Pesquisar este blog

sábado, janeiro 23, 2010

Chuva, suor e cerveja

O diretor artístico do mocó garante que você só vai usufruir plenamente do côncavo e do convexo do texto se estiver ligado nesse balanço: Não se perca de mim / Não se esqueça de mim / Não desapareça / A chuva tá caindo / E quando a chuva começa / Eu acabo de perder a cabeça / Não saia do meu lado / Segure o meu Pierrô molhado / E vamos embolar / Ladeira abaixo / Acho que a chuva / Ajuda a gente a se ver / Venha, veja, deixa, beija, seja / O que Deus quiser / A gente se embala, se embola / Se enrola, só pára / Na porta da igreja / A gente se olha / Se beija, se molha / De chuva, suor e cerveja.


Janeiro de 1976. Com a inauguração da sua nova fábrica de calculadoras, a Sharp do Brasil se consolidara como a maior indústria eletrônica do Distrito Industrial e líder do mercado brasileiro, desbancando a Philips do Brasil.

Juntando as três fábricas (televisores, aparelhos de som e calculadoras), a Sharp Transportes (gerenciada pelo querido Fernando Loureiro) e mais o pessoal administrativo, a nossa unidade fabril era um verdadeiro formigueiro humano com cerca de 5 mil funcionários, sendo 90% mulheres.

Era maior do que muitos municípios amazonenses.

Responsável pelo fornecimento de refeições da empresa, o empresário Flávio Gonçalves não sabia mais onde colocar dinheiro.

Foi quando ele comprou a decadente boate Le Bec Fin, na rua Delfim de Souza, na Raiz, fez uma reforma milionária e me convidou para ser o DJ residente.

A boate só funcionaria de quinta a sábado, das 22h às 3h da manhã. Não haveria venda de ingresso, apenas distribuição de convites para o público masculino. Mulheres poderiam entrar sem convite.

Meu salário de DJ residente seria equivalente a três salários mínimos. Aceitei na mesma hora.

Como ficaria meio contramão eu sair da Utam, no Parque Dez, pegar um táxi até a Raiz, para, depois, de madrugada retornar para o bairro da Glória, onde morava com o Jaques Castro e o César Abu, resolvi voltar para a casa do meu pai, na Cachoeirinha.

Minha cama de campanha, ao lado da do Simas, estava do mesmo jeito.

Acho que ele, já então com 14 anos, ficou feliz em me ver de volta, mas não demonstrou nenhum afeto.

Se limitou a falar que estava estudando xadrez (eu havia ensinado o fedelho a mexer as pedras dois anos antes) e que gostaria de jogar comigo.

Nessa época, minha irmã mais velha, Simone, e o Mário Adolfo estavam criando um bloco de carnaval chamado Andanças de Ciganos. Me engajei na equipe de fundação, coisa que teria sido impossível se eu continuasse morando do outro lado da cidade.

A boate do Flavinho era simplesmente deslumbrante. A iluminação era à base de luz negra.

Havia três produzidíssimos ambientes, com vários estofados de veludo cotelê roxo e mesinhas de vime com tampo de vidro. Espelhos por toda a parte.

Dois banheiros imensos com urinóis de porcelana de 200 anos. Barzinho bem estruturado em termos de bebidas. Uma pista de dança com iluminação estrobo e globo espelhado. Dezenas de pôsteres vintage decorando as paredes.

E o sonho de todo DJ: um superpotente sistema de som, com amplificador valvulado, dois toca-discos e um gravador de rolo.

Como seria uma boate freqüentada exclusivamente pelos convidados do Flavinho, sugeri que se chamasse “Privé”. Ele gostou e foi como esse nome que ela foi inaugurada no final do mês.


Em setembro do ano anterior, havia entrado para a empresa uma mulata de quatrocentos talheres que havia me tirado do sério.

Além de ter uma poupança estilo Adele Fátima, ela também tinha uns lábios grossos que sugeriam prazeres inenarráveis.

Para minha frustração, a Nega Aline era noiva de um sujeito que também estudava na Utam e vinha conseguindo estoicamente repelir todas as minhas investidas. Aquilo estava me deixando louco.

Na maior cara de pau, convidei a mulata para a inauguração da boate, onde eu seria o DJ residente. Se ela não gostasse do ambiente, eu a despacharia de táxi pra casa. Ela topou.

A festa de estréia da boate Privé, no sábado, foi um sucesso. Havia uns 40 homens, quase todos empresários do ramo de alimentação, e umas 80 mulheres escolhidas a dedo. Bebida e canapés a dar de pau, garçons atenciosos e uma trilha sonora de black music que não deixava ninguém ficar parado. Os discos eu havia levado de casa.

