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quinta-feira, janeiro 28, 2010

Uma história nada exemplar


A Zona Franca de Manaus (ZFM) foi idealizada como projeto geopolítico no começo da década de 50, depois que o deputado federal Francisco Pereira da Silva idealizou a criação do Porto Franco de Manaus e encaminhou à Câmara Federal o projeto nº. 1.310 que, após receber emendas, foi aprovado em 23 de outubro de 1951.

Como o Brasil até hoje funciona na base da punheta, somente em 6 de junho de 1957 (seis anos depois!) o presidente Juscelino Kubitschek sancionou a Lei nº. 3.173 que criava, em lugar do Porto Franco, a Zona Franca de Manaus, regulamentada posteriormente pelo Decreto nº. 47.757, de 2 de fevereiro de 1960.

Naquela época, as atividades econômicas da região amazônica se concentravam em Belém, capital do Pará, até então a mais importante cidade da Amazônia.


Abrigando mais gente e conseqüente maior mercado, melhor infra-estrutura econômica, com um porto praticamente no oceano Atlântico, e tendo ligação terrestre com o restante do País através da rodovia Belém-Brasília, a capital paraense constituía o principal centro de atração para os investimentos regionais.

A força centrípeta exercida pela capital do Pará esvaziava o lado ocidental da Amazônia, onde a cidade de Manaus ocupa o centro geográfico.

Com uma população inferior a 150 mil pessoas, a capital amazonense definhava em termos urbanos, econômicos e sociais.

Possuindo um ensino superior incipiente, sofrendo escassez de energia elétrica, com um mercado reduzido e de baixo poder aquisitivo, sistemas de transporte e comunicação precários, Manaus oferecia um cenário de fragilidade econômica e sem a menor perspectiva de mudanças.

Para mostrar o grau de hegemonia da economia do Pará, basta citar que em 1964, segundo dados da extinta Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam), 97,6% dos investimentos por meio de seus incentivos fiscais na região amazônica eram feitos no estado vizinho. O Amazonas ficou, naquele ano, com apenas 2,4% dos investimentos.

Enquanto os incentivos do governo federal permanecessem iguais para toda a Amazônia, a preferência pelo Pará seria, evidentemente, natural e racional.


Manaus era um mero entreposto comercial que ligava a economia extrativista praticada no interior do estado com o resto do mundo, que consumia produtos exóticos coletados da floresta como madeira em tora, borracha, sorva, castanha, pau rosa, cumaru, breu, resinas, sementes oleaginosas, essências aromáticas, além de animais como quelônios, peixes e seus subprodutos (couros e peles silvestres, por exemplo).

Comerciantes e mascates de Manaus procuravam o interior do estado em embarcações, os chamados regatões, para suprir as necessidades das populações. Dispersas nas terras ao longo dos rios, essas pessoas se dedicavam a atividades extrativistas.

Os comerciantes itinerantes forneciam alimentos, tecidos, roupas, remédios e ferramentas, e, em troca, adquiriam os produtos coletados da floresta, em uma típica operação de escambo, sem a presença de moeda - uma relação econômica de característica feudal que mantinha o produtor no nível de subsistência, escravizado aos interesses de intermediários e donos de seringais.

Por conta disso, a Amazônia Ocidental constituía uma imensa área de baixíssima densidade demográfica e econômica, muitas vezes, sem ter a presença física de brasileiros, abrigando enormes e pouco explorados recursos naturais.


Com tais características, a região estaria, segundo a versão dos militares pós-golpe de 64, despertando a cobiça internacional.

Esse era o discurso, por exemplo, do historiador Arthur César Ferreira Reis, o primeiro governador amazonense do período militar.

Esta hipótese era reforçada com a chegada dos movimentos ambientalistas, que se desenvolveriam no mundo de forma generalizada - principalmente nos países mais ricos.

O Exército tinha vários estudos e ensaios estratégicos citando a problemática amazônica, enfatizando principalmente a parte ocidental da região até as linhas de fronteira internacional. Estes fatos levaram o governo federal a iniciar a elaboração de um projeto de inspiração geopolítica para mudar o quadro existente.

