi convidado para o banquete antropofágico. Brincadeira tem hora.

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