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sexta-feira, novembro 20, 2009

Um morcego na porta principal


Jamari França

O morcego na porta principal marcou a carreira de Jards Macalé de uma maneira tão forte como o rótulo de maldito, uma invenção da imprensa capaz de irritá-lo a ponto de gritar “maldito é a mãe!”, desabafo registrado pelos diretores Marco Abujamra e João Pimentel no documentário “Jards Macalé - Um morcego na porta principal”.

O documentário mostra como Macalé é uma figuraça já nas primeiras cenas em que ele duvida da capacidade dos diretores de retratá-lo devidamente e ameaça processá-los.

João Pimentel comenta que neste dia de filmagem, Marco Abujamra foi sozinho e registrou o desabafo diante da possibilidade de se ver inteiro na tela.

Apesar da bronca, Macalé ficou feliz com o resultado:

- Me senti muito bem porque sou eu, se fosse outro apedrejava (risos). Brincadeira. O que está ali não me agride, só me revela. Gosto da história que foi contada. Tem momentos bonitos como eu e minha mãe na rede. Eu mostrei para ela que disse: "meu filho tem coisas que nem eu sei" - conta ele numa entrevista por telefone depois do ensaio do show "Olho de lince", um tributo a Waly Salomão apresentado no Teatro Rival com Adriana Calcanhotto e Omar, filho de Waly .

Macalé flertou com o tropicalismo mas nunca aderiu, embora nada mais tropicalista que sua apresentação no Festival Internacional da Canção de 1969 com “Gotham City”, parceria dele com Capinam, uma forma de denunciar o clima sufocante da ditadura com as metáforas do morcego e do abismo na porta principal. E da caça às bruxas nos telhados das casas da cidade do Batman nas histórias em quadrinhos.

- Na época eu estava preocupado em estudar música. Aprendia violoncelo com Guerra Peixe. Quando o Caetano voltou de São Paulo com o disco “Tropicália” e me mostrou eu disse que não gostara. O que me atraiu foi a indignação e depois fiz “Gotham City” que era pós tropicalista. Eu fui pré e pós tropicalista, meu lance é só pra contrariar - discorda.

Outro momento marcante foi o “Banquete dos mendigos” em 1973 no Museu de Arte Moderna do Rio para celebrar os 25 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, outra forma de protesto contra a ditadura com as alusões do documento contra a censura e a tortura.

Ele teve a companhia de Chico Buarque, Milton Nascimento, Gonzaguinha, Paulinho da Viola, Gal Costa e outros com o MAM cercado pela polícia. Macalé conta que o show era em benefício próprio porque estava no vermelho mas, depois de pagas as despesas, ele continuou duro.


No documentário estão depoimentos de Ivan Junqueira, que era assessor de imprensa da ONU no Rio, e Paulinho da Viola, participantes do Banquete.

- O Cosme Alves Neto que era diretor da Cinemateca me disse que tinha um lance no museu alusivo aos 25 anos da Declaração e sugeriu que eu juntasse tudo. “Banquete dos mendigos” foi inspirado no nome do disco dos Rolling Stones (“Beggar’s banquet”, de 1968) porque o país sem direitos humanos era de mendigos mesmo - explica.

Macalé tem histórias muito boas registradas no documentário e vale contar pelo menos uma. Dori Caymmi conta que Macalé ficou três anos sem falar com ele porque introduziu um acorde na música “Tarde demais” que ele odiou. Dori conta que saiu da casa de Macalé e pegou um lotação para ir até Copacabana. De repente, entra Macalé no coletivo todo bichona e paga para o Dori que ele o tinha traído “com a safada daquela mulher” e desceu sem dar a menor indicação de que estava brincando. Dori conta que foi até Copacabana no maior constrangimento com todo mundo olhando para ele. Foi a vingança pelo acorde indesejável.

Entre os diversos depoimentos do documentário estão os de Gilberto Gil e do diretor teatral José Celso Martinez Corrêa. O primeiro contemporiza em torno da questão de fazer uma carreira sem concessões, com afirmações de que nada se pode fazer sem diálogo com o outro, o que já pressupõe uma concessão.

Já Zé Celso faz elogios arrebatadores: “Macalé não é maldito, ele é um luxo. A sociedade tem um encaminhamento muito ordinário, muito vulgar no campo da produção e se perde o que se tem de melhor”, vocifera.

- Eu conheci o Gilberto Gil como administrador de empresa, de terno e pasta, empregado da Gessy Lever. Gil mostra a visão dele como o grande administrador que fez dele próprio. Eu escolhi o risco, ele é formal dentro da administração pessoal dele, não tem problema nenhum - afirma.


O documentário mostra ainda a fase de Macalé com Moreira da Silva, o rei do breque e da malandragem, com quem tinha uma identidade absoluta:

- Com o Moreira eu aprendi a ser brasileiro, a ser carioca. Andava com ele pela rua e aprendia, foi uma lição de vida. Tudo que está ali é verdade - conta, lembrando a vez em que quase foi preso apesar dos esforços de Moreira, que tinha fãs entre os policiais de uma cidade do interior.

Depois de tentar tudo, Moreira chegou no ouvido dele e falou: “Acho que agora você se fudeu”. Mas não foi daquela vez, os canas aliviaram.

Macalé fez papéis no cinema, alguns mostrados no documentário junto com vários shows e intervenção delirante do amigo Waly Salomão com o genial poema “Jet legged”, num trecho em que as opiniões sobre Macalé se superpõem num emaranhado de sons e imagens. Um deles foi o show do MAM em 1973 em que ele tocava sentado numa privada.

- Me deram uma sala que tinha um elevador de carga. Coloquei todas as cadeiras viradas para o elevador, de onde saía para a privada que ficava no lado oposto e a platéia tinha que virar as cadeiras para ver - explica.

Ele diz que o objetivo da privada era provar que estava tudo uma merda. “Incluindo o show?”, provoco.

- Não, o show era genial (risos).

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