No início do ciclo militar de 64, o projeto atinge maturação e a Zona Franca de Manaus é criada pelo decreto-lei 288/67, em 28 de fevereiro de 1967. Este foi um dos últimos importantes atos da administração Castello Branco - inspirador e defensor da idéia.

Para colocar o projeto em prática, houve um pacto tripartite celebrado entre o governo federal, o governo do Amazonas e a Prefeitura de Manaus, em que cada participante ofereceu uma parcela de contribuição ao conjunto dos incentivos aos projetos que se instalassem na ZFM.

Para atrair investimentos, foram criados incentivos no âmbito dos impostos indiretos que impactavam os custos das empresas como redução de Imposto de Importação (II), isenção de Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), restituição de Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e isenção de Imposto sobre Serviço (ISS).

A novidade em relação aos incentivos feitos anteriormente na região é que não havia nenhum subsídio ou empréstimo de capital pelos bancos oficiais, como ocorria na Sudam e na Sudene. Mesmo assim, os novos incentivos compensavam as desvantagens de localização da ZFM e a ausência de mercado local.


Visando implementar o Distrito Industrial, a Lei-Estadual n° 63.105, de 15.08.1968, declarou de utilidade pública, para fins de desapropriação, uma extensão de terras que seriam destinadas à implantação do Distrito Industrial, abrangendo uma área de 16 km² destinada à construção de indústrias que se encaminhavam para Manaus.

A escolha da área ao leste da cidade obedeceu às circunstâncias da chamada “ocupação consciente do sítio urbano de Manaus”, combinando-se, entre outros fatores, ampla área contínua desabitada, contigüidade com a periferia urbana, indústrias sem chaminé – pois os ventos sopram no sentido leste-oeste, do Distrito Industrial para a área urbana –, possibilidade futura de um porto na Ceasa e proximidade do aeroporto de Ponta Pelada (atual Base Aérea de Manaus).

A primeira indústria eletroeletrônica a se instalar no Distrito Industrial foi a Electra Industrial, do empresário carioca Antonio Velásquez, fato ocorrido em 1972.

Na época, a Sharp do Brasil (do paulista Mathias Machline) tinha uma pequena fábrica de calculadoras, que funcionava na Constantino Nery, próxima do conjunto Beverly Hills, a léguas de distância do novo distrito industrial.

Na seqüência, foram implantadas no Distrito Industrial as fábricas da Sharp do Brasil, Pliacel-Sanyo (do paulista Ernesto Pereira Lopes), CCE da Amazônia (do paulista Isaac Sverner), Evadin (do paulista Leo Kryss), Gradiente (do paulista Eugênio Staub) e Semp (do paulista Afonso Hennel). Como se vê, o carioca Antonio Velásquez era um estranho no ninho.


Diferente das outras empresas mais voltadas para o perfil de consumo da classe média (televisores, aparelhos de som e calculadoras), a Electra Industrial fabricava produtos eletrônicos voltados exclusivamente para as classes C e D: pequenos rádios portáteis AM/FM, buzinas eletrônicas para bicicletas, rádios relógios digitais, abridores elétricos de lata, vitrolas a pilha e outros produtos importados no regime SKD (conjuntos semi-desmontados) de obscuros fabricantes asiáticos.

Em 1974, a Electra Industrial tinha pouco mais de 300 empregados – na mesma época, a Sharp tinha 5 mil, a CCE, 3 mil, a Pliacel-Sanyo, 2 mil, a Evadin, 2 mil, a Gradiente, 1.500, e a Semp, 1.500. Quer dizer, a empresa não representava ameaça pra ninguém – ainda mais que todas as indústrias da ZFM praticavam a importação em regime SKD.

Ocorre que, a partir de 1973, a “crise do petróleo” trouxe um grande desequilíbrio à balança comercial brasileira, registrando-se em 1974 um déficit de 4,69 bilhões de dólares, apesar de a ZFM ser responsável, naquele ano, pela importação de apenas 120 milhões de dólares (ou cerca de 3% do déficit total).


