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terça-feira, fevereiro 02, 2010

Socialismo libertário para principiantes


Setembro de 1979. Eu estava no 5º período de Administração Noturno na FUA (hoje Ufam) e as aulas eram num prédio da rua Monsenhor Coutinho, quase em frente ao Bar Pequeno Príncipe. O boteco virou meu escritório informal.

Uma noite, enquanto bebia sozinho e lia um livro do Mikhail Bakunin (salvo engano, “Estatismo e Anarquia”) aproveitando um tempo de aula em que o professor havia faltado, fui abordado por uma garota simpática, no estilo bicho-grilo (bata indiana, calça jeans desbotada, sapatilha e bolsa de pano a tiracolo). Somente os óculos de grau destoavam um pouco do conjunto.

Ela perguntou se eu gostava de literatura anarquista. Rindo da pergunta meio idiota, assenti com a cabeça. Na maior sem-cerimônia, ela se sentou comigo, abriu a bolsa de pano, tirou um pequeno jornalzinho dobrado em duas partes e me passou discretamente.

Era um exemplar do lendário jornal alternativo Inimigo do Rei, que começara a ser publicado em Salvador (BA), em 1977, e depois, para escapar das forças da repressão, estava sendo editado cada vez em uma cidade diferente.

Diferente dos jornais Tribuna da Luta Operária (do PCdoB), Alicerce da Juventude Socialista (do hoje PSTU) e Voz da Unidade (do PCB), que apenas reproduziam a voz do dono, o Inimigo do Rei era a vanguarda da vanguarda, uma espécie de porta-voz de vários movimentos sociais que não encontravam espaço nem na grande imprensa nem na imprensa alternativa.


As bandeiras de luta do jornal anarquista envolviam a defesa dos usuários de drogas, dos homossexuais, dos movimentos negros e feministas, dos ateus militantes, dos ativistas da luta antimanicomial, dos ambientalistas, dos punks da periferia e de vários outros grupos marginalizados. De quebra, o Inimigo do Rei começara a questionar o discurso velho e cansado da esquerda tradicional.

Em plena ditadura militar, o jornal era de difícil e complicada distribuição. Poucas bancas aceitavam vender o Inimigo do Rei, principalmente se as capas tivessem alguma coisa “estranha”, como dois homens se agarrando ou uma comparação entre Paulo Maluf e Roberta Close, por exemplo.

A polícia não deixava os militantes anarquistas venderem o jornal em áreas de grande concentração popular – e muitas vezes aqueles que tentavam eram postos pra correr na base do cassetete.

A maior repressão, entretanto, era mesmo da própria esquerda. Os militantes dos partidos marxistas não aceitavam que os anarquistas ficassem vendendo jornal nas áreas “deles”, dentro das universidades.

Além disso, durante a venda dos jornais de esquerda ainda dava para fazer proselitismo sobre as diversas correntes do movimento estudantil e tentar atrair novos militantes para as respectivas correntes.

Como o Inimigo do Rei falava mal dos velhos “ídolos” da esquerda, malhando a invasão da Tchecoslováquia na célebre “Primavera de Praga”, a ditadura da Albânia, a idolatria chinesa, os crimes de Stálin, essas cosias, os tarefeiros comunistas partiam para a violência física pura e simplesmente, dando porradas nos anarquistas quando estavam em maioria.

Ou, então, sacaneando com a imagem dos anarquistas, dizendo que eram pequenos burgueses contra-revolucionários, que eram militares infiltrados a serviço da repressão, que eram quintas-colunas querendo atrasar a revolução socialista e outras bobagens do gênero.

Pra resumir a conversa: a menina queria saber se eu topava distribuir o jornalzinho em Manaus. Marrelógico que topei!


Ela me deu mais alguns exemplares dos números anteriores do Inimigo do Rei, me deu o endereço para onde eu devia escrever solicitando os novos exemplares e, de brinde, também me deu um exemplar do boletim informativo Pensamento Ecológico, editado em São Paulo pelo Luiz Carlos de Barros, pioneiro no movimento ambientalista do país.

