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quarta-feira, janeiro 27, 2010

Acima do Mundo


por Alexandre Matias

Experimente ficar um pouco sem a influência dos Beatles. Não conseguiu? Fácil entender por quê.

A cultura contemporânea está tão enraizada no estrago que os quatro cabeleiras do pós-calipso fizeram em nossa forma de compreendê-la e consumi-la que se torna realmente difícil enxergar até que ponto o legado do grupo de Liverpool interfere na vida cotidiana de qualquer um que vive do lado ocidental do planeta.

Os 20 milhões de cópias vendidas em apenas três meses pela coletânea “1”, que caminha para se tornar o disco mais vendido de todos os tempos, são apenas uma das provas da importância do grupo em nosso tempo.

Segundo a revista Rolling Stone, a coletânea “1” dos Beatles foi o álbum mais vendido dos últimos 10 anos e, além disso, o “fab four” conseguiu emplacar o primeiro lugar entre as bandas que mais venderam discos em 2009.

O catálogo remasterizado lançado no ano passado foi um dos grandes motivos para o grupo se manter no topo das paradas mundiais.

Em setembro de 2009, o site Amazon.com anunciou que 11 dos seus 25 CDs mais vendidos eram dos Beatles. Além disso, o grupo quebrou a barreira do universo musical e virou game com “Beatles Rock Band”, onde o jogador pode acompanhar toda a carreira da banda além de tocar boa parte da discografia.

Foi tudo arquitetado para acontecer assim. Cotado para os anos 80, mas abortado em razão do marketing natural que o assassinato de John Lennon deu à carreira dos Beatles, o projeto Anthology foi acionado durante a década de 90 como a cartada definitiva da importância da banda na história da música pop.

Devidamente ladeado por um disco duplo de faixas gravadas pela rádio estatal inglesa BBC (Live At The BBC, de 1994) e pelos relançamentos dos filmes Submarino Amarelo (Yellow Submarine, em 1999) e Os Reis do Iê-Iê-Iê (A Hard Day’s Night, em 2001), a ambiciosa historiografia beatle resultou em uma série de TV em cinco capítulos, uma coleção de oito fitas de vídeo, um luxuoso livro de mesa e três discos duplos contendo quase oito horas de registros não-oficiais dos Fab Four em sua fase de ouro.

Nesse meio tempo, Yoko Ono lançou a sua versão para a parte B da história, com a caixa John Lennon Anthology, Paul McCartney fez dois discos de reverência ao passado (Flaming Pie, de 1998, e Run Devil Run, de 1999), George Harrison relançou seu primeiro solo (All Things Must Pass, de 1970, reeditado em 2001) com pompa e até Ringo Starr gravou um álbum legal (Vertical Man, de 1999) com a participação de Alanis Morrissette, Steven Tyler e Ozzy Osbourne.

Tudo, claro, vendeu muito e garantiu páginas e horas de mídia para o grupo - e a consagração final veio na compilação de capa vermelha, o único formato em que os Beatles não haviam se aventurado oficialmente (a coletânea de hits em um CD simples).


O fato de Anthology ter sido lançado nos anos 90 também foi fundamental. Afinal, a década assistiu à maior onda de retornos na história do rock, à medida que este, aos poucos, entrava na casa dos cinqüentões.

Motivados também pelo espírito revisionista da última década do século, artistas e bandas do passado voltaram exigindo seu lugar na história - e a história se abriu para eles.

Em acústicos MTV, no Rock And Roll Hall Of Fame e em caixas e mais caixas de CD, seja em carne e osso ou em mono ou estéreo. Os próprios Beatles, os Sex Pistols, Stones, Bob Marley, James Brown, Velvet Underground, Big Star, Aretha Franklin, Lee Perry, Doors, Jimi Hendrix, Janis Joplin, Who, Black Sabbath, Ramones, Led Zeppelin, David Bowie, Monkees...

Todo o rock foi revisitado na última década e, fora os mortos, quase todos esses grupos retornaram aos palcos para desfilar sua carreira.

Talvez só os Stooges, o Clash e os Mutantes não voltaram - e não foi por falta de negociações -, mas tiveram horas de gravações inéditas empacotadas em edições de luxo (Fun House Sessions, Clash On Broadway e Tecnicolor, respectivamente).

Enquanto o rock descortinava seu passado na última década, os Beatles pingavam, no conta-gotas, o bumbo marcante do compasso da história, pontuando sua importância em doses homeopáticas e rígida qualidade. E cada gota trazia um álbum duplo cheio de músicas inéditas - e boas.

A excelência do grupo estava até em ensaios embalados por maconha. A química perfeita mantinha-se intacta 30 anos depois do acontecido.

Mas não é o mercado nem a estratégia de marketing póstuma que faz o grupo ter o nome que tem. Por trás da máquina de direitos autorais e da caixa registradora em forma de banda, os Beatles estão no centro da história do rock.


Dá para dizer que são o marco inicial dessa história, se pensarmos que os anos 50 (a época do rock’n’roll) foram tão marcantes para aquela música que começou a crescer demais por volta de 1964 quanto o blues dos anos 20, a canção do rádio dos anos 30 e o country e o rhythm’n’ blues dos anos 40.

Até os tempos de Elvis, os artistas eram poderosos, inatingíveis, super-heróis. Com os Beatles, ser artista parecia divertido, como a maioria das atividades em grupo quando se tem menos de 20 anos.

A forma como os quatro se comportavam era similar à de qualquer turma adolescente do planeta. De repente, qualquer um poderia formar uma banda.