O II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), ao prever a retomada do Processo de Substituição de Importações, principalmente nos setores de bens de capital, eletrônica e insumos básicos, alterou a condução da política governamental em relação à ZFM.

Em virtude de ser uma economia pequena e fortemente dependente de suas relações comerciais com o exterior e com o resto do país (modelo importador-exportador), a ZFM não pôde impedir seu envolvimento na onda de insegurança e dificuldades econômicas experimentadas pelo Brasil, após a crise do petróleo, naquela famosa “conversa pra boi dormir”.

Os responsáveis pelo déficit, todo mundo com mais de um neurônio na cachola sabia, eram as grandes montadoras de veículos baseadas no ABC paulista, que praticamente importavam de tudo de suas matrizes estrangeiras.

A liberdade de importações comerciais da ZFM passou a ser encarada como um privilégio indevido, quase imoral.

Paralelamente, as aquisições de partes e componentes industriais para as empresas situadas em Manaus começaram a experimentar uma série de controles antes inexistentes em decorrência do novo ciclo de substituição de importações iniciado a partir de 1974. Assim vieram as cotas de importação e os índices de nacionalização.

Nomeado pelo ministro do Interior Rangel Reis, o paulista Aloísio Campelo assumiu a superintendência da Suframa em janeiro de 1975.


Em março do ano seguinte, por meio da Resolução nº 24, do Conselho de Administração da Suframa, ele estabeleceu os índices mínimos de nacionalização a serem cumpridos, até 31 de dezembro de 1977, pelas indústrias do setor eletroeletrônico. Os rádios portáteis AM/FM, por exemplo, teriam que atingir nessa data o índice de 90% de nacionalização.

Aloísio Campelo também estabeleceu o regime de cotas de importação, privilegiando as empresas com o maior número de empregados, no caso das indústrias, e quem tivesse padrinho mais forte, no caso do comércio.

Da noite pro dia, a Suframa se transformou em um ruidoso balcão de negócios, já que quem tivesse direito à cota de importação podia livremente passar adiante pra quem se interessasse. Foi a oficialização do “laranjal”.

Inúmeros espertalhões ficaram ricos da noite para o dia vendendo suas cotas de importação (já que ainda saía mais barato usar as cotas de importação da Suframa do que importar produtos pagando os impostos devidos) para terceiros.

Foi nesse caldo de cultura que o empresário paulista Gilberto Miranda se criou.

Com a mudança nas regras do jogo, quem tinha padrinho forte se deu bem. Pequenas lojas comerciais importadoras de bugigangas eletroeletrônicas foram agraciadas com cotas de 20, 30 e 50 mil dólares.

Muitos comerciantes vendiam as cotas para as indústrias pelo melhor preço obtido no mercado negro e embolsavam a grana, sem o menor escrúpulo. Fortunas foram feitas assim, da noite pro dia.


Penalizado duplamente (seu principal produto, os rádios portáteis AM/FM, já em 1976 precisavam ter 50% de nacionalização e seu baixo número de empregados o colocaram no final da fila dos cotistas industriais, com direito a importar algo em torno de 100 mil dólares), o empresário Antonio Velásquez foi bater no STJ.

Ele queria saber se uma resolução da Suframa tinha mais valor do que o decreto presidencial que instituíra a ZFM e ditara as regras do jogo (como não havia nenhum subsídio ou empréstimo de capital dos bancos oficiais, a importação era totalmente liberada pra quem tivesse a grana, a cota correspondente e o fornecedor no exterior).

Até então, a Electra Industrial importava cerca de 800 mil dólares por ano (a Sharp, na mesma época, importava 20 milhões de dólares).

Antonio Velásquez também queria um prazo maior para se adaptar ao novo sistema CKD, em que as peças e partes são importadas totalmente separadas umas das outras, para que se processe o sistema de substituição e nacionalização dos componentes.

Argumentava que precisava desenvolver os novos produtos, encontrar fornecedores locais e nacionais, investir em mão de obra qualificada, implantar laboratórios de engenharia, adaptar as linhas de montagem etc.