Eu havia encontrado minha turma. Só não convidei a anarquista para conversarmos sobre socialismo libertário em uma das suítes do motel Rip porque achei que ela era meio sem sal.

Comecei a distribuir os dois informativos na cidade. Eu recebia cerca de 25 exemplares de cada um, pagos do meu próprio bolso, e colocava na mão das pessoas que eu achasse vagamente inteligentes ou interessantemente receptivas.

Outras vezes, “esquecia” nas mesas das bibliotecas universitárias e ficava imaginado a aflição da bibliotecária responsável querendo colocar aquele jornal subversivo na estante sem encontrar o local.

O boletim Pensamento Ecológico abordava em profundidade assuntos que só ganhariam a mídia tradicional três décadas depois: devastação da Amazônia, superpopulação do planeta, conhecimentos tradicionais, degradação do meio ambiente, defesa das populações indígenas, novas matrizes energéticas e por aí afora.


O Inimigo do Rei tirava sarro da cara de todo mundo. Basta ler um de seus editoriais:

O Inimigo do Rei é uma publicação de caráter autogestionário. É uma experiência nova no Brasil, um jornal sem censura de nenhum tipo. É feito e administrado pelos coletivos pró-federação anarquista, sendo propriedade deles.

Numa época que toda a imprensa alternativa está em crise ou desapareceu, quando só existem jornais de dois partidos comunistas com pequena circulação popular, ficando cada vez mais como jornal de circulação interna desses partidos, editamos “O Inimigo do Rei”, que chega ao número 20.


A única coisa que permite a sua manutenção, exclusiva pela venda, é a autogestão, a solidariedade dos coletivos nas vendas e na sua distribuição. É o jornal ser de fato de todos aqueles que participam desses coletivos. Ele só é possível de ser editado por ser feito inteiramente de acordo com as propostas anarquistas. Se fôssemos um bando de intelectuais não sairíamos dos primeiros números como tantas publicações que conhecemos.

Como é um jornal feito nesses moldes, só escrevem para ele aqueles que fazem parte dos coletivos anarquistas. Para nós é fundamental que o trabalho intelectual seja resultado do trabalho da militância diária nas reuniões, palestras, assembléias e organização do movimento anarquista hoje no Brasil.

Intelectuais brasileiros, escritores de todos os tipos, hoje muito “anarquistas” para nosso gosto, por favor não nos mandem artigos porque a Bahia não tem autoridade para publicar nada. Um estudante secundarista que faça parte de um nosso coletivo, em qualquer cidade do Brasil, tem mais poder que nós para dizer o que vai sair se o seu coletivo possuir uma parte do espaço do jornal, naquele número. Não gastem o selo do correio. Não temos dinheiro para lhes devolver os originais.

Não estamos interessados em “nível”. Achamos que isso é uma censura disfarçada e inventada pelos intelectuais burgueses para perseguirem-se uns aos outros. Nosso jornal reflete o pensamento do militante diário, daqueles que carrega panfletos nas sacolas.

Achamos que cada um pode refletir em palavras o que vive, com o quê se preocupa, muito mais do que gente que só quer “brilhar” e se auto-promover. Até agora, o “nível” tem sido mantido indiretamente. É a ironia da vida. Quem gosta de nivelar os outros fica sempre abaixo do nível. Nós não queremos nivelar. Queremos expressar. Mas expressar todos. Todos os que trabalham pelo movimento. Não aqueles que querem expressar suas individualidades burguesas para se sentirem admirados em meios intelectuais. Evidentemente, isso não nos interessa.

Diferente dos tribuneiros e pecebistas, que vendiam os jornais durante o dia no campus universitário, meu horário de atuação era noturno. Eles atacavam os estudantes nas cantinas, eu fisgava os populares nos botecos, parada de ônibus e portas de cinema. E ainda aproveitava para empurrar junto com os jornais alguns exemplares dos meus livros de poesia rodados em mimeográfo.

Passei uns três anos fazendo essa tarefa até a gente conquistar a direção do Sindicato dos Metalúrgicos, em 1984. Mas aí, em vez de avançar rumo ao anarco-sindicalismo tive que lidar com ratos de esgoto. Não podia dar mesmo certo.

Infelizmente, minhas constantes mudanças de pouso fizeram com que meus exemplares dos jornalzinhos se perdessem em algum buraco negro. Ou então, o que é mais provável, os duendes levaram pra casa.

Em 1986, em homenagem ao Inimigo do Rei, eu, Marco Gomes, Arnaldo Garcez, Antonio Paulo Graça, Inácio Oliveira, Narciso Lobo, Anibal Beça, João Bosco Ladislau, Almir Graça, Manuel Galvão, Rogelio Casado, José Ribamar Mitoso e outros intelectuais da cidade fundamos o Coletivo Gens da Selva, que faz barulho até hoje.

Hoje, recebi do editor Robson Achiamé, um dos maiores divulgadores da cultura libertária no país, o livro “O Inimigo do Rei - Imprimindo Utopias Anarquistas”, de Carlos Baqueiro e Eliene Nunes, que conta a história do nanico baiano.


O livro já abre com uma citação de Albert Camus, publicada no 1º número do jornal: “Há uma ambição que deveriam ter todos os escritores: ser testemunho e gritar toda vez que se possa e na medida de nosso talento, por quem se encontra na servidão”.

Na introdução, Carlos e Eliene, ambos graduados em História pela Universidade Católica de Salvador (UCSAL) e especialistas em História Social pela mesma instituição, explicam porque resolveram mexer no vespeiro 30 anos depois de o jornalzinho ter rodado pela última vez:

A sociedade parece continuar a serviço de uma minoria, mas agora sem a necessidade de uma ditadura militar. E é esta minoria que detém hoje a matéria-prima fundamental à existência dentro desta sociedade: a informação.

Mesmo dento da Internet, um campo ilusoriamente democrático, os grandes portais abocanham a maior parte da audiência, enquanto o status de pobreza destitui boa parte da população de seu uso.

Como aconteceu com a televisão, progressivamente, o capitalismo se encarrega de excluir ou marginalizar os espaços que contrariem as normas comerciais, através de portais, banners ou sistemas de buscas que direcionem as preferências.

Essa é uma previsão que não pode ser descartada. A existência de sociedades democráticas não estará assegurada a partir do nascimento de nenhum meio, mas sim com o surgimento de conquistas coletivas e na distribuição igualitária dos conteúdos informacionais.

É pensando assim, e tentando retirar da minoria parte de seu poder, conseguido através da informação e do saber, que poderemos vislumbrar um mundo sem tantas diferenças econômicas.

Uma das possibilidades que temos para concretizar esta meta é através do reviver das histórias, normalmente esquecidas, de homens e mulheres que lutaram contra qualquer tipo de autoritarismo.

Daniel James revela sua preocupação em preservar esse tipo de memória social “dos oprimidos” até como forma de impedir uma perda coletiva de memória e tradição em uma conjuntura de reestruturação econômica e política tão perversa.

E como referência a isso nos fala de um importante movimento de bases populares na Argentina, ocorrido em 1969:

“(...) no ano passado na Argentina, um sindicalista disse-me que a maioria dos trabalhadores na sua empresa já não tinha a mais vaga idéia sobre o que o Cordobazo tinha realmente sido. O Cordobazo havia se tornado um nome, uma forma vazia de conteúdo. A necessidade de fazer frente a essa sorte de amnésia parece evidente.”

Os autores de “Os Baianos que Rugem”, livro que aborda a vida de três outros nanicos existentes na Bahia na década de 70, confirmam essa visão, pois constataram “a profunda desinformação a respeito do fenômeno (imprensa alternativa) por parte das novas gerações”.


Carlos e Eliene estão cobertos de razão. Se a gente, que esteve no olho do furacão, não contar a história como a história foi os historiadores de fancaria vão começara a reescrever a história de acordo com seus interesses mais excusos.

Quem se interessar pelo assunto, aí vai o e-mail do Robson Achiamé para adquirir um exemplar do livro, que custa a bagatela de R$ 20,00:

letralivre@gbl.com.br.

Outros livros anarquistas podem ser adquiridos no seguinte endereço:

www.achiamelivros.estantevirtual.com.br

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