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quarta-feira, novembro 18, 2009

O marco zero do novo Festival de Parintins em três takes básicos

Take 1

Por falta de grana (leia-se patrocínio), até o início dos anos 90 os bumbás de Parintins faziam um único enredo do boi, que era apresentado aos poucos.

No primeiro dia, exibiam 70% do enredo. No segundo dia, 80%. No último dia, 100%.

Ou seja, as tribos, destaques, itens oficiais e alegorias do primeiro dia, salvo pequenas modificações, também entravam na arena no segundo e no terceiro dia.

Era preciso um cuidado extremo durante as apresentações para as fantasias não se danificarem.

No dia 28 de junho de 1991, numa noite de céu estrelado, o bumbá Garantido fez uma apresentação medíocre, abaixo da crítica, e saiu da arena quase vaiado.

O bumbá Caprichoso percebeu a oportunidade de decidir a disputa logo no primeiro dia e entrou no Bumbódromo com força total: as melhores fantasias, as melhores alegorias e as tribos mais bonitas foram convocadas quase às pressas.

Assim que o touro negro iniciou sua evolução, levando a galera azul e branca ao delírio, o pessoal do contrário intuiu que o título tinha ido pras cucuias e começou a deixar o Bumbódromo.

De repente, sem que ninguém esperasse, caiu um aguaceiro infernal pra Noé nenhum botar defeito.

Durante cinqüenta minutos, um temporal diluviano varreu a ilha, provocou queda de energia no Bumbódromo e, literalmente, detonou as alegorias, fantasias, capacetes e cocares das tribos do Caprichoso.

A maioria dos índios ficou só com a pintura de guerra no corpo.

Quando, no meio do temporal, o levantador de toadas, Arlindo Jr., começou a cantar uma pungente toada, que dizia “Nossa Senhora, não molhe mais esse chão”, a galera do Caprichoso começou a chorar copiosamente.

O apresentador do bumbá, Gil Gonçalves, ficou mudo, incapaz de comentar o que estava acontecendo.

A Marujada de Guerra só faltou esfolar as mãos para retirar algum som dos tambores encharcados de água.

Sem energia elétrica na arena, a galera teve que levantar as toadas no gogó.

O título daquele ano, literalmente, tinha ido pro brejo.

A galera do Garantido voltou em peso para a arena, a fim de comemorar a desgraça do contrário.

Para salvar algumas das fantasias para o desfile da noite seguinte, a diretoria do Caprichoso transformou o entorno do Bumbódromo em uma feira de exibições de compressores.

Mas era impossível secar as penas sem destruir ainda mais as fantasias. Foi um tratamento de choque.

O Caprichoso desfilou nas duas noites seguintes apenas para cumprir tabela.

A diretoria do touro negro decidiu, então, que, a partir de 1992, haveria um enredo para cada noite. O Garantido copiou a idéia e o formato se mantém até hoje.

O temporal diluviano que detonou o touro negro virou o marco zero do “big bang”, que deu início à profissionalização do festival.

Take 2

No dia seguinte ao temporal que acabou com o bumbá Caprichoso, o padre Francisco Lupino liga para o prefeito de Parintins, Enéas Gonçalves, irmão do apresentador Gil Gonçalves.

– Enéas, me dê telefone de Gil!...

– Padre, o Gil ainda está muito abalado – explicou o prefeito. “A informação que eu tenho é que ele está sedado na casa dele. O senhor sabe o que aconteceu com o Caprichoso...”

– É sobre isso que eu quero falar! – interrompeu o padre.

O prefeito deu o telefone. O padre ligou para o apresentador.

– Gil, eu estou lhe ligando para que você tome uma providência com a direção do Caprichoso agora e já!

Ainda meio zonzo, o apresentador ficou intrigado:

– Uma providência?... Qual, padre?...

– É ir à comissão julgadora e anular o festival! – avisou Lupino, categórico.

– Porra, padre, o senhor então é um dos nossos?... – vibrou o apresentador.