Sua proposta era começar com um índice de nacionalização de 25% e, anualmente, ir dobrando esse índice até atingir a meta imposta pela Suframa.

Aloísio Campelo nem pensou duas vezes. Em retaliação à iniciativa do empresário de procurar seus direitos na justiça, simplesmente cancelou a mísera cota de importação a que a empresa tinha direito.

A Electra Industrial foi obrigada a demitir 270 funcionários. Os outros 30 ficaram na empresa apenas para a mesma não fechar as portas de vez, enquanto o processo se arrastava na justiça.

Dois anos depois, em julho de 1978, Antonio Velásquez obteve a primeira vitória na justiça: uma liminar concedida pelo STJ obrigava a Suframa a lhe restituir a cota de US$ 100 mil cancelada estupidamente.

De posse da cota, Velásquez viajou para os Estados Unidos e fechou um contrato de produção com a Coca Cola, para produzir 100 mil rádios AM/FM no formato das famosas latinhas de refrigerantes. Os radinhos seriam dados de brindes aos consumidores brasileiros durante a campanha natalina da empresa naquele ano.


Desempregado desde agosto por conta de uma greve mal conduzida na Sharp do Brasil, aceitei de bom grado o convite de Tomzé Areosa, diretor financeiro da Sharp e amigo pessoal do empresário Antonio Velásquez, para participar do projeto em uma espécie de contrato de risco. Se a empresa se desse bem, eu cresceria junto com ela. Se não, não. Simples assim.

Tecnicamente eu continuava desempregado, mas pelo menos já tinha um norte que só dependia do meu próprio esforço. Convidei o Engels Medeiros, também desempregado como eu, para me ajudar na tarefa e expliquei o acordo. Ele topou. O sacana sempre foi irresponsável.

No dia 1° de dezembro de 1978, entramos na Electra Industrial pela primeira vez. Eu conhecia a empresa porque ela ficava situada quase defronte da Sharp, na mesma Rua Acará, e havia estranhado quando ela começara a demitir funcionários em 1974 (a maioria deles eu contratei pra Sharp porque eram realmente competentes).

Nós dois (eu e Engels) fomos recebidos como “salvadores da pátria” pelo empresário Antonio Velásquez, pelo gerente financeiro Geilson Matos, pelo supervisor de produção Josino Silva e pelo diretor residente Waldir Brito, na época também presidente da Cosama.

Minha tarefa era fazer uma guia de importação no sistema CKD de um produto que eu só conhecia de ouvir falar (a Sharp nunca produziu rádio portátil). A do Engels, verificar se era possível implantar um sistema CKD em uma planta industrial concebida inicialmente para operar no sistema SKD.

Logo de cara, ele notou a ausência de uma máquina de solda. Era impossível montar uma placa de circuito impresso com mais de 20 componentes e soldar com ferro de solda manual. Velásquez o autorizou a solucionar o problema da melhor maneira possível.

Por meio de um amigo do Distrito Industrial (Mário Gerson? João Carlos D’Antona? Stones Machado?), Engels soube que a Justiça do Trabalho estava leiloando um tanque de solda da Dismac para pagar dívidas trabalhistas.

Era um tanque pequeno, de 1 m², que funcionava por imersão manual – ou seja, você colocava a placa montada sobre a superfície de solda derretida e retirava rapidamente, para evitar que o calor danificasse os semicondutores. Engels arrematou a engenhoca e levou pra Electra.

O próximo passo foi adaptar as esteiras para um processo de montagem manual das placas de circuito impresso e implantar os postos finais de linha (revisão, calibragem, controle de qualidade, acabamento, etc). Em uma semana, Engels havia dado cabo da tarefa. Agora era esperar pra iniciar a produção.

A guia de importação que fiz, na maior cara dura e praticamente relacionando os componentes de cabeça, foi liberada pela Suframa, sem nenhum questionamento.

Em dois dias, os primeiros 10 mil kits do rádio-latinha estavam sendo descarregados na Electra Industrial.