A história ri, mas o pobre executivo da gravadora Decca que dispensou o grupo tinha razão: bandas com guitarras não estavam na moda. Foram os Beatles que inventaram isso.

E mais: foram eles que encorajaram o exército de bandas de rock que passou a brotar na maioria dos países do planeta.

Não parou por aí. Como irmãos mais velhos de uma geração, os Beatles guiaram todas aquelas bandas para além do que rezava a cartilha inicial do rock’n’ roll.

Se a onomatopéia pop reúne personagens tão diferentes quanto soul, country, jazz, Burt Bacharach e Carole King, é porque os Beatles quiseram desse jeito - desde o primeiro disco, vá ouvir.

Antes deles, era cada um na sua: música negra em um lado, música para adultos em outro, música caipira mais para lá, e assim por diante.

Os Beatles realizaram o movimento que veio unificar toda a produção feita para o rádio e criou, na prática, o universo que hoje chamamos de música pop.

Como se isso não bastasse, o grupo mostrou que o pop não precisava ficar restrito às referências musicais.


Agregando influências que iam do satanista Aleister Crowley a Gandhi, passando por Marlon Brando e Karlheinz Stockhausen (todos na capa original de Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band), os Beatles convidavam os ouvintes para visitar um País das Maravilhas de culturas estrangeiras, manifestações artísticas diversas, diferentes tipos de drogas, paz e amor.

A música pop em um instante poderia acondicionar qualquer assunto e transcendia as futilidades de seus temas de poucos anos antes, além de realizar experimentos com letras e música, com instrumentos exóticos e com o próprio estúdio.

Foram os Beatles que cavocaram a pequena fresta que derrubou a barragem da criatividade artística e da própria consciência dessa manifestação cultural como arte.

Com isso, a influência do grupo ultrapassava o âmbito do entretenimento e logo os quatro estavam dando entrevistas sobre política, drogas, amor livre, arte de vanguarda, comunicação de massa, maturidade e negócios.

Além disso, tiveram suas vidas particulares abertas ao público, fazendo com que este os acompanhasse e se identificasse com os quatro em um nível muito mais complexo que o musical.

Unindo isso a músicas que pareciam se encaixar com perfeição em certos momentos históricos - seja na trajetória da banda ou na do século 20 -, os Beatles criaram um vínculo entre artista e fã inédito na música pop. E perpetuado desde então.

O grupo ainda deu à história do disco uma enorme contribuição ao institucionalizar o álbum como unidade básica de indústria do disco.

Frank Sinatra pode ter iniciado a prática (em Hello Young Lovers) e Frank Zappa pode tê-la elevado à noção “conceitual” antes que qualquer outro artista pop (em Freak Out!), mas os Beatles é que popularizaram o formato, deixando o compacto como uma outra divisão do mercado, com músicas diferentes das que entrariam nos álbuns.

Outra gigantesca contribuição do grupo se deu no campo do merchandising artístico: o quarteto foi o primeiro a ter de lidar com termos como franquia, licenciamento e marca registrada fora do universo estritamente musical e são famosos os milhões de dólares que perderam no auge da Beatlemania, fazendo pequenas fortunas alheias graças ao uso de seu nome.

Ademais, alimentavam os fã-clubes com material inédito, criando o seu próprio fã-clube oficial. Sem contar o fato de que foram os primeiros artistas a precisarem de palcos maiores que as casas de shows da época, abrindo portas de ginásios e estádios para as guitarras do rock’n’roll.


Some tudo isso ao fato de ser um grupo muito preocupado com a reputação, que pensava a própria carreira a partir de um controle de qualidade rigoroso.

Foi o que fez a banda lapidar a sua imagem próxima da perfeição, tomando o cuidado para que cada álbum tivesse uma identidade e que cada um deles funcionasse como um capítulo específico em sua trajetória.

Assim, toda uma mitologia ajuda a elevar sua carreira ao patamar de lenda: a “morte” de Paul McCartney nas músicas de John e nas capas de disco; as históricas criações coletivas em estúdio, muitas delas baseadas no acaso; toda a pré-história oficial (da igreja em Woolton ao Cavern Club, de Hamburgo à saída de Pete Best); a figura do “quinto beatle”; as aventuras como homens de negócios; a separação tensa; “o sonho acabou” e a morte de John Lennon. Aliados ao tema central do grupo - o amor -, a imagem dos Beatles é um dos signos mais fortes da recente história ocidental.

Não é exagero dizer que o grupo é o movimento artístico mais importante do século 20 (uma vez que o modernismo tem raízes no 19). As provas irrefutáveis estão acima e sua larga influência no cotidiano é pouco percebida.

Como nomes cruciais cujas argumentações acabaram se diluindo no próprio fluxo histórico, tendo seus rostos cristalizados como figuras-chave de certas formas de pensamento (como Einstein, Guevara, Welles, Freud, Picasso, Newton, Van Gogh, Marx ou Chaplin), os Beatles são muito mais do que o conjunto de rock mais importante de todos os tempos.

Um caso à parte, uma nota máxima e um ponto de partida, o grupo formado por John, Paul, George e Ringo dá a seus descendentes motivos para continuarem tentando. Era a vontade de se tornarem os melhores que os fazia conseguir ser.

John, Paul, George e Ringo planejavam sua carreira e tomavam o cuidado para que cada álbum tivesse uma identidade e funcionasse como um capítulo específico na trajetória da banda.

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