A Nega Aline chegou por volta das 20h e ficou me ajudando na passagem de som. Eu a mandava ficar nos quatro cantos da casa e confirmar se a massa sonora estava chegando sem distorções.

Depois, ela ficou ao meu lado dentro da cabine de som, colocando na capa os bolachões que eu retirava dos toca-discos. Por volta de 1h da madrugada, chamei um táxi que fazia ponto na boate, paguei a corrida adiantada até São Jorge e a despachei. Ela me deu um beijinho rápido na boca.

Flávio e seus amigos estavam em estado de graça. Voltei pra casa, por volta das 3h da manhã de ego inflado.

A fama da boate Privé correu na fábrica como fogo em capoeira. Todo mundo queria receber um convite para conferir a maravilha. Flavinho passou a ser o cara mais assediado da empresa.

Ele ficou tão empolgado com a presepada que me deu uma cópia da chave da boate, para que eu fizesse a passagem de som com mais calma. Não deu outra.

Comecei a convidar as meninas da empresa para me auxiliarem na tarefa. A gente saía da fábrica às 17h, chegava à boate às 17h30, eu testava a aparelhagem de som até às 18h, colocava uma trilha sonora de respeito no gravador de rolo e me sobravam 45 minutos de saliência com a parceira, antes que eu pegasse um táxi pra ir pra Utam.

Executando essa tarefa parcimoniosamente duas vezes por semana, devo ter transado com umas 50 meninas nos estofados da casa. O Flavinho nunca desconfiou de nada.


Em março, a Nega Aline insinuou que queria ir outra vez à boate. Era um sábado e a gente estava fazendo hora-extra na empresa.

Concordei em levá-la, mas adiantei que ela ir até São Jorge, tomar banho, mudar de roupa, e voltar pra boate seria uma perda de tempo desnecessária. Ela poderia tomar banho no nosso covil, que ficava perto da boate, e depois a gente ia pra lá a pé.

A nega sestrosa concordou. O banheiro da quitinete não tinha porta, de forma que quando fui levar a toalha pra ela se enxugar a flagrei nua em pelo. Ela tinha um corpo deslumbrante.

Na hora do pega pra capar, o primeiro impasse. Ela tinha pavor de engravidar. Se rolasse quete e totó, tudo bem, mas precheca só com a flauta encapada. Fiz o que pude, dentro das limitações impostas.

Por volta das 20h, deixamos o covil e fomos para a boate. Ela estava radiante. Coloquei uma sequência de músicas lentas (B.J. Thomas, James Taylor, Johnny Mathis) no gravador de rolo e a tirei para dançar. Ela entrou em estado de alfa.

Quando os habitués começaram a chegar, fomos para a cabine de DJ, onde ficamos o resto da noite trabalhando, bebendo e namorando. Por volta de 1h da madrugada, chamei um táxi, paguei a corrida e ela foi pra casa. Eu havia ganho o dia.


A Nega Aline começou a freqüentar o covil, mas o impasse continuava. Eu nunca havia usado camisinha nem pretendia usar. Do jeito que estava, estava bom.

Acho que foi na quarta ou quinta vez que a gente estava no rala e rola que um diabinho me deu um toque canalha: sem mais nem menos, garanti que ia praticar o famigerado coitus interruptus, ou seja, na hora em que a chaleira começasse a ferver eu daria marcha-ré.

Cabreiríssima, ela concordou. Acho que me empolguei demais porque na hora em que senti o comichão, em vez de tirar tentei entrar mais um pouco. Quando ela percebeu o que estava acontecendo, entrou em pânico.

Conseguiu se desvencilhar de mim e correu pro banheiro. Não fui ver o que ela estava fazendo, mas imagino.

Ela voltou chorando e me enquadrou legal:

– Porra, você é muito filho da puta! Eu nunca fiz com o meu noivo o que faço contigo e você ainda quer me sacanear... E agora? Se eu ficar gestante? Você é muito filho da puta, cara, muito filho da puta...

Tentei contemporizar:

– Nega velha, eu sou estéril. Já fiz dois espermogramas e todos dois confirmaram a mesma coisa. Eu só produzo líquido seminal, mas ele não contém esperma...

Ela se acalmou um pouco, mas continuou meio ressabiada.

A Nega Aline só voltou a sair comigo quase um mês depois, após ter menstruado e se convencer de que estava tudo bem. Mas a partir daí, ela mesmo trazia as camisinhas.

Uma vez, questionei:

– Você diz que não transa com o seu noivo, mas se um dia ele abrir sua bolsa e ver essas camisinhas aí dentro, o que qui você vai explicar?...

– Ele não abre a minha bolsa! – devolveu, rispidamente.

– Tudo bem, mas se um dia ele abrir?...