A primeira surpresa: o obscuro fornecedor coreano não enviou um mísero manual técnico dando as características do produto. As placas também não possuíam impressão em silk screen mostrando a posição dos componentes.

Para nossa sorte, eles enviaram um único produto acabado. Foi a partir dele que o Engels levantou o circuito elétrico, fez as medições necessárias para fazer o treinamento dos consertadores e desenvolveu as jigas de teste (tudo dinâmico, evidentemente).

Engels selecionou 30 novos funcionários – entre eles, Paulo Ricardo Furtado, filho do saudoso João de Mendonça Furtado, e uma exuberante garota de 16 anos e expressivos olhos verdes, chamada Marilene Marques, que me flechou o coração.

Em menos de uma semana, Engels fez o treinamento da turma e colocou o trem pra andar. Quando o primeiro produto acabado foi testado em condições reais de uso, na área externa da fábrica, e funcionou admiravelmente bem, sintonizando a Difusora (AM) e a Tropical (FM), houve muita emoção, parabenização e comemoração. A gente (leia-se Engels) tinha chegado lá.

Aí, ocorreu o primeiro problema. Para os produtos serem “internados”, isto é, vendidos pra fora da ZFM, eles precisavam ter um índice de nacionalização de 90% (calculado pelo valor das peças agregadas no produto).

Eu e Engels fomos conversar com o Jones Cunha, meu amigo de adolescência e supervisor de produção da Icel, uma fábrica de multitestes que possuía um setor de extrusão plástica.

Ele concordou em fabricar o gabinete plástico, desde que recebesse o molde. Depois de penosas negociações, os coreanos concordaram em enviar dois moldes. A Icel começou a produzir os gabinetes.

Por meio de seus contatos, Engels encontrou fornecedores para as embalagens de papelão e os adesivos simulando as latinhas, que seriam aplicados nos gabinetes. Resolvemos nacionalizar os capacitores, diodos e resistores, mas seu preço era ínfimo em termos de agregação de valor.

O nosso calcanhar-de-aquiles estava nos transistores. Eles, sozinhos, representavam cerca de 40% do valor agregado. Explicamos a situação pro Antonio Velásquez e falamos categoricamente que íamos blefar (informando para a Suframa que havíamos nacionalizado os transistores, mas usando os transistores importados). Ele concordou em correr o risco.

Preparei a documentação demonstrando os índices de nacionalização do produto e enviei para a Suframa, superfaturando, evidentemente, todos os componentes locais, a única maneira possível de atingirmos aquele absurdo índice de nacionalização. A contabilidade da Electra que se virasse depois pra consertar o estrago.

Foi quando o cu da cotia assobiou. O eterno gentleman Antonio Velásquez ficou tão empolgado em ver sua fábrica funcionando de verdade, que resolveu presentear o superintendente da Suframa, Aloísio Campelo, com um dos primeiros radinhos produzidos na fábrica.


Na mesma época, havia chegado a Manaus um paulista recém formado em Engenharia Eletrotécnica, chamado Manuel Rodrigues, que era o encarregado de conferir as guias de importação e os índices de nacionalização. Devia ser um engenheiro de quinta categoria pra deixar uma cidade cosmopolita como São Paulo e vir tentar a vida na província, em um cargo de nomeação política.

Querendo mostrar serviço pro chefe, o filho da puta pediu emprestado o rádio-latinha dado pelo Velásquez ao Aloísio Campelo e foi confrontar os componentes físicos do produto com os que eu havia descrito na guia de nacionalização.

Numa manhã de sexta-feira, Manuel Rodrigues me telefonou, se identificou e encostou a empresa na parede. O diálogo foi mais ou menos esse:

– Olha, eu estive dando uma olhada nesse radinho da Coca Cola que você estão fabricando e fiquei com algumas dúvidas... É que eu só encontrei transistores japoneses das famílias 2SA e 2SC, mas vocês informaram que eles haviam sido nacionalizados... – explicou ele.

Como eu ainda não sabia da lambança do Velásquez, devolvi a bola chutando na altura da cintura:

– Escuta aqui, ô bonitão, quem foi o baitola que te deu a porra desse radinho? Eles estão proibidos de sair da fábrica! Que merda é essa?...

– Quem me deu foi o Dr. Aloísio Campelo... Ele recebeu de presente do Dr. Antonio Velásquez... – devolveu Manuel Rodrigues.

Percebi de cara a encrenca, mas não passei recibo:

– Então o Velásquez trocou as bolas, porra!... Esse rádio aí é um modelo importado pra gente comparar com o produto final feito no Brasil... Ele deve ter pego essa merda na Engenharia de Produto, sem consultar ninguém... Mas qual é mesmo a tua dúvida? – questionei de novo, sem esconder a irritação.

– É sobre a nacionalização dos transistores... – insistiu Manuel Rodrigues.

– Bicho, eles foram nacionalizados sim! Não está escrito na guia que a gente enviou pra vocês? Pois então?... A gente está usando transistores da família PC e PA da Ibrape... Se você quiser, eu vou lá na linha, pego um rádio recém-produzido e levo aí pra você...

– Não, não... Vamos fazer o seguinte. Eu passo aí na terça-feira de manhã, confiro o uso dos transistores na linha de montagem e assino o laudo técnico liberando a internação, tudo bem? – devolveu Manuel Rodrigues, se preparando para dar o xeque-mate.

– Tudo bem, você é que sabe... – devolvi, com displicência, deixando o filho da puta desnorteado, sem saber que era um novo blefe.

– Outra coisa! – insisti, dessa vez simulando um gambito da dama para melar seu cheque-mate. “Por determinação do Dr. Antonio Velásquez, qualquer funcionário da Suframa pode vir aqui a qualquer hora do dia ou da noite, sem precisar marcar horário! Eu vou te esperar na terça de manhã, de tarde ou de noite, na hora em que você achar melhor, falou?”

Ele se despediu amavelmente e desligou o telefone.

Assim que encerrei aquela conversa de bêbado pra delegado, chamei o Engels e o Josino para contar a boa nova. Foi um autêntico barata voa. Em cinco anos de Sharp, a Suframa nunca tinha auditado um único produto da gente. Que porra era aquela?...

Procuramos pelo Waldir Brito. Ele havia tomado chá de sumiço. Tentamos falar com o Velásquez. Ele estava na Coréia do Sul, em local incerto e não sabido. Localizamos o Geilson, no escritório do Rio de Janeiro, e explicamos a situação. Ele quase teve um troço.

Só havia uma solução. Alguém viajar naquela mesma noite pra São Paulo e, no dia seguinte, ir bater perna na Rua Santa Ifigênia, a meca dos componentes eletrônicos na Paulicéia, pra tentar “nacionalizar” o radinho na marra.

Como era o único “fodão” da turma, Engels topou encarar a presepada. Geilson combinou de se encontrar com ele na capital paulista.

Naquela mesma noite, Josino foi deixar o Engels no aeroporto e eu fui pra casa estudar uma nova maneira de burlar as regras da Suframa.

Uma explicação possível era fazer uma nova guia de nacionalização triplicando o preço do gabinete plástico feito pela Icel (e o Jones Cunha que se virasse depois pra consertar o estrago).


Na segunda-feira, Engels estava de volta a Manaus, trazendo na bagagem 7 mil transistores (mil de cada tipo), comprados em São Paulo. Ele não só havia nacionalizado o radinho, mas aproveitara para modificar a polarização do misturador e o radinho agora estava melhor do que o original coreano. Sintonizava até pensamento, com uma qualidade de som espetacular. Uma festa!

Passamos o dia “maquiando” a linha de montagem, sem que os funcionários soubessem o que estava acontecendo. Foi um novo parto treinar as montadoras para a inserção dos novos transistores (os japoneses tinham o coletor à esquerda, os nacionais, à direita, portanto a peça teria de ser inserida ao contrário da original). No final, deu tudo certo.

Quando Manuel Rodrigues entrou na fábrica, na terça-feira, ficou visivelmente impressionado com a pequena linha de montagem (60 funcionários, numa fábrica com espaço físico para 6 mil operários) trabalhando a todo vapor.

O operador da máquina de solda (João Paulo? Juarez? Julinho?) era quase um gênio. Com uma torquês, ele prendia o circuito impresso, enfiava a placa numa bambona plástica cheia de verniz, tirava, enfiava no tanque de solda, tirava, conferia se não havia nenhum curto de solda e colocava na mesa da primeira revisora. E fazia essa lambança toda em menos de um minuto.

Manuel Rodrigues verificou pessoalmente que estávamos usando transistores da Ibrape, das famílias PC e PA, testou alguns produtos acabados, ficou satisfeito com o resultado de sua auditoria e assinou o laudo técnico liberando a internação dos primeiros 10 mil produtos. Foi outra festa.

No dia seguinte, eu, Engels e Josino modificamos a linha de montagem para o processo original – utilizando os transistores japoneses, evidentemente – e começamos a despachar os produtos acabados para a sede da empresa, no Rio de Janeiro.

Pelos cálculos do Engels, a gente zerava o estoque de matéria-prima em duas semanas, em virtude de estarmos produzindo cerca de 500 radinhos por dia.

Autorizado pelo Velásquez, que ficou “babando” quando soube da façanha do Engels, dei entrada na Suframa de uma nova guia de importação para fazer a importação dos 90 mil kits restantes. A guia era exatamente igual à anterior.


Desta vez, Manuel Rodrigues criou caso. Ele devolveu a guia, pedindo pra eu refazer a mesma, porque a Suframa não autorizaria a importação de transistores japoneses em virtude de a gente já estar utilizando transistores nacionais da Ibrape.

Fiz um novo documento, explicando que aqueles transistores japoneses eram para um novo produto em desenvolvimento (um aparelho três em um) e que a gente apresentaria o descritivo dos índices de nacionalização quando ele estivesse em linha.

O filho da puta continuou irredutível (nessa mesma época, Gilberto Miranda já estava embolsando o seu primeiro 1 milhão de dólares sem gerar um único emprego na ZFM) e convenceu Aloísio Campelo a brecar a importação.

Como o transistor nacional custava dez vezes o valor do transistor importado (apesar de ser da Philips, a Ibrape era uma fábrica de fundo de quintal que acabou fechando quando o presidente Fernando Collor liberou as importações), não havia nenhuma hipótese de “nacionalizarmos” o produto sem arcarmos com um prejuízo inimaginável.

Pra gente estava bem claro que assim que a empresa se capitalizasse de novo, a gente partiria para a nacionalização exigida pela Suframa. Mas a empresa precisava pelo menos respirar economicamente, já que estava sem faturar há três anos.

De mais a mais, tratava-se de apenas uma cota anual de 100 mil dólares (na minha época de Sharp, eu já havia contrabandeado pra São Paulo mais de 800 mil dólares em peças de reposição). Ninguém era santo.

Pra nosso azar, o engenheirozinho paulista tinha a última palavra sobre o assunto e ele resolveu inviabilizar a produção da Electra, sabe-se lá por quais motivos. Manuel Rodrigues brecou a importação dos novos kits.

Antonio Velásquez foi bater de novo nas portas da justiça.

O mais grave é que, empolgada com a qualidade dos primeiros aparelhos fornecidos, a Coca Cola já havia encomendado mais 100 mil unidades. A gente ia começar a contratar 150 novos funcionários, quando o aspone da Suframa isolou a bola na arquibancada.

Manuel Rodrigues fez um laudo técnico explicando os motivos para brecar a importação, Aloísio Campelo foi na onda e ficou por isso mesmo. Pra mim, sinceramente, foi uma ducha de água fria.

Em janeiro de 1979, eu e Engels pedimos o boné. Antonio Velásquez só faltou nos implorar de joelhos para a gente continuar na empresa. Explicou que aquilo era uma questão de tempo, o Aloísio Campelo já ia deixar o órgão, as importações seriam liberadas, etc. Resolvemos aguardar até março, quando entraria o novo superintendente Ruy Lins.

Com o coração partido, demitimos cerca de 20 funcionários (a minha Marilene sobreviveu à degola, marrelógico!) e a Electra Industrial voltou à mesma e velha modorra de sempre.


Eu, Marilene, nossos dois filhos Marcus Vinicius (designer gráfico) 
e Maíra (jornalista), e nosso neto Mathews, filho da Maíra

Pra garantir o salário dos que ficaram, resolvemos “canibalizar” o estoque de produtos defeituosos existentes na empresa desde épocas imemoriais – que ocupavam uma área considerável da AVA Industrial, a outra empresa do Velásquez localizada ao lado da Electra e que jamais havia funcionado. A Electra Industrial se transformou em uma filial do Sukatão.

Na base de pegar três aparelhos com defeitos e transformar em um em condições de uso, a gente (leia-se Engels) deve ter produzido umas 100 mil unidades do mais diferentes produtos (radinhos, vitrolas, rádios-relógios, abridores de lata, amoladores de faca, etc).

Como não havia mercado local para os produtos e nem eles podiam ser “internados” (eram 100% importados), resolvemos tentar vender em Parintins.

Em agosto de 1979, pedimos o boné mais uma vez. Velásquez nos convenceu a ficar até dezembro, com a promessa futura de nos dar uma pequena sociedade na empresa (1% pros dois, ou 0.5% pra cada um). Além de ser um gentleman, Antonio Velásquez confiava muito em nosso taco.

O certo é que dezembro chegou, as coisas continuaram como antes (nada de a cota dos 90 mil kits ser liberada nem de o processo inicial, de 1976, ter seu mérito julgado no STJ) e aí não teve jeito. Eu e Engels montamos em nossos alazões e ganhamos a linha do horizonte.

Ele foi trabalhar no Laboratório da Philips e eu, na Engenharia de Fábrica da Philco. Nosso amigo Josino Silva, que continuou administrando a empresa depois de nossa saída, morreu de ataque cardíaco alguns anos depois, quando já trabalhava como supervisor de produção da CCE da Amazônia.

Em meados dos anos 90, soube que Antonio Velásquez recebeu uma grande bolada de indenização na justiça por conta da sacanagem feita pela Suframa e que hoje suas empresas estão funcionando a todo vapor (a Electra Industrial produz televisores e a AVA Industrial produz motocicletas Kawasaki).


Eu e Engels continuamos a nos ver nos finais de semana para encher a cara de birita e contar anedotas do Bocage. Engels é o atual presidente do sindicato patronal das indústrias de confecções e diretor da FIEAM.

Podre de rico, Manuel Rodrigues hoje é reitor da UniNilton Lins, em Miami (USA), depois de ter exercido o cargo de superintendente da Suframa de agosto de 1992 a maio de 1996.

Pela sua meteórica carreira de executivo bem-sucedido dá pra perceber que puxar-saco e não ter escrúpulos morais continua sendo o grande portal de ascensão social dos emergentes, dos novos-ricos e dos arrivistas de ocasião desse nosso Brasilzão cada vez mais cafona, roceiro e jerico.

Taqui pra vocês, chupins desmemoriados!

5 comentários:

Unknown disse...

Simão, estava procurando informações a respeito de SKD e cheguei a essa história maravilhosa. Parabéns !!!

Antônio José Botelho disse...

caro simão quando leio tuas prosopopéias percebo o quanto ainda vale a pena "puxar carrocha" sigamos em busca da luz sempre na luz antônio josé botelho

Anônimo disse...

Você é muito corajoso. Valeu pela história. Você é o cara.

Antonio Luis Gomes disse...

Você é muito corajoso. Gostei do jogo de cintura para resolver os problemas criados pela burocracia. Você é o cara.

Unknown disse...

André Peixoto DSWK

E hoje este Antônio Velásquez deve R$4800,00 a minha empresa há 5 anos!