– Estou lhe dizendo isso em coluna, fique guardado... – observou Lupino, que logo abriu o coração. “Gil, eu estava no Bumbódromo. Seu irmão me deu uma cadeira especial na Tribuna de Honra. E lá estava eu sentado, com meu escapulário na mão, rezando, rezando, quando viu o Caprichoso lindo! Caprichoso lindo! Caprichoso acabando Garantido na arena! De repente, parece que um dilúvio caiu na terra! São Pedro abriu as portas e esse dilúvio caiu! Eu olhava pra baixo, e era pena caindo, pena jogada no chão, Arlindo chorando, Gil, você chorando pro lado, eu fiquei em pé, olhando aquela cena, não me contive. Dei três passinhos pra frente, fechei os olhos e disse: Meu Deus, ninguém gosta mais desse boi do que eu!...”

Torcedor assumido do Caprichoso, o padre Francisco Lupino faleceu na Itália, no início de 2003.

Take 3

Primo do músico George Jucá, o agitador cultural Cacá Ferreira (aka “Cacá do Bar do Boi”) só tinha um sonho de consumo: desfilar no Bumbódromo como tuchaua luxo do boi Caprichoso, ostentando um magnífico capacete (aquele tipo de cocar gigantesco que mais parece uma cangalha).

Cacá ficava simplesmente deslumbrado com a disputa que todo ano eletrizava as galeras e encantava os turistas: os monumentais capacetes de Antonio Faria e Fernando Sérgio, o “Gudu”, do Boi Garantido, contra os não menos monumentais capacetes de Afrânio Gonçalves e Douglas Carmona, do Boi Caprichoso.

O luxo, a criatividade e o glamour de cada um daqueles capacetes daria um nó nas tripas de Evandro de Castro Lima e Clóvis Bornay, se algum dia os dois carnavalescos tivessem assistido a um Festival dos Bumbás de Parintins.

Um belo dia, Zezinho Cardoso, Sérgio Viana e Mercinha Marinho resolveram transformar o sonho de Cacá em realidade.

Eles se cotizaram e contrataram o respeitado artista Edivan Oliveira para construir o mais arrebatador capacete da história de Parintins.

De cara, avisaram ao artesão que dinheiro não seria problema.

Edivan não se fez de rogado. Encomendou 10 mil penas de pavão, 10 mil penas de faisão, 10 mil penas de rabo de galo e 10 mil penas de avestruz, além de dezenas de quilos de strass, paetês, canutilhos, cristais, pedras, luzes, espelhos e miçangas.

Intitulado “O Apogeu das Guerreiras Icamiabas no Lago da Lua”, o capacete tinha quase três metros de altura, pesava cerca de 50 quilos e, simplesmente, contava em detalhes a lenda das guerreiras Amazonas, incluindo a batalha contra os espanhóis de Francisco Orellana na foz do rio Nhamundá. Um luxo só!

Para suportar a cangalha monumental e fazer bonito na arena, Cacá teve que fazer seis meses de musculação na academia Cagin, em Manaus, onde adquriu 10 kg de massa corporal.

Ele desembarcou em Parintins na ponta dos cascos. Seu corpo de Schwarzenegger era uma das atrações do curral do Touro Negro.

Mas o destino é imprevisível. Assim que pisou na arena para acabar de uma vez por todas com a concorrência e inscrever seu nome definitivamente na história do festival, Cacá foi surpreendido pelo dilúvio que se abateu sobre Parintins.

Sim, era a fatídica noite do dia 28 de junho de 1991.

Por volta das 5 da manhã, a maioria dos diretores do Caprichoso estava reunida no Lanche do Falcão para lamber as feridas em virtude da desgraceira ocorrida, quando, de repente, surge Cacá, chorando copiosamente, abraçado a uma pequena sacola plástica da Marcly, que ele apertava febrilmente contra seu coração despedaçado.

– O que foi que aconteceu, Cacá? Cadê o teu capacete? – perguntou Ari Cavalcanti.

Sem dizer uma palavra, Cacá apenas mostrou rapidamente a sacola, e apressou o passo, com o rosto se esvaindo em lágrimas.

Pois é. Dentro da pequena sacola plástica estava tudo aquilo que sobrara do monumental capacete “O Apogeu das Guerreiras Icamiabas no Lago da Lua”: meia dúzia de penas de pavão e alguns paetês.

Foi uma consternação geral.

Cacá Ferreira daria a volta por cima 10 anos depois, quando desfilou no 1º Boi de Rua do Caprichoso, fantasiado de Zeca Xibelão, o maior tuchaua da história do Diamante Negro.

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