– Eu falo que meu irmão me pediu pra guardar! – disparou ela, já meio contrariada.

Preferi encerrar aquele papo ordinário.

Eu costumava encontrar o suposto noivo da Nega Aline na cantina da Utam, mas nunca sequer o cumprimentei. Ele fazia Engenharia Mecânica e era da turma que havia passado no 2º vestibular da instituição. Quer dizer, de uma maneira ou de outra, eu tinha precedência sobre ele.

Só não entendia o que a Nega Aline havia visto naquele almofadinha gorducho, com cara de nerd e jeito de funcionário público. Mulher é um bicho complicado.


Em abril, para espantar os gaviões que rondavam o meu barraco, assumi publicamente meu romance com a Nega Aline. No intervalo do almoço, ela ia me visitar no escritório central, onde ficava minha mesa, e provocava um alvoroço geral.

O escritório central era um imenso aquário sem divisórias, onde se concentravam os setores administrativos da empresa: Importação, Exportação, Despacho, Contabilidade, Faturamento, Serviços Gerais, Controle de Materiais, Controle de Scrap, etc.

Com exceção de duas secretárias, cujas mesas ficavam ao lado da minha, o resto da galera era formada toda por macho.

A Nega Aline entrava no escritório usando sua farda customizada (boné, miniblusa e uma calça abaixo do umbigo ultra-apertada), se debruçava sobre a mesa para me dar um bitoco e arrebitava o burrão. A fila do gargarejo (Jonga, Wilsinho, Haroldo, Reinaldo, Liberman, Zé Carlos, Tito, Airton, Geraldo, Marconi, Gilson, etc) ficava mesmerizada com aquela visão luxuriante.

Sério que só cachorro andando de canoa, eu me levantava da mesa, pegava ela pela mão e sumia dali. Os sacanas deviam me jogar praga.

Em maio, o diretor financeiro Tomzé Areosa, me chamou em sua sala e me deu uma nova missão: assumir, também, o controle de qualidade do campo, ou seja, a assistência técnica, bem como o controle de reposição de peças importadas.

Meu salário passaria a ser de Cr$ 55 mil (o salário mínimo era Cr$ 532,80) e eu poderia escolher seis técnicos ao meu bel prazer. Uma kombi com motorista seria deixada exclusivamente à minha disposição. Além dos técnicos, me deram uma secretária (Ana Beatriz) e um estoquista (Raimundo Souza).


No dia seguinte, saí do escritório central e passei a ocupar um laboratório imenso, do outro lado do prédio.

Escolhi os melhores técnicos de cada fábrica, deixando os gerentes de Produção verdadeiramente putos: Francisco Neto (aka “Netão”) e Jaques Castro, de televisores, Anselmo Martins e Francisco Assis (aka “Pão Molhado”), de calculadoras, e José Camurça e José Maria Leite (aka “Zeca Boy”), de aparelhos de som.

Era uma equipe pequena, mas de alto nível.

Passei a responder diretamente para o engenheiro Paulo Aratangy, em São Paulo, diretor responsável por todas as assistências técnicas espalhadas pelo país, e para o engenheiro Harada Nobustoshi, da Sharp Corporation, do Japão, responsável pelo envio de peças de reposição para Manaus.

Foi a partir dessa época que começamos a contrabandear pra São Paulo peças de reposição importadas para Manaus, única alternativa para não prejudicar os consumidores e recompor a custo zero os produtos defeituosos ainda em garantia.

Pelo contrato, a Sharp Corporation nos enviava 5% de peças a mais para substituir as defeituosas durante o processo produtivo.

Durante o processo produtivo, nosso índice de defeito não chegava a 2%. No campo, entretanto, esse índice chegava a 5%.

Como era quase impossível importar peças de reposição para o resto do país, resolvi me livrar das peças que estavam sobrando em Manaus.

A gente, por exemplo, tirava um chassi de um televisor e colocava dentro uma determinada quantidade de componentes que equivalesse ao mesmo peso do televisor original.

Devidamente identificado, o televisor maquiado seguia por uma das carretas da Sharp Transportes diretamente para o Paulo Arantangy.

Lá, ele pegava os componentes e distribuía para a rede de assistência técnica do país. Foi o que nos fez permanecer no mercado como líder do setor.

Mensalmente, eu fazia um relatório dos componentes que havia enviado pra São Paulo, com cópia para todos os “chefões” da empresa.

Por conta desse “jeitinho brasileiro”, passei a ser um dos homens de confiança do empresário Mathias Machline.

Moleque pobre da Cachoeirinha, eu havia acabado de entrar na máfia somente com a cara e a coragem.

Ainda não era um Gilberto Miranda, mas, quem sabe, com sorte eu chegaria lá.

Nenhum comentário: