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sexta-feira, março 26, 2010

O Chefão apresenta MPB Show de Pedro Cesar Ribeiro


Uma releitura de clássicos da MBP com um toque de jazz contemporâneo é a proposta do cantor e compositor Pedro César Ribeiro e banda, que se apresentam neste sábado, 27, a partir das 22 horas, no “GastroPub” O Chefão.

O show terá participação especial da cantora Lívia Mendes, e tem como instrumentistas, responsáveis pelos arranjos: Mathias Santos (contrabaixo), Reinaldo Cardoso (teclado) e Gilson de Souza (guitarra) e Luisão (percussão).

No repertório, a bossa nova de Jonnhy Alfy (Ilusão à Toa), Billy Blanco (A Banca do Distinto), Tom Jobim (Desafinado, Esse seu Olhar), Chico Buarque (Anos Dourados), e outras composições que marcam a história da música popular brasileira, entre elas: Agnus Sei (primeira canção gravada em LP por João Bosco), Beijo Partido (Toninho Horta), Samba e Amor (Chico Buarque), Madalena (Ivan Lins/Ronaldo Monteiro de Souza), Upa Neguinho (Edu Lobo e Gianfrancesco Guarnieri).

Este trabalho apresentado por Pedro Cesar Ribeiro é fruto de recente pesquisa realizada pelo artista para resgatar antigos sucessos da MPB e apresentá-los com novos arranjos e nova interpretação.

O artista vai apresentar algumas músicas de sua autoria, como Bossa Pávula e Nosso Amanhecer.

SERVIÇO

MPB SHOW
Local: O Chefão
Endereço: Rua Ferreira Pena, 50 - Centro
Data: 27/03/2010 (sábado)
Couvert: R$ 10,00
Tel.: 8153-8215 / 8189-5897 / 8828-1232

Galvez Botequim presta tributo a Renato Russo nesse sábado

sexta-feira, março 19, 2010

Cadu afirma que matou Glauco em 'missão de Deus'


“Cumpri um chamado de Deus”, disse Eduardo Sundfeld Nunes, o Cadu, 24, o assassino do cartunista Glauco Villas-Boas e seu filho, Roani. “Foi uma missão.” Ele disse também ser Jesus Cristo.

Cadu foi preso no domingo à meia-noite em Foz do Iguaçu quando tentava fugir para o Paraguai. Houve tiroteio. O rapaz disparou 25 tirou – e atingiu um policial - com a mesma arma que matou Glauco e o seu filho na madrugada de sexta (12), na casa da cartunista, em Osasco (SP).

Em entrevista agora à tarde, ele contou o que lhe passou no momento dos assassinatos: "Tô com uma arma na mão, no meio do mato, apontando a arma para um cara famoso. Os caras vão me condenar à morte aqui no Brasil. Vão me fuder com a vida. Aí eu peguei e falei: 'Você fodeu com a minha, demorou, vou foder com a sua também.' Aí atirei nele."

Cadu não explicou por que acredita que Glauco arruinou a sua vida. De qualquer forma, para o delegado José Alberto Legas, da Polícia Federal, "ele concatena muito bem as ideias”.

O delegado falou que, para não afetar as investigações, tem de manter em sigilo o depoimento do rapaz. Só adiantou que Cadu se referiu bastante à crença do Santo Daime. Trata-se de uma religião que mistura o xamanismo com espiritismo e cristianismo.

Por uns tempos, o jovem frequentou a igreja fundada pelo cartunista da seita do Santo Daime.

Antes de cometer os assassinatos, Cadu teria tomado, entre outras drogas, o chá de ayahuasca, que é um alucinógeno feito com um cipó e folhas de um arbusto cujo consumo é autorizado somente para os rituais do Daime.

Glauco tinha fundado a Igreja Céu de Maria, que fica no mesmo terreno de sua casa. Na terminologia da seita, ele era um “padrinho”.

A igreja do cartunista pertence a uma dissidência dos anos 70 criada por Sebastião Mota de Melo, que acrescentou um novo ingrediente ao chá: a maconha.

O “Maria” do nome da igreja de Glauco teria duplo sentido: um se refere à mãe de Jesus e outro à marijuana, a maconha. Mas não se sabe se, de fato, os adeptos da Céu de Maria fazem uso de maconha.

Também não se sabe por que Ricardo Handro, advogado de Glauco, mentiu à polícia ao afirmar, de início, que o cartunista e o seu filho tinham sido vítimas de assalto de dois desconhecidos.


[Com informações da Globo News.]

Jerusalem é na Amazônia


Revista SUPERINTERESSANTE – edição Março 2007 – ed. 237

Para os seguidores do Santo Daime, não há lugar mais sagrado no planeta que o Céu do Mapiá, pequena comunidade isolada na mata da Amazônia. Uma vez por ano, o lugar lota de peregrinos espirituais vindos de todas as partes do mundo.

Por Daniel Nunes Gonçalves

Numa golada só, a japonesa Fumie, 39 anos, toma o líquido marrom e espesso servido num copinho descartável de café. O gosto é amargo. Ela faz cara feia, respira e caminha do corredor para o seu lugar na roda do salão da igreja. Lá, Fumie se integra ao grupo de mais de 400 pessoas que canta e dança numa catedral de madeira no meio da floresta Amazônica. Trata-se do maior templo mundial de sua religião, o Santo Daime, e fica no alto de um morro da Vila Céu do Mapiá, no Amazonas. Coroa prateada na cabeça, ela usa um vestido verde e branco como o das outras mulheres que ocupam metade da igreja – a outra parte é exclusiva dos homens, de ternos brancos e gravatas azuis. Com um livreto de hinos nas mãos, Fumie se integra ao coro cantando no português dos caboclos. Ela não entende bem as palavras. Mas, quando fecha os olhos e sente o efeito do chá, cerca de 30 minutos após tomá-lo, sua experiência ganha sentido.


Sob os efeitos alteradores de consciência provocados pela ayahuasca, bebida de origem indígena que mistura o cipó jagube com a folha chacrona, típicos da Amazônia, Fumie vê seres da floresta, sente-se conectada ao Universo, percebe luzes divinas, tem”insights” sobre sua vida. Está “sob a força” do Daime e, acredita, isso é suficiente para ajudar no processo de cura espiritual que a levou até ali.

Nossa turista oriental está em um ritual religioso bem diferente das missas católicas e cultos evangélicos. Não há padre ou pastor, tampouco se lê aBíblia ou se ingere a hóstia sagrada. O centro do ritual é a bebida. Fumie está entre os muitos peregrinos que vieram de locais distantes do Brasil e do mundo para participar das 12 cerimônias do festival da virada do ano, entre dezembro e janeiro. Além dos visitantes, a maioria dos 600 habitantes da vila – alguns, caboclos da floresta, outros, forasteiros que se mudaram para lá – bailam no mesmo ritmo de dois-pra-lá-dois-pra-cá, tomando várias doses da bebida: 2, 5, 8… Chacoalham maracás e repetem “vivas” sempre que estimulados pelo grupo de líderes. A festa do Dia de Reis, acompanhada em janeiro pela de Super, durou nada menos que 12 horas. Detalhe: começou às 18horas do dia 5, com o soar de um gongo e estouro de fogos de artifício, e acabou no amanhecer seguinte, demarcando o início do novo ano no calendário daimista. A disposição incansável dos fiéis tem um motivo: o festival do Céu do Mapiá é o grande encontro mundial dos adeptos do Santo Daime. Nessa época, todos os seguidores da religião sonham em estar ali. O que Jerusalém é para judeus, Meca para muçulmanos, o vilarejo amazônico do Céu do Mapiá é para os daimistas: o mais sagrado de todos os lugares.

“Conhecer o Mapiá é a realização de um sonho”, conta Fumie, já refeita do transe. A moça, que abandonou um emprego de secretária em Tóquio, faz parte do grupo de 500 adeptos do Santo Daime que vivem fora do Brasil – de um total de 4 mil seguidores, espalhados por 80 núcleos no país e 20 no exterior, em países como EUA e Espanha. A complicada vinda ao Mapiá, segundo a japonesa, compensa. Ainda que ela tenha gasto US$ 2 mil para voar 24 horas de Tóquio a São Paulo, e mais 6 horas até Rio Branco, capital do Acre. Ainda que a peregrinação inclua mais 6 horas de táxi, em chão de terra, até a cidade deBoca do Acre, no estado do Amazonas (ao preço de R$ 300), localidade mais próxima para hospitais, mercados ou correios. E ainda que, de Boca do Acre, leve-se outras 6 horas ao longo do rio Purus e do igarapé Mapiá, uma viagem que custa R$ 600 e que pode ser muito mais longa se os rios não estiverem cheios.

Gênese


No princípio, havia o Sol, a Lua, a floresta, os índios… e a ayahuasca. A bebida secreta originária da Amazônia Ocidental é usada há séculos por xamãs indígenas. Seu princípio ativo só foi descoberto pela ciência em 1851 e sua denominação como “Santo Daime” não tem nenhuma participação de um homem santo de nome Daime, como pode parecer. Para entender o Céu do Mapiá, seu festival e essa religião é preciso apresentar antes de mais nada Raimundo Irineu Serra, um neto de escravos negros que nasceu no Maranhão em 1892. Sua família fazia parte dos milhares de retirantes nordestinos que rumaram para o Acre em busca da riqueza prometida pela exploração da borracha nos seringais, numa saga retratada recentemente pela minissérie Amazônia, da TV Globo. A ayahuasca só lhe foi apresentada por um xamã peruano, dom Crescêncio Pizango, quando Irineu trocou o ofício de seringueiro pelo de funcionário público nos serviços de delimitação das fronteiras do Acre comBolívia e Peru. Em um dos transes, Irineu teria “recebido” os primeiros ensinamentos daquilo que se tornaria a base da sua religião, dada por uma miração – uma visão mágica – que ele reconheceu como sendo Nossa Senhora da Conceição. O nome da nova corrente religiosa, que ele passaria a desenvolver ao se mudar para Rio Branco em 1930, surgiu das invocações feitas antes detomar o chá: “dai-me luz, dai-me força, dai-me amor”.

A fama de que a tal bebida secreta teria propriedades curativas fez o grupo crescer até que, com a morte de Irineu, em 1971, nasceram diversas correntes do Santo Daime. Sua viúva, “Madrinha” Peregrina Serra, preferiu dar continuidade à doutrina de forma reclusa, na periferia de Rio Branco, se recusando a receber jornalistas e forasteiros. A dissidência mais bem-sucedida acabaria sendo a de um amazonense de nome Sebastião Mota de Melo. O homem de barbas longas tinha conhecido o Daime aos 45 anos, quando buscara ajuda do Mestre Irineu na tentativa de curar uma doença de fígado. Figura carismática, “Padrinho” Sebastião realizou seus primeiros trabalhos como líder na periferia pobre onde morava, conhecida como Colônia 5 000. A vizinhança acabaria se transformando em uma comunidade espiritual cosmopolita, que passou a atrair pessoas de classe média de vários lugares do Brasil e do mundo – especialmente os mochileiros hippies da década de1970 que buscavam experiências transcendentais com esse chá de poderes alucinógenos.

Quando a Colônia 5 000 tinha cerca de 400 moradores, em 1980, diz a lenda que foi a vez de Sebastião receber, como havia acontecido com Mestre Irineu, uma missão do Santo Daime: expandir a doutrina pelo mundo a partir da criação de uma comunidade espiritual no meio da floresta. O homem convenceu parte de seu rebanho a seguir com ele para o seringal Rio do Ouro, no município de Boca do Acre, em terras oferecidas pelo Instituto de Colonização e Reforma Agrária, o Incra. Depois de dois anos ali, foi constatado que aquelas terras tinham dono. Resultado: os 215 fiéis teriamque enfrentar uma nova migração na floresta. Sebastião levou o grupo a se deslocar para outro terreno, no município de Pauini, à beira do igarapé Mapiá. A viagem dos primeiros 34 desbravadores, em 1983, foi uma epopéia. Os homens enfrentaram o calor amazonense, os insetos, as mortes por malária. Toda a estrutura do mundo moderno ficara para trás: da luz elétrica aocomércio de alimentos e materiais de construção.

Terra prometida


O Céu do Mapiá nasceu, 24 anos atrás, como a principal igreja do braço daimista encabeçado por Sebastião e batizado de Centro Eclético da FluenteLuz Universal, o Cefluris. Ao mesmo tempo em que virava um oásis de organização comunitária em meio à miséria das comunidades ribeirinhas vizinhas, nasciam as primeiras igrejas no sul do Brasil, como o Céu do Mar, no Rio, e o Céu da Montanha, em Visconde de Mauá. Padrinho Sebastião morreu em 1990 e seu legado passou ao segundo de seus 8 filhos, Alfredo GregórioMota de Melo, o Padrinho Alfredo, hoje com 57 anos. A capital da fé daimista cresceria com casas coloridas de madeira espalhadas por um centrinho com jardins bem cuidados e uma rotina que gira em torno da religião – da roça que produz boa parte do alimento à produção do chá, que chega a 20 mil litros por ano e abastece quase todas as igrejas da corrente.

Muita coisa mudou, porém, desde os tempos do Padrinho Sebastião, quando não circulava dinheiro, todas as casas eram erguidas em regime de mutirão e as luzes provinham de silenciosos lampiões. Desde 1995, a vila viu chegar a telefonia, a televisão, a internet. O fluxo de visitantes acirrou a concorrência entre as dezenas de barqueiros e os donos das 3 pousadas e dos 4 armazéns. Em função dos altos custos das viagens de barco, uma garrafa de guaraná vale R$ 7, um litro de gasolina custa R$ 5 e um botijão de gás não sai por menos de R$ 80. Comandante da Pousada São Miguel, a principal hospedaria da vila, Geracina Castelo Branco reconhece a dificuldade de ganhar dinheiro em uma irmandade espiritual. “Os visitantes chegam aqui, se hospedam nos primeiros dias e logo são convidados para dormir, de graça, na casa de algum irmão da doutrina”, conta. Outros problemas são típicos de cidades: o lixo começa a se acumular, no último festival um argentino teve a mochila roubada e o excesso de fluxo de barcos no estreito igarapé provocou acidentes, um deles fatal.

Festa no céu

Nas férias de dezembro, janeiro e junho, o Céu do Mapiá é só festa. Instituídos por Mestre Irineu, os festivais nasceram com o propósito de comunhão com os visitantes e foram fundamentais para a expansão internacional da doutrina, na década de 1980, por atraírem estrangeiros interessados em conhecer um chá com efeitos psicoativos. Além de abrigar mais “trabalhos” espirituais na igreja – como os aniversários do Padrinho Alfredo, em janeiro, e de sua mãe Madrinha Rita, viúva do Padrinho Sebastião, em junho – os festivais demarcam a mudança do dia-adia. É quando o movimento passa da roça e da escola para as atividades de entretenimento. A agenda de atividades do último festival (redigida sobre as datas de um calendário maia) incluía cursos de produção de florais da Amazônia,workshops de massagem e outras terapias do movimento “nova era”.

As atividades mais disputadas, porém, são aquelas que incluem a ingestão doSanto Daime. Nos primeiros dias do ano, Padrinho Alfredo guiou mais de 200 pessoas na caminhada anual pela floresta, com 3 paradas para tomar o chá. No fim de janeiro, uma gira de umbandaime – uma cerimônia de umbanda com ingestão do chá – homenageou Oxossi, com direito a incorporações mediúnicas e toques de tambores. Nenhum ritual agrada mais quem vem de longe do que a oportunidade de participar do “feitio”, o trabalhoso processo de preparo dochá. As mulheres colhem e limpam, uma a uma, as folhas da chacrona (apresentada como a “energia feminina” do chá, que traz a luz para odaimista); já os homens cortam, limpam e macetam (ou trituram) o cipó jagube (a “energia masculina”, que traz a força), para depois cozinhá-lo, por até12 horas, em grandes panelas numa fornalha. “Essa é uma oportunidade única para quem mora fora do Brasil e só costuma ver o Daime chegando, já preparado, em garrafas plásticas”, diz Thomas Sandbichler. Arquiteto austríaco, 40 anos, ele já peregrinou por várias rotas espirituais do planeta, como a Índia, e agora planeja comprar uma casa no Mapiá, como já fizeram grupos de holandeses e americanos.

A doutrina


A catedral do Céu do Mapiá é o melhor exemplo do ecletismo de suas raízes. Na entrada há uma imagem do rosto do Padrinho Sebastião de 3 metros de altura. O teto e a mesa central do saguão foram moldados com a forma da estrela de 6 pontas que os daimistas chamam de “selo de Salomão”, referênciaao rei judeu da Bíblia, que é citado pela busca por sabedoria. A estrela é um dos principais símbolos da religião, assim como a cruz de caravaca, de dois braços. A cruz nasceu como símbolo do grão-mestre dos templários, naIdade Média, e foi adotada, séculos depois, como sinônimo de ocultismo. Placas com a imagem de São João, símbolo do catolicismo, e de Iemanjá, ícone do espiritismo, dividem espaço com representações da natureza: réplicas de beija-flores enfeitam o entorno do tronco de uma castanheira de 17 metros.

Fundamentais em qualquer roda de Daime, os hinários também remetem a Jesus eà Virgem. A cada cerimônia, é lido um dos livretos de até 180 hinos, todos abrigando as letras “recebidas” pelos líderes durante os transes. Os do Mestre Irineu e do Padrinho Sebastião são os mais importantes e funcionam como uma bíblia. Alguns hinários também evidenciam a influência do kardecismo, já que Padrinho Sebastião era um médium.

“O Daime se dá bem com qualquer religião verdadeira”, diz Padrinho Alfredo, a maior liderança viva dessa linha do Santo Daime. Ele é o principal responsável pela doutrina existir hoje em mais de 20 países. “Mas não fazemos proselitismo. As pessoas é que chegam até nós”, conta Alfredo, que costuma viajar para conferir o crescimento das igrejas distantes. Para o antropólogo Edward MacRae, autor do livro Guiado pela Lua, best seller entre os daimistas, a expansão da religião reflete um amplo movimento do Ocidente cristão. “O Daime, assim como os evangélicos pentecostais, oferece acesso direto ao Espírito Santo. E as pessoas têm buscado experiências místicas sema intermediação da figura do sacerdote.”

O sacramento


É para ter a chance de entrar em contato com o sagrado por meio de uma substância que atua no sistema nervoso central que muitas pessoas se convertem ao Daime. Quem mora no Mapiá justifica seu projeto de vida radical alegando prioridade para a “evolução espiritual” e fuga das “ilusões domundo material”. Muitos dos estrangeiros buscam a comunidade para realizar seus rituais sem a pressão da ilegalidade. É que o Santo Daime só está regulamentado em dois países, além do Brasil: Espanha e Holanda. Nos outros lugares, o transporte e o uso da bebida são proibidos. Entre 2004 e 2005, por exemplo, 24 daimistas da Itália foram detidos em prisão domiciliar pela brigada antimáfia, acusados de tráfico internacional, uso de drogas e formação de quadrilha, com penas que variam de 8 a 20 anos. Quarenta litros da bebida foram apreendidos. Antes da liberação na Espanha, dois brasileiros que desembarcaram com garrafas do chá passaram 54 dias atrás das grades. A japonesa Fumie poderia ser presa como criminosa em seu país, já que bebe ochá em rituais às escondidas. “Nossos trabalhos são feitos em uma pequena casa, com as pessoas sentadas em tatames e cantando em japonês”, diz ela, acostumada a tomar Daime uma vez por mês. Durante os 30 dias que passou noCéu do Mapiá, Fumie pôde tomar o chá em 15 oportunidades.

As restrições legais se devem ao fato de a folha da chacrona possuir o alcalóide dimetiltriptamina (DMT), que tem poderes alucinógenos e é proibido em vários países. Curiosamente, seus poderes alteradores de consciência só fazem efeito quando o DMT é misturado ao jagube. No Brasil, o uso religioso é permitido há mais de uma década. No ano passado, o Conselho Nacional Antidrogas formou um grupo, com representantes de igrejas, antropólogos, bioquímicos, advogados e psicólogos, que definiu regras para regulamentar aprodução, o transporte e o uso terapêutico do chá.

A decisão cristaliza a posição do governo brasileiro com relação ao chá psicoativo e deve contribuir para a aprovação de seu uso em países como o Canadá e EUA, onde a comunidade daimista tenta, há anos, acabar com as restrições. Enquanto a legalização internacional não acontece, o Santo Daime deve continuar crescendo clandestinamente, e a peregrinação espiritual de multidões de gringos aos confins da Amazônia não dá sinais de cessar. Na virada do ano 2000, a população do Mapiá triplicou: 1 800 fiéis estavam ali, muitos acreditando que a virada do milênio fosse o fim dos tempos e escolhendo morrer no Éden. Para os daimistas, a comunidade da floresta representa, sim, o paraíso na Terra. É o lugar ideal para descansar em paz.

A boa nova do Juruá


A expansão do Santo Daime no exterior e a opinião de Padrinho Alfredo sobre 10 temas cotidianos

Embora a expansão do Santo Daime pelo exterior esteja apenas começando, são seus rumos na Amazônia que mais encantam os daimistas. A menina dos olhos doPadrinho Alfredo Gregório, o líder máximo da linha conhecida como Cefluris, é a região no entorno do rio Juruá, que corta Acre e Amazonas. “Papai teve uma visão espiritual, um ano antes de morrer, em 1989, de que voltaríamos para lá”, conta Alfredo, referindo-se ao Padrinho Sebastião. Trinta famílias de 5 comunidades praticam, há quase uma década, a religião como no Céu do Mapiá de antigamente, sem luz, água encanada e o capitalismo da cidade grande. O acesso a alguns dos povoados pode levar 2 ou 3 dias a partir da capital. “Já chegamos a juntar 160 pessoas em uma cozinha comunitária para estudar a doutrina”, conta. A principal das 5 comunidades é a de Cruzeiro doSul, no Acre, mas a que mais toca o coração de Alfredo é a do seringal Adélia, onde ele nasceu e viveu até os 7 anos. “O Daime é a luz de que o povo carente da Amazônia necessita”, acredita.

Fala, Padrinho

O que o Padrinho Alfredo, líder do daime, diz sobre:

Aborto: “Somos contra. E ponto final. Acreditamos que é um crime contra a vida.”

Álcool: “Sua venda é proibida no Mapiá. Tomo no máximo um vinhozinho de leve, em alguma viagem ou comemoração.”

Camisinha: “A doutrina não diz nem sim nem não. Eu acho bom para controle familiar e para evitar doenças.”

Casamento: “Valorizamos a família harmonizada na doutrina e no trabalho, com sexo saudável e livre do adultério.”

Drogas: “Dizemos não. As pessoas acabam se entregando a elas. Preferimos estudar a medicina natural da floresta.”

Espiritismo: “Acreditamos em reencarnação e damos encaminhamento mediúnico aos espíritos que precisam de luz.”

Homossexualidade: “Não posso julgar o homossexual que é fiel à doutrina. E confiamos na sua evolução como ser divino.”

Sexo: “É proibido 3 dias antes e 3 depois dos ‘trabalhos’ religiosos, para que a pessoa esteja livre dos males mundanos.”

Umbanda: “A umbanda adotou o Santo Daime – e não o contrário – e se deu bem. Mas não está no nosso calendário oficial.”

Virgindade: “É valorizada antes do casamento. Nos trabalhos espirituais, as primeiras filas da igreja são para as virgens.”

Para entrar em contato com Daniel Nunes: dan-nunes@uol.com.br

O assassino e os fatos


Por REINALDO AZEVEDO

Carlos Eduardo Sundfeld Nunes, o tal Cadu, assassino confesso do cartunista Glauco e de Raoni, seu filho, está preso como vocês já viram. Tanto melhor. Espera-se que a prisão sirva para dirimir algumas dúvidas. Consta que ele ficou escondido na mata, no Pico do Jaraguá, até conseguir roubar um carro e fugir para Foz do Iguaçu.

Ao Fantástico, “Madrinha Bia”, mulher de Glauco, assegurou que Cadu deixara a chácara no carro de Felipe de Oliveira Iasi. Felipe diz que tinha ido embora antes de consumada a tragédia, o que batia com a versão inicialmente apresentada por Juliana, filha de Bia, segundo informara a Polícia. Em depoimento colhido hoje, no entanto, a moça confirma a versão da mãe, a mesma relatada por um amigo de Raoni. Se Cadu deixou o local da tragédia no carro, teria saltado no meio do caminho para se esconder na mata?

Em entrevista, Cadu confessou o duplo homicídio. Amigos seus ouvidos pela imprensa relatam a sua intimidade com o consumo de drogas — ele portava maconha no momento da prisão. Segundo o testemunho de uma garota, passou a andar em companhia de traficantes. Teria conseguido dinheiro para fugir vendendo… maconha. A se confirmar a informação, isso faz dele algo mais do que simples usuário, não é mesmo?

Esses mesmos testemunhos asseguram que Cadu buscou a igreja Céu de Maria, liderada por Glauco, para supostamente se livrar das drogas. Mesmo com um perfil, vamos dizer, problemático, Cadu já era um dos “fardados” — pessoas que têm o direito de usar o daime. O que é preciso exibir para adquirir esse status, bem, isso eu não sei. Se é uma questão de apuro espiritual que só pode ser percebido por uma sabedoria não-convencional, um engano fatal aconteceu no caso de Cadu. A igreja de Glauco pertence a uma espécie de dissidência daquele culto surgido no Acre: além do tal chá, essa corrente também faz uso “ritual” da maconha — chamada de “Santa Maria”.

A polícia tem muito trabalho pela frente. A sua missão é desvendar o que de fato aconteceu. Para que o assassino possa ser devidamente punido. E o primeiro passo é não se deixar enredar por grupos de pressão de qualquer natureza. Cadu não me pareceu o primeiro aluno da classe em comportamento, mas confesso — é só uma impressão, é óbvio — que não consegui ver nele o maluco clínico que está sendo vendido por aí.


Fonte: Blog do Reinaldo

A morte de Glauco


Por REINALDO AZEVEDO

Lamento, de verdade!, a morte do cartunista Glauco e de seu filho, Raoni. É evidente que os quadrinhos e mesmo a crônica jornalística perdem um crítico agudo, engraçado, que tinha um talento muito especial para ironizar costumes, especialmente os das comunidades que eu ousaria chamar de “hiper-urbanas”, típicas das metrópoles que perdem sua identidade e se tornam cidades do mundo. E ainda que não tivesse talento nenhum: trata-se de um episódio chocante, lamentável.

Não tenho a intenção de polemizar. O que parece evidente é que a tragédia acontece no âmbito da “igreja” fundada pelo cartunista, Céu de Maria, ligada ao consumo ritualístico do daime. E essa questão merece, creio, ser devidamente tratada. Neste ponto, alguém poderia dizer para provocar o escrevinhador católico: “E quantas pessoas o crucifixo já matou? Você não pode suportar algumas mortes atribuídas ao daime?”

Não estou em busca de culpados — o responsável, tudo indica, já foi identificado. Mas há um fato que qualquer apuração jornalística poderá constatar, quando tivermos vencido a fase da consternação. O daime está atraindo — e seus ritualistas têm aceitado — pessoas com sérios desvios de comportamento, especialmente viciados em outras drogas, que procuram consumir a substância para atingir, sei lá, a “elevação” que as outras substâncias provocariam, porém sem os malefícios.

A turma do protesto releia antes de gritar: não estou afirmando que todos os adeptos da “religião” são consumidores de drogas ilícitas. Estou afirmando que esses grupos estão atraindo muitos viciados. Isso é fato. Não só isso: infelizmente, distúrbios psíquicos — que não se curam com milagres; nesse caso, Deus nos presenteou com os fármacos adequados — são vistos, às vezes, como falta de iluminação. Atravessando-se certo umbral da percepção, viria a paz…

O assassino de Glauco e de seu filho, tudo indica, se não era um doente, estava doente. A natureza do mal, não sei. Consta que queria que o líder religioso asseverasse à sua família que era Jesus Cristo. Os adeptos do daime utilizam em seus rituais e em sua, vá lá, metafísica elementos oriundos do cristianismo de raiz popular. A transubstanciação cristã — ou católica — é bem outra e não conduz a nenhuma alteração de consciência. A apropriação de elementos cristãos em rituais dessa natureza não poderia ser mais arbitrária e infundada. Mas não vou debater isso, não.

Acho que é preciso pensar a tragédia com mais cuidado. O Conselho Nacional Antidrogas liberou o consumo do daime para fins ritualísticos. Ninguém tem o direito de ter dúvidas se acho isso um bom ou um mau caminho, dado o que escreve habitualmente sobre drogas. Mas o que interessa agora é recomendar prudência. Os que acreditam nas virtudes do daime como algo que eleva a consciência devem ter claro que ele não cura certas doenças psíquicas. A depender do caso, e poderá atestá-lo qualquer psiquiatra, o mal pode se agravar.

Tenho a impressão de que aí está a origem da tragédia que colheu a família Villas-Boas. E todos nós devemos lamentar profundamente o ocorrido. Mas sem dourar a pílula; sem dourar o daime. Os místicos advertem, muitas vezes, quando se debatem certos assuntos: “É melhor não mexer com essas coisas”, sugerindo que um mundo espiritual, mágico talvez, possa reservar surpresas terríveis, o famoso “desconhecido”. Católicos tendem a ser racionalistas. Não temo nunca o que vai além do homem, o outro mundo. Temo só o que está NO homem. Ele é a fonte de toda a maravilha e de todo horror. E é bom que as religiões todas, a minha e a de qualquer um, tenham noções dos seus limites.

Talvez o daime permita sensações que o Prozac, o Zyban ou Zoloft jamais proporcionarão. Mas será sempre um erro supor que uma infusão, a hóstia consagrada ou o amuleto de um pastor possam tomar o lugar daqueles remédios e do saber que os trouxe à luz.

Que Glauco e seu filho descansem em paz. E que os vivos escolham a razão que liberta.

PS: O advogado da família, Ricardo Handro, que se diz amigo de Glauco há 12 anos, deve explicações. Está na cara que sua versão para o crime, com entrevista gravada e tudo, era fantasiosa. Àquela altura, já havia conversado com outras pessoas da família e tinha condições plenas de saber o que tinha acontecido. Um profissional como ele sabe que uma versão descolada dos fatos atrapalha a investigação e poderia colaborar para manter o assassino impune.


Fonte: Blog do Reinaldo

Glauco Vilas Boa e o Santo Daime



Por RICARDO FELTRIN

secretário de Redação da Folha Online

"Eu vi o meu povo amarrado
Todo acorrentado por falta de amor
Minha mãezinha estava comigo
E me sustentava com seu grande amor."

(Chaveirinho, "Águia Dourada", hino nº 15, por Glauco Vilas Boas)

Uma vez Glauco sonhou que a igreja que ele criou, a Céu de Maria, no Jaraguá, era invadida por pessoas que fugiam de São Paulo. No sonho, contou Glauco, as pessoas fugiam da cidade desesperadas, por causa da violência, e ele temeu não ter como ajudá-las, pois eram muitas.

Glauco relatou esse sonho durante um ritual em 2000, no dia em que recebia e celebrava a iniciação de mais um grupo em sua igreja, na chamada cerimônia de "fardamento" - quando os fieis são oficialmente iniciados na doutrina.

Glauco ganhou o título de padrinho ao fundar a igreja Céu de Maria em meados dos anos 90, mas sua origem religiosa é muito anterior a isso. Ele contava que teve a primeira epifania mística ao ler livros de Carlos Castaneda, escritor e guru de uma geração, e autor entre outras obras do clássico "A Erva do Diabo". Definia Castaneda como o grande marco em sua vida.

Antes do Daime, Glauco frequentou centros de ensino esotéricos como Rosacruz, Eubiose e teosofia. Ele tomou o daime pela primeira vez na igreja fundada pelo escritor Alex Polari, na montanhosa Visconde de Mauá, no interior do Rio de Janeiro. Logo no primeiro trabalho diz ter visto "a luz" que modificaria sua vida para sempre. Começou sua caminhada como mestre reunindo um pequeno grupo de amigos em uma casinha no Butantã (zona oeste de SP).

Era lá que todos tomavam a amarga bebida sagrada, enviada pelos pioneiros da Amazônia, bebida feita da folha de planta chacrona e do cipó de mariri (também chamado jagube), e cujo preparo é também um ritual em si, chamado "feitio", e que pode se estender por até um mês. Glauco costumava se referir ao daime como "o vinho da floresta".

Para os vizinhos do Butantã, no entanto, não havia nada de sagrado nas celebrações, e era comum os trabalhos terminarem com a presença profana da polícia. Glauco, no entanto, teve sua missão reconhecida pela igreja central do daime no país, o Céu do Mapiá, no Acre, e com a benção de suas lideranças montou a própria igreja num grande terreno adquirido próximo ao pico do Jaraguá.

Com seu suor, da mulher Bia e dos filhos de ambos, a Céu de Maria cresceu e, em alguns rituais, reúne mais de 300 pessoas, vindas de várias partes do mundo. Glauco, o padrinho, era querido e amável com todos, e comandava os trabalhos no centro da igreja, sentado em um banquinho, acompanhando os cânticos com seu acordeão escuro.

De seu posto central, apenas usando o olhar, era capaz de agradecer ou admoestar o daimista ou visitante que estivesse ajudando ou atrapalhando o trabalho. Da mesma forma que era um líder carinhoso, não hesitava em interromper o ritual e ralhar com toda igreja quando notava falta de concentração ou dispersão.

Além de líder religioso, Glauco também era compositor e deixa para a doutrina que abraçou dois grandes hinários de fé, um conjunto de cânticos, como o verso publicado no alto deste texto.

Esses dois hinários, o Chaveirinho e o Chaveirão, foram cantados anteontem à noite, dia de seu aniversário de 53 anos, quase no mesmo local em que ele partiu nesta sexta, vítima da violência que ele intuiu em sonho, mas não pode evitar na realidade.

Seus dois hinários serão cantados novamente hoje, em todas as igrejas daimistas do país, e voltarão a ser cantados todos os anos nesta mesma data, em memória à partida de Padrinho Glauco.


Fonte: Folha Ilustrada

quinta-feira, março 18, 2010

E o Geraldão ficou sem pai nem mãe

Colegas quadrinistas, jornalistas e autoridades como o presidente Lula e o ministro Juca Ferreira lamentaram a morte do cartunista Glauco Villas Boas nesta sexta-feira (12). O artista e seu filho, Raoni, foram baleados em sua casa em Osasco, na Grande São Paulo, nesta madrugada.

Caco Galhardo, quadrinista - "Todo mundo está muito chocado. O Glauco é um grande talento que perdemos subitamente. Para todos os cartunistas foi uma grande referência. O Geraldão é uma grande referência e o Glauco era um cara pacífico. Como alguém pode fazer uma coisa dessas? O atirador não tem noção. O Glauco era um gigante. Ele tinha o dom de repetir a mesma piada e ser engraçada dez mil vezes. O mundo acordou mais xarope hoje."

Angeli , quadrinista - "Essa situação tirou o meu chão e o do Laerte. Hoje ficamos mais pobres."

Adão Iturrusgarai, quadrinista - "É uma tragédia. Não é ler que o Glauco morreu. É ler que ele foi assassinado. E junto a um filho. Não fomos amigos tão próximos, mas estou bem chocado. É muito triste ver isso acontecendo. Não existe mais ética moral no ser humano. Hoje em dia, um ladrão não te assalta com um 38 - ele entra na sua casa com um fuzil. A violência virou uma epidemia de falta de moral. Algo que começa em Brasília e se estende pela sociedade. Ele foi uma influência muito forte, poderosa. Tenho desenhos que fiz na década de 80 que são muito parecidos com os do Glauco, uma coisa meio Henfil, caligráfica, típica de quem não sabe desenhar muito bem. Vai ser um dia de m...."


Adão, Laerte, Angeli e Glauco, autores da série 'Los 3 amigos', em foto de 2002 (Foto: Leopoldo Nunes/JC Imagem/AE)

Toninho Mendes, editor - “Com ele morre uma parte do que esse país tinha de alegre, respeitoso, diferente e em busca do futuro. Estou sem condições de falar. Você não imagina o meu estado de transtorno. A gente trabalhou juntos na Circo, por quase dez anos. Eu não consigo acreditar no que está acontecendo.”

Lula , presidente da República - "Glauco foi um grande cronista da sociedade brasileira, entendia os usos e costumes da nossa gente e expressava isso com inteligência e humor. (...) Foi uma perda tremenda. Diante dessa verdadeira tragédia, quero expressar meu sentimento de pesar a familiares, amigos e admiradores."

José Serra, governador de São Paulo - "Lamento a morte trágica e precoce do cartunista Glauco. Dono de um traço caligráfico, ele criou toda uma galeria de personagens, alguns tão familiares que são hoje parte do nosso cotidiano nas 'tirinhas' dos jornais. Era um crítico dos usos e costumes do nosso país sem perder a leveza e o humor tão brasileiro de seu desenho. Nesta hora de dor, quero expressar à família, amigos e fãs do cartunista nossas condolências."

Juca Ferreira , ministro da Cultura - "Glauco encarnava uma soma de qualidades tão rara a ponto de parecer ficcional: o anarquismo explosivo que marcava os personagens –desenhados num cubismo aparentemente simples; a doçura no trato com as pessoas; e a condição de fundador de uma igreja do Santo Daime. Essa sua natureza se choca de maneira inexplicável com a morte violenta dele e do filho --pelo que transmito meu abraço de conforto à família e aos amigos. Como apontam os colegas de diferentes gerações, Glauco renovou os quadrinhos ao dar novo peso à dimensão do comportamento numa época em que a temática política reinava quase absoluta. (...) Como se esquecer de Los Tres Amigos, Geraldão, Dona Marta e tantos outros – e, é claro, como se esquecer do próprio Glauco?"


O cartunista Glauco, em foto de 1986 (Foto: Juvenal Pereira/AE)

Maurício de Sousa, quadrinista - "Como eu disse no primeiro momento, no Twitter, o fato é tão chocante que nossa reação não pode ser medida em palavras, mas em um sentimento de dor, luto e desesperança. Apesar disso, nós sairemos do choque. E vamos encontrar caminhos, mesmo que sejam longos, demorados, para contermos essa onda de irracionalidade e desumanidade. Famílias bem formadas, educação, fé em Deus, justiça social serão alguns dos pontos por onde passará o caminho do respeito à vida. Vamos lutar para isso. Como tributo ao Glauco e ao Raoni."

Fernando Gonsales, quadrinista - "É um acontecimento muito triste. Ele era um cara muito legal e que fará muita falta. Eu acho que o trabalho dele, de um jeito ou de outro, influenciou a minha geração. Ele deu uma escrachada que revolucionou. É assim que o vejo: como um dos grandes revolucionários do humor brasileiro."

José Hamilton Ribeiro , jornalista que deu primeiro emprego de cartunista a Glauco, no "Diário da Manhã" - “Quando ele chegou conosco a Ribeirão Preto (interior de SP), tinha um jeito tímido, meio hippie. Mas ao mostrar o traço, ainda rude, já mostrava duas qualidades que todo bom quadrinista persegue: alta capacidade de síntese e habilidade para ‘bater na cabeça’ do leitor. Para mim, é uma perda enorme. Deixa de existir uma pessoa que tinha uma consciência ecológica, um respeito pela natureza e, principalmente, pela dignidade humana”.

Allan Sieber, quadrinista - "Eu infelizmente nunca cruzei com ele, era o único que não conheci pessoalmente da turma dos Los 3 Amigos. Mas segundo os chegados, era um gênio da resposta rápida, muito rápido no gatilho mesmo. Eu - e creio que toda minha geração - fui muito influenciado por aquela cena paulista que o Toninho Mendes agregou ao redor dele, como Angeli, Glauco e Laerte. E o Glauco foi o que introduziu um elemento anárquico muito saudável nessa turma. Vai fazer falta."

Chico Caruso, cartunista - "Era um cara bem engraçado, esperto, com um trabalho sempre jovem. Ele foi o primeiro a publicar genitália desnuda em um grande jornal. Aquela secretária, a Dona Marta, o Geraldão, são personagens geniais! Que tragédia, perdemos um grande talento do humor.

Gabriel Bá, quadrinista, no Twitter - "Que merda! O Glauco foi morto a tiros em casa! Um filho também morreu! Que bosta!

Simão Pessoa, gerente do mocó: Eu só vim saber da presepada na última segunda-feira, já que estou sem internet em casa e não costumo assistir televisão. Estou triste até agora. Há 20 anos, um amigo meu esteve visitando o Céu do Mapiá, em Pauini, onde se localiza a principal corrente do Santo Daime no Brasil (ligada ao falecido padrinho Sebastião). Ele voltou assustado. Os caras haviam introduzido o consumo da maconha (denominada de Santa Maria) nas reuniões daimistas. Estava na cara que um dia ia dar merda (só não sabia que o querido Glauco pagaria o pato). Nenhuma outra corrente que usa ayhuasca (UDV, Alto Santo, Barquinha, etc) admite o consumo da maconha em seus rituais. Os dirigentes do Céu do Mapiá (padrinho Alfredo, padrinho Alex Polari, etc) são os responsáveis diretos pela morte do Glauco. Que a terra lhes seja leve, malditos!

quarta-feira, março 10, 2010

Fechado pra balanço


Por motivos alheios a minha vontade de anarco-trotskista 4Life, o mocó vai sair do ar por algumas semanas. Espero retomar a presepada a partir do próximo mês. Por enquanto, se divirtam com essa historinha do tempo em que éramos todos jovens.

Depois do golpe militar de 1964, ocorreu uma diversificação de grupos políticos no cenário nacional, que vão desaguar no movimento estudantil na década seguinte.

No cenário nacional, os partidos políticos foram dissolvidos e, a partir de 1965, por imposição do regime, passaram a existir somente dois partidos: a situacionista Aliança Renovadora Nacional (Arena), e a oposição “moderada”, o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), que era uma frente de partidos colocados na ilegalidade.

Fora do campo institucional, vários grupos de esquerda resistiram e procuravam combater a ditadura pela guerrilha urbana ou rural.

A Ação Popular (AP) nasceu em 1961, após uma racha na Juventude Universitária Católica (JUC).

A Organização Revolucionária Marxista – Política Operária (ORM-Polop) também foi fundada em 1961.

A primeira grande cisão importante ocorreu no Partido Comunista Brasileiro (PCB), em 1962, dando origem ao Partido Comunista do Brasil (PCdoB).


Outra dissidência do Partido Comunista Brasileiro (PCB), a Ação Libertadora Nacional (ALN), surgida em 1967, era intimamente ligada a Carlos Marighella, que, com o lema “a ação faz a vanguarda”, tentou disseminar a guerrilha urbana entre os anos de 1968 e 1973.

A mais famosa ação da ALN foi a participação no seqüestro do embaixador americano Charles Burke Elbrick, no Rio, em parceria com o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), outra dissidência do PCB.

Ainda em 1967, a maior parte dos militantes da Polop de Minas Gerais se desligou da organização para fundar o Comando de Libertação Nacional (Colina).


A Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), fundada em 1968 pelo ex-capitão Carlos Lamarca – que depois passaria para o MR-8 –, era uma dissidência do PCdoB.

O Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), outra cisão do PCB, também foi formado em 1968.

Posteriormente, em meados de 1969, remanescentes da VPR e do Colina, se uniriam para formar a Vanguarda Armada Revolucionária-Palmares (VAR-Palmares).

A partir de 1975, consolidam-se nas universidades as correntes organizadas nacionalmente, que expressavam veladamente as posições da esquerda brasileira depois da derrota da luta armada.

Tais tendências revelam a persistência das organizações tradicionais como a Ação Popular e MR-8 (agrupado por algum tempo na corrente “Refazendo”) e o PCB (da corrente “Unidade”).

Mostravam também uma nítida ascensão do Partido Comunista do Brasil (corrente “Caminhando”, que depois passou a se chamar “Viração”), fortalecido pelo prestígio da guerrilha derrotada no Araguaia e pelos novos quadros que ganhava na fusão com a Ação Popular Marxista-Leninista (cisão da AP).

Se até então o movimento estudantil era informado, principalmente, pelos partidos marxistas, leninistas e stalinistas, nos anos 70 começam a surgir as correntes trotskistas.

Os primeiros passos do trotskismo no Brasil foram dados na formação do Grupo Comunista Lênin (GCL), em 1930, e logo depois na fundação da Liga Comunista Internacionalista (LCI), em 1931.


A Liga reunia o crítico de arte, jornalista e professor Mario Pedrosa (expulso do PCB em 1929 após uma viagem em que teve contato com os textos de Trotsky), Aristides Lobo, Livio Xavier e João Costa Pimenta, entre outros.

Expulso da União Soviética em 1928, Trotski organizou a Oposição de Esquerda Internacional, onde juntou todo tipo de descontentes e opositores ao Estado soviético e aos partidos comunistas, desde antigos sindicalistas revolucionários para quem o socialismo seria uma espécie de república sindical, até anarquistas descontentes com a revolução russa.

Inicialmente, o trotskismo apresentou-se como oposição comunista, que lutava para trazer os partidos comunistas (inclusive o da União Soviética ) de volta ao caminho da “revolução”, que julgavam abandonado.

Em 1936, contudo, Trotski foi condenado in absentia no primeiro dos grandes julgamentos realizados em Moscou nos anos 30. Foi acusado de conspirar pela derrubada do governo soviético.

Em resposta, Trotski passa a considerar como burocratas contra-revolucionários os dirigentes bolcheviques.

No final da década de 1930, os trotskistas ainda eram em reduzido número e tinham avançado muito pouco.

Para reuni-los e colocar seu movimento em novo patamar, Trotski dirigiu a fundação da IV Internacional, ocorrida em 3 de setembro de 1938, em Paris, com a presença de delegações de 10 países (URSS, Inglaterra, França, Alemanha, Polônia, Itália, Grécia, Holanda, Bélgica e EUA, e um delegado representando os grupos trotskistas da América Latina).


O documento básico aprovado no encontro, escrito por Trotski, foi “A agonia mortal do capitalismo e as tarefas da IV Internacional” (aka “Programa de Transição”). Mario Pedrosa participou da fundação da IV Internacional.

Além das teses trotskistas tradicionais, o Programa de Transição defendia a necessidade de uma revolução política na URSS, cujas principais tarefas eram o fim da ditadura burocrática, o restabelecimento de democracia operária e a entrega da direção do Estado aos órgãos de representação direta dos trabalhadores, os sovietes.

Nos países capitalistas, o Programa de Transição previa um papel destacado para os sindicatos. Eles deviam ser um campo de atuação privilegiado da vanguarda operária.

Em consequência, os trotskistas deviam agir nas grandes organizações sindicais dominadas pelos burocratas.

Ao mesmo tempo, o Programa de Transição enfatizou a necessidade de se criar organismos mais amplos, que representassem todos os participantes engajados na luta, como os comitês de greve, comitês de fábrica – que poderiam incluir os representantes sindicais alienados ou pouco representativos –, proposta em que se pode identificar um eco do tipo de partido ampliado defendido pelos mencheviques.

A guerra imperialista de 1939-1945, cujo principal alvo foi a URSS, bem como as conseqüências da invasão da URSS pelos nazistas, culminando na vitória e na grande resistência do povo soviético contra os alemães que assombrou os generais de Hitler, supostamente desmentia a tese trotskista de divórcio entre o governo e o povo na União Soviética.


Quando terminou a guerra, a União Soviética e os comunistas tinham um prestígio imenso aos olhos dos democratas de todo o mundo. Os trotskistas, por sua vez, começavam esse novo período histórico que se abria enfraquecidos e corroídos por cisões em seu movimento.

A defesa incondicional da União Soviética já havia provocado um cisma ainda quando Trotski era vivo: por não concordar com ela, o trotskista estadunidense J. P Connon afastara-se dos dirigentes da IV Internacional.

No pós-guerra, dois grupos foram gestados no interior da IV Internacional e a tensão entre eles já era visível no começo dos anos 50.

Para Michel Pablo, dirigente da IV Internacional, o realinhamento mundial e a divisão em dois blocos opondo os EUA à URSS criavam as condições para uma radicalização revolucionária na União Soviética e nos partidos comunistas. Assim, os trotskistas deviam entrar nos PCs, para auxiliar ao máximo, da melhor maneira, o processo objetivo revolucionário.

Em agosto de 1951, o 3º Congresso da IV Internacional aprovou as teses de Michel Pablo. A maioria do Partido Comunista Internacional, seção francesa da IV Internacional, discordou e acusou Pablo de abandonar o Programa de Transição e apoiar o stalinismo.

Em julho de 1952, a maioria do PCI foi expulsa da IV Internacional. Estava consolidada a divisão que deu origem aos dois principais grupos trotskistas de nossos dias.


O primeiro deles é o Secretariado Unificado da IV Internacional, liderado por Ernest Mandel.


O outro é o Comitê Internacional da IV Internacional, herdeiro da luta iniciada pelo PCI em 1952, e dirigido pelo francês Pierre Lambert.


Formou-se também, na época, a Liga Internacional dos Trabalhadores, liderada pelo argentino Nahuel Moreno.

No Brasil, o dirigente do PCB, Hermínio Sacchetta, rompe com o partido e se une ao grupo de Mario Pedrosa, formando o PSR (Partido Socialista Revolucionário), reconhecido como seção brasileira da IV Internacional.

Logo viria uma grave crise com a polêmica sobre apoiar ou não o stalinismo. Pedrosa aderiu às teses anti-stalinistas e rompeu com a Internacional.

O PSR sobreviveu muito enfraquecido e acabou definitivamente em razão da direção da IV Internacional, que defendeu um entrismo no PCB. O defensor direto dessa política era Juan Posadas, dirigente do birô latino americano da IV Internacional.

Hermínio Sacchetta resistiu ao entrismo, mas terminou se afastando do partido. Foi organizado então o Partido Operário Revolucionário (POR), já sob a direção direta de um emissário de Posadas.

Na década de 70, o trotskismo brasileiro ganhou novas perspectivas com a estruturação de três correntes distintas atuando no movimento estudantil.

O Secretariado Unificado se expressava na corrente estudantil “Centelha”, que daria origem à Democracia Socialista (DS).

A Organização Socialista Brasileira (OSI), ligado ao “lambertistas”, animava a corrente estudantil “Liberdade e Luta” (aka “Libelu”), que se transformaria na organização O Trabalho.

A outra, “Novo Rumo”, que tinha origem morenista e era oriunda da Liga Operária, depois Convergência Socialista, seria a principal corrente a formar o PSTU.

Todos os três grupos fizeram entrismo não no PCB, mas no PT, sendo que depois seguiram caminhos bem distintos.

A DS não só se adaptou ao PT, como participou do governo Lula indicando o ministro da Reforma Agrária. Hoje é um movimento eleitoral reformista.

O Trabalho seguiu trajetória semelhante. Completamente adaptado ao reformismo, cumpre hoje o papel lamentável de ser um dos principais defensores da CUT contra todos os setores que rompem pela esquerda.

O PSTU incorporou as duas características fundamentais da corrente morenista da qual se originou: o vínculo com movimento dos trabalhadores e a luta contra os aparatos burocratas. A Convergência Socialista pôde assim romper com o PT e ajudar a fundar o PSTU.

Contraponto perfeito da “Viração” (braço estudantil do PCdoB, que acendia velas para Stálin, Mao Tsé-Tung e Henver Hodja), a barulhenta e numerosa “Libelu” era muito fashion para a sua época.


Seus militantes descartavam a música engajada, forró e samba. Internacionalista, a Libelu adotou o rock, símbolo do movimento hippie. Socialista e revolucionária, ela também rejeitava o socialismo real.

Nada de Stálin, Mao Tsé-Tung, Fidel Castro ou Pol-Pot. Seus ídolos eram Marx, Engels, Lênin, Trotsky, Rosa Luxemburgo, Pierre Bruoé e Pierre Lambert.

Com as madeixas compridas, bolsa a tiracolo, calça jeans e botinha, os militantes da Libelu sempre tinham à mão a última edição do jornal O Trabalho.

Produto da imprensa nanica, o veículo denunciava a ditadura civil e militar, fazia campanha por anistia ampla, geral e irrestrita e divulgava ações dos trabalhadores em nome do internacionalismo proletário.


Em defesa de um partido operário independente da burguesia, do stalinismo (PCB, PCdoB e MR-8) e da social-democracia, a Libelu pregou o voto nulo em 1978. Para as demais correntes estudantis, eles não passavam de um bando de “porras loucas”. Mas, nos final dos anos 70, eram o sal da terra.

Em janeiro de 1978, a futura jornalista Verenilde Pereira, militante da corrente “Unidade”, estava aniversariando naquele mês e iria se formar naquele ano. Seus companheiros de movimento estudantil resolveram festejar seu aniversário e sua formatura com um presente inesquecível: uma tartarugada regional.

Havia um único problema: eles não tinham a menor idéia de onde conseguir uma tartaruga de três palmos de peito e, mesmo que soubessem onde encontrar, também não tinham dinheiro suficiente para adquirir o pitéu.

Depois de muita discussão, eles resolveram expropriar uma tartaruga existente na piscina do aeroporto Eduardo Gomes, presenteada ao Infraero pelo então prefeito de Manaus, coronel Jorge Teixeira.


Na noite combinada para a façanha, Guto Rodrigues, Bernadete Andrade e Greco embarcaram em um fusquinha 72, enquanto Mariolino Brito e Deise, na época mulher do Rui Brito, embarcaram em um corcel cupê 73.

Os dois grupos táticos se encontraram em frente ao aeroporto por volta da meia-noite. Estudaram o ambiente. Havia vários soldados do Exército armados de metralhadoras patrulhando a área.

O desencanado Greco, um afro-descendente de quase dois metros de altura, exímio capoeirista e portador de um único dente frontal na boca, se aproximou da piscina, identificou a localização do quelônio e fez um sinal para o resto da turma.

Abraçados pela cintura como se fossem dois casais de namorados, Guto, Bernadete, Mariolino e Deise se aproximaram da piscina, fazendo uma “paredinha” em torno de Greco, enquanto fingiam observar os peixes.

Este se sentou na borda da piscina e, com a agilidade de um felino, conseguiu puxar a tartaruga de dentro d’água utilizando os dois pés.


Os cincos saíram caminhando rapidamente em direção ao corcel cupê 73, depositaram a carga no porta-malas e abandonaram a cena do crime. As diversas patrulhas de soldados não perceberam nada.

O pequeno comboio se dirigiu ao Japiim, onde morava a Verenilde, e entregaram a encomenda. Depois, cada qual seguiu para sua casa. Tinha sido o chamado crime perfeito.

Na hora em que deixou Bernadete em sua casa, Guto teve uma surpresa: percebeu que sua tiracolo de pano estava completamente vazia. Ele, Bernadete e Greco começaram a procurar seus documentos dentro do carro. O lugar mais limpo.

Greco entrou em desespero:

– Camarada, não vá me dizer que os teus documentos caíram lá no aeroporto... Só faltava essa!

Bernadete também ficou nervosa:

– Não adianta a gente voltar ao aeroporto pra conferir porque a esta altura do campeonato eles já devem ter descoberto o roubo da tartaruga...

Guto estava pálido:

– Camaradas, se a polícia encontrar meus documentos, a gente vai ser expulso do partido por colocar a organização em risco porque na minha agenda está o nome dos militantes, com telefone e endereço. E o pior é que vão nos acusar de desvio pequeno-burguês porque a gente foi roubar logo uma tartaruga, que é comida de rico. O Belarmino Marreiro vai ficar muito puto!

Depois de meia hora discutindo o que fazer, Guto Rodrigues viu uma luz no fim do túnel.

– Vamos lá na casa do Mariolino, explicar o que aconteceu. Eu só fiz um movimento brusco que poderia provocar a queda dos documentos da bolsa, que foi quando colocamos a tartaruga no porta-malas. Se Deus for marxista, os documentos caíram dentro do porta-malas. Se não, a gente se ferrou...

Em quinze minutos, os três estavam acordando Mariolino Brito, lá no bairro da Glória. Quando contaram a presepada, ele quase teve um enfarto. Abriram o porta-malas do corcel cupê 73 e começaram a procurar.

Para sorte dos meliantes, os documentos estavam lá, entre o estepe e o macaco. Eles comemoraram a façanha detonando meia dúzia de cervejas e fizeram um pacto de sangue de jamais relatar aquele roubo nem sequer para os dirigentes do PCB. Mantiveram a promessa.

Quando o seqüestro da tartaruga foi descoberto, os jornais da cidade fizeram o maior estardalhaço, denunciando a falta de segurança do aeroporto internacional Eduardo Gomes. O coronel Jorge Teixeira ficou possesso.

O governador Henoch Reis garantiu que os responsáveis seriam identificados e presos nas próximas horas.

A Segunda Seção da Polícia Militar, o Deops, o SNI, o Cenimar e a Cisa entraram em campo, mas todos deram com os burros n’água. Nada foi apurado.

Os estudantes da corrente “Unidade” começaram a espalhar no campus universitário que aquilo só podia ter sido coisa do pessoal da “Libelu”.

A repressão contra os “porras loucas” foi intensificada.

No sábado seguinte, uma tartarugada regional era servida no capricho na casa da Verenilde, com a presença do diretor teatral Fernando Peixoto, que havia acabado de montar “Calabar – O Elogio da Traição”, do escritor Márcio Souza, do antropólogo José Ribamar Bessa Freire e de todos os militantes da “Unidade”: Guto Rodrigues, Bernadete Andrade, Rui Brito, Orlando Farias, Deise, Socorro Andrade, Mariolino Brito, Greco, Terezinha Araújo, Jorge Machado, Lino Chíxaro, Alice Alecrim, Nestor Nascimento, André Gatti, Palmes, Luiz Barreiro e o resto da curriola.

A vida bem vivida é feita dessas pequenas coisas...

PS: Pra quem não sabe, a Verenilde é tia da minha filha caçula, a Marisa. Mas na época ela não sabia que iria ter esse destino. Fazer o que?

segunda-feira, março 08, 2010

Hold Your Horses faz um passeio pela memória pictórica do planeta



A referência ao Andy Warhol é simplesmente primorosa!

Dia Internacional das Mulheres: o avanço das mulheres muçulmanas na Universidade do Cairo


Formandos da Classe de 1959 - ausência absoluta de mulheres de véu


Formandos da Classe de 1978 - duas ou três mulheres de véu


Formandos da Classe de 1995 - as mulheres de véu empatam o jogo


Formandos da Classe de 2004 - as mulheres de véu viram o jogo

"O véu dignifica a mulher", diz brasileira muçulmana


Para as muçulmanas, o hijab faz que elas sejam conhecidas pelo espírito e não pela aparência

Brasileira e muçulmana, Magda Aref Abdul Latif, formada em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo e membro do Centro de Estudos e Divulgação do Islã, acredita que o Ocidente tem uma visão distorcida sobre a mulher muçulmana.

"O Ocidente sempre vê a mulher islâmica como inferior e submissa, mas o Islã sempre foi uma religião que inovou no direito das mulheres", afirma.

Apesar de ser de família muçulmana, ela diz que se tornou religiosa por interesse próprio a partir dos 14 anos, quando começou a ter aulas de islamismo com um sheik. Magda é casada há seis anos com um muçulmano e tem uma filha de três meses.

Ela conversou com Gente Online sobre as mulheres muçulmanas e a visão que o Ocidente tem da religião.

O que você acha do tema islamismo ser abordado numa novela brasileira?

Nós temos uma vantagem muito grande que é o fato da nossa religião, que foi sempre tão pouco conhecida ou mal conhecida e mal entendida, entrar em todas as casas do brasileiro. Mas a desvantagem é que, como qualquer novela, ela é fantasiosa, tem coisas que não correspondem à realidade.

Quais são esses erros?

Por exemplo, quando o tio dá um tapa na cara da menina. Eu acho que uma pessoa religiosa jamais teria uma atitude como aquela. Quando falam da mulher, perguntam se ela é 'prometida'. E não é assim que acontecem os casamentos. Eu conheci meu marido aos 14 anos e nós nos apaixonamos. Eu fiquei noiva os 16 e casei aos 18.


Por debaixo dos véus e das roupas longas que cobrem todo o corpo as muçulmanas soltam a voz

Como é a vida da mulher muçulmana?

Não existe a mulher muçulmana. Existem as mulheres muçulmanas. Isso depende de vários fatores como condição social e país de origem. A mulher muçulmana reza cinco vezes por dia, mas não são todas que cumprem, como em qualquer mandamento religioso. No Brasil, nós usamos o véu num país onde quase não se conhece. Praticamos as orações, fazemos jejum no mês de Ramadã. As meninas trabalham, estudam, outras são donas de casa, tem de tudo.

Você acha que existe igualdade entre homens e mulheres no islamismo?

Isso é um assunto muito discutido. Porque a mulher muçulmana é vista pelo Ocidente como uma mulher que tem menos direitos, inferiorizada, submissa. Até pela própria veste se associa isso. Para o Ocidente o fato da mulher usar o véu é sempre associado à submissão e ignorância. Já para a mulher muçulmana o véu é entendido como algo que a dignifica, dá valor, que impõe respeito. É uma idéia diametralmente oposta à que o Ocidente faz do véu e da própria mulher. Quanto aos direitos e deveres, o Alcorão é bem claro quando diz que a mulher tem direitos sobre o marido e o marido sobre a mulher. O Islã foi uma religião que inovou nos direitos da mulher em coisas que a Europa só conseguiu há pouco tempo. A mulher no Ocidente não votava. A muçulmana tem esse direito desde o surgimento do Islã. A mulher tem o direito ao divórcio e à herança, o que é bem mais recente na Europa.


A comunidade muçulmana cresce também em São Paulo entre os descendentes de árabes e pessoas oriundas de outras religiões

Como a mulher islâmica é tratada por sua família?

Para o muçulmano é obrigação do homem sustentar a mulher e os filhos. Isso é um dever dele. Se a mulher quiser trabalhar fora, esse dinheiro é dela.

As muçulmanas podem se produzir, pintando as unhas ou usando maquiagem, por exemplo?

Está no Alcorão que toda mulher muçulmana deveria se cobrir com seus véus porque é mais conveniente para que não sejam molestadas. Isso tem uma finalidade. O significado do véu é esconder das vistas do homem tudo aquilo que desperta o desejo. Toda a sensualidade, toda a beleza, a mulher esconde isso dos homens e restringe isso ao seu marido e ao ambiente familiar. Na presença dos pais, avós, tios, sogros, a mulher pode se produzir da maneira que quiser, pode se maquiar, fazer o cabelo e se vestir da maneira que quiser. O objetivo é não despertar o desejo de outros homens.


O islam é a religião que mais cresce no mundo. Por isso é cada vez mais comum a presença de mulheres com vestes muçulmanas, inclusive no Brasil, em grandes cidades como o Rio de Janeiro

O que você acha do domínio da milícia Talibã no Afeganistão e da vida das mulheres nesse regime?

Olha, sobre o Afeganistão, a gente não sabe o que realmente acontece lá. Mas, se for assim como está sendo divulgado na mídia, o que eu tenho a dizer é que a realidade daquele país passa muito longe do que é o Islã. O Islã não prega nada daquilo, que a mulher seja proibida de trabalhar ou de estudar. O Islã sempre incentivou a busca do conhecimento. O profeta Mohamed diz que a busca do conhecimento é uma obrigação tanto para o muçulmano como para a muçulmana.

O que você acha do cinema iraniano?

Eu gosto muito. Eu acho que são filmes que convidam o expectador a refletir sobre o mundo muçulmano. Mas ele não convida só os muçulmanos. São questões que perpassam a realidade do mundo todo, como a situação da mulher.

sexta-feira, março 05, 2010

Rui de Carvalho canta Noel Rosa









O Superman da canção


Como se houvesse acabado de descobrir um novo manuscrito do Mar Morto, o engenheiro de sistemas Roberto Souza (aka “Bob Crusp”) dispara pelo telefone:

– Você já prestou atenção na letra “Superman”, da Laurie Anderson? Aquilo foi uma profecia para o 11 de Setembro...

– Porra, Bob, você andou fumando maconha vencida?... – limito-me a indagar.

Ele insiste:

– Aquela parte que diz “você não me conhece, mas eu sei quem você é”, são os muçulmanos questionando a arrogância americana. E quando a voz diz “os aviões estão chegando”, é um prenúncio do holocausto...

– Nesse caso, quem é o Superman? – resolvo avacalhar.

– O Osama Bin Laden, porra! Ele é o juiz, o pai e a mãe dos terroristas! – devolve ele, já ficando puto com o meu ceticismo anarquista. “Ele é a mão que toma, é o Osama que tem os braços petroquímicos, os braços militares, os braços eletrônicos...”

– E aquele papo de mãe?... - insisto.

– Porra, poeta, aquilo é a mãe de todas as batalhas...

Falo pro Bob Crusp que vou prestar atenção na letra com bastante calma e me despeço.

Depois que o Dan Brown inventou a teoria conspiratória universal, todo mundo anda procurando pêlo em casca de ovo.


Que eu ainda lembre, escutei a música pela primeira vez na primeira vez em que entrei na casa da Jane Jatobá, lá no Conjunto Rio Xingu, em meados de 1989.

Eu não curtia a Laurie Anderson. Achava ela tão pretensiosa e vazia quanto os outros filhotes bastardos do Kraftwerk (Devo, Eurythmics, Depeche Mode, Ultravox, Human League, Duran Duran et caterva).

A música “Superman” era a segunda faixa do lado B do LP “Big Science”, de 1982.

A Jane colocou a música pra tocar enquanto fazia um divertidíssimo strip-tease, que quase me levou às lágrimas de tão engraçado.

Ela conseguiu zoar - intencionalmente, claro! - tanto com o Superman quanto com a Kim Bassinger em "Nove semanas e meia de amor".

Nunca mais esqueci da cena nem da letra.

Pra mim, a Laurie Anderson estava falando da supremacia feminina no quesito solidariedade, dando ênfase ao amor materno.

Tipo “se sua vida estiver uma grande merda, você sempre pode contar com os braços abertos de quem lhe colocou no mundo”.

Mãe é mãe, paca é paca...

O resto são cerejas para enfeitar o bolo.

Procurei a música no YouTube e tentei uma tradução aproximada.

Continuo achando que não tem nada a ver com terrorista jogando avião em cima de edifício cheio de gente.

Vocês aí tirem as suas próprias conclusões se o querido Bob Crusp fumou ou não fumou maconha vencida.

E feliz Dia da Mulher!



O Superman. O judge. O Mom and Dad. Mom and Dad. O Superman. O judge. O Mom and Dad. Mom and Dad.

(O Superman. O juiz. A mamãe e o papai. Mamãe e papai. O Superman. O juiz. A mamãe e o papai. Mamãe e papai.)

Hi. I’m not home right now. But if you want to leave a message, just start talking at the sound of the tone.

(Oi. Eu não estou em casa agora. Mas se você quiser deixar uma mensagem, basta começar a falar após ouvir o sinal.)

Hello? This is your Mother. Are you there? Are you coming home?

(Olá? Aqui é a sua mãe. Você está aí? Você já chegou em casa?)

Hello? Is anybody home? Well, you don’t know me, but I know you.

(Olá? Tem alguém em casa? Bem, você não me conhece, mas eu sei quem é você.)

And I’ve got a message to give to you. Here come the planes.

(E eu tenho um recado pra você. Os aviões estão chegando.)

So you better get ready. Ready to go. You can come as you are, but pay as you go. Pay as you go.

(Então é melhor você se preparar. Ficar pronta pra ir. Você pode ir como você está, mas você vai pagar. Pagar pra continuar.)

And I said: OK. Who is this really? And the voice said: This is the hand, the hand that takes. This is the hand, the hand that takes.

(E eu disse: OK. Quem é mesmo? E a voz disse: Esta é a mão, a mão que toma. Esta é a mão, a mão que toma.)

This is the hand, the hand that takes. Here come the planes.

(Esta é a mão, a mão que toma. Os aviões estão chegando.)

They’re American planes. Made in America. Smoking or non-smoking?

(Eles são aviões americanos. Feitos na America. Fumante ou não fumante?)

And the voice said: Neither snow nor rain nor gloom of night shall stay these couriers from the swift completion of their appointed rounds.

(E a voz disse: Nem a neve nem a chuva nem a tristeza da noite deve suspender esses mensageiros por causa da conclusão dos círculos apontados.)

‘Cause when love is gone, there’s always justice. And when justice is gone, there’s always force. And when force is gone, there’s always Mom. Hi Mom!

(Porque quando o amor se vai, há sempre a justiça. E quando a justiça se vai, há sempre a força. E quando a força se vai, há sempre a mamãe. Alô, mamãe!)

So hold me, Mom, in your long arms. So hold me, Mom, in your long arms. In your automatic arms. Your electronic arms. In your arms.

(Então me abrace, mãe, em seus braços longos. Então me abrace, mãe, em seus braços longos. Em seus braços automáticos. Seus braços eletrônicos. Em seus braços.)

So hold me, Mom, in your long arms. Your petrochemical arms. Your military arms. In your electronic arms.

(Então me abrace, mãe, em seus braços longos. Seus braços petroquímicos. Seus braços militares. Em seus braços eletrônicos.)

quinta-feira, março 04, 2010

Morra de inveja, Bandit!


A dica foi dada pelo poeta Zemaria Pinto, leitor voraz da Sexy. A revista foi doada pelo piloto militar Francisco Mendes, o gente fina por trás (no bom sentido) do Pina Chope.

Quem posa na capa é a esfuziante Barbara Koboldt. Barbaridade, tchê! Corram atrás (afe!), no sentido lato.

Nós no Araguaia


Quando baixam as águas do Rio Araguaia, de maio a setembro, surgem maravilhosas praias de areia branca nas margens, formando milhares de ilhas, e imensos cardumes passam a desfilar pelo leito do rio barrento, que lembra um pouco o nosso Solimões.

É mais que o bastante para agitar pescadores de todo o País, principalmente os goianos, e atrair milhares de outro tipo de turista: aquele que não quer fazer nada e, ao mesmo tempo, não dispensa urbanidades como festas e boates, paqueras e esportes náuticos.


Nesse caso, são grupos de jovens e famílias inteiras que se abrigam em barracas de palha montadas só para este fim ou nos ranchos, uma mistura de hotel e colônia de férias.


É uma tradição que começou há 60 anos, com famílias tradicionais de Goiânia que passaram a acampar nas praias do Araguaia nas férias de julho e, na base da pescaria, fizeram a fama da região.


Nesse quadro, quem não quer sair do urbano deve se dirigir às cidades de Aruanã (GO) ou as vizinhas Aragarças (GO) e Barra do Garças (MT).

Quem preferir uma estada, digamos, mais selvagem, os melhores destinos são Cocalinho (MT), Xixá (GO), Bandeirantes (GO) e Luiz Alves (GO).

Mas o que torna o Araguaia um rio clássico é o desfile de cardumes que acontece em suas águas. São 120 espécies identificadas somente no Médio-Araguaia, trecho que vai de Aruanã à Ilha do Bananal, conforme pesquisa do biólogo Francisco Leonardo Tejerina, da Universidade Católica de Goiás.

Na lista, entre outros, estão curimatãs – o mais presente –, pintados e filhotes, os preferidos dos pescadores tanto para fisgar quanto para ir para a panela.

Há ainda um peixe especial, o aruanã, que povoa a mitologia da nação Karajá - habitante histórica da região.

Essa espécie é reconhecida como uma “entidade” pelos índios, em sua relação homem-natureza, o que talvez explique um pouco do encantamento que o Araguaia causa em todos aqueles que o conhecem.


Mario Arruda, o Capitão, um autêntico desbravador do Araguaia

Afinal, não é uma história de hoje. Segundo estudos antropológicos, foram possivelmente os antepassados dos karajá que começaram a “mania” de freqüentar as praias para se divertir, pescar e comungar com a natureza.

Isso foi há cerca de 800 anos e, de lá pra cá, os karajá, seus descendentes e os novos colonizadores nunca mais interromperam a tradição.


Em julho de 1989, atendendo a uma intimação do tuxaua Ademar Arruda (aka “Gato”), eu e Mário Adolfo resolvemos participar dessa experiência tribal, de caráter místico-alcoólica-tecno-hippie.

Ademar nos apanhou no aeroporto de Brasília, na manhã de um sábado, e nos levou diretamente para a região de Aragarças, onde a galera já estava acampada há uma semana. Chegamos ao rancho a bordo de uma pequena voadeira pilotada pelo próprio Ademar.

Havia umas 10 famílias no local, num total de quase 50 pessoas – sendo metade crianças. Entre os adultos, além do tuxaua Ademar e do pajé Mário Arruda (aka “Capitão”), estavam os guerreiros Evandro, Valtinho, Eldejames (sobrinho do Ademar), padre Jordelino, Valter, o gaúcho José Ternes, que não se separava do chimarrão nem mesmo quando tomava banho de rio, e mais uns três ou quatro de que não recordo o nome.

Conferi discretamente o estoque de bebidas. Havia 50 grades de cerveja Brahma, 50 caixas de Skol em lata, trinta litros de cachaça de alambique Cambeba, considerada a melhor do mundo, e dezenas de garrafas de vinho tinto, sidra, conhaque, rum, vodka, gim e Campari.

Aquilo era suficiente para embriagar aquele povo o ano inteiro, já que apenas umas dez pessoas (eu e Mário inclusos) bebiam diariamente. E a gente só ia ficar por lá durante duas semanas.


Na despensa do rancho também havia vários fardos de refrigerantes, água mineral, arroz, macarrão, feijão, farinha, milho, manteiga, óleo, embutidos de todos os tipos, frango congelado, ovos, carnes nobres (gado, carneiro e porco), frutas, verduras, legumes, etc. Os peixes seriam pescados na hora.

Um gerador fornecia energia elétrica para o barracão e para iluminar a área das barracas. Havia ainda um banheiro com água puxada por bomba e um sanitário dotado de vaso, mas no estilo “fossa turca”, distante, obviamente, uns 100 metros do camping.


Professor da UnB, o padre Jordelino havia perdido a perna direita em um desastre de carro e usava uma prótese. Era divertido ver as hordas de piuns trombando em sua perna de fibra de vidro em busca de sangue.

Além de ser um bom contador de causos, o padre bebia feito um condenado. Soube que ele faleceu há alguns anos. Uma pena!

Também professor da UnB, o antropólogo Mário Arruda chegou na região do Araguaia, em 1967, recrutado em Manaus pelo PCdoB, para participar da guerrilha de Xambioá.


Ele logo viu que aquilo seria a maior canoa furada da paróquia e, antes que as escaramuças tivessem início, se mandou para Goiânia, onde iniciou uma nova vida.

Em 1969, Mário Arruda recrutou seu irmão Ademar para tentar, como ele, uma nova vida na capital goiana.


Ademar, que na época era o melhor goleiro de Manaus (tanto em futebol de campo quanto em futebol de salão), não quis se profissionalizar apesar dos insistentes convites dos cartolas do Nacional, Rio Negro, Olímpico e Fast Clube.

Ele sobrevivia como trabalhador braçal da Cosama, cavando buracos para assentamento de tubos, e namorava a Mércia, irmã mais velha do Mário Adolfo, que já estudava Direito na FUA.

Atendendo ao convite do irmão, Ademar viajou pra Goiânia, comeu o pão que o diabo amassou, mas conseguiu se formar em Educação Física e, nos anos seguintes, virou o melhor treinador de natação da história de Goiás.

Invocado como todo tuxaua de sangue quente, ele havia voltado a Manaus uma única vez: para se casar com a Mércia e levá-la para Goiânia.


O advogado Romero e seu pai, o também advogado Leônidas, falecido no ano passado

Na época de nossa viagem, Mércia trabalhava em um escritório de advocacia em Goiânia, junto com o cunhado Leônidas, outro irmão recrutado pelo incansável Mário Arruda, enquanto Ademar era sócio de uma escolinha de natação em Anápolis.

Diariamente, ele se mandava pra Anápolis e retornava pra Goiânia no final do dia. Eu e Mário Adolfo chegamos a acompanhá-lo algumas vezes nessas viagens.

Ele e Mércia eram pais de Maluma, Talge e Tagore, que também estavam no rancho.


Valtinho, Marilúcia, Talge, eu e Dona Inês

Marilúcia, irmã do Mário Adolfo, seu filho Ludmilson, e Dona Inês Aryce de Castro, a matriarca da família, completavam o clã do qual eu fazia parte.

O restante da turma, eu só conheci quando cheguei no Araguaia. Mas era tudo gente boa.

Comerciante em Anápolis, Valtinho passava 24 horas por dia segurando uma latinha de Skol. Mário Adolfo o apelidou de “Valtinho Mão de Lata” e o apelido pegou.


Dono de um vasto bigodão, o engenheiro civil Evandro era o cantor oficial do rancho. Ele tinha a voz bonita e era um virtuose no violão. O problema era o seu repertório, calcado exclusivamente no melhor da música sertaneja.

Se, no primeiro dia, diante da novidade (e por causa da manguaça, claro), eu e Mário Adolfo aplaudimos entusiasticamente, a partir do quinto dia aquela cantoria sertaneja virou um autêntico “pé no saco”.

Aliás, a gente já havia aberto um precedente perigoso: no trajeto Brasília-Aragarças, perguntei do Ademar qual o tipo de música que os goianos curtiam.

Ademar colocou uma fita cassete no aparelho do carro e fomos obrigados a ouvir 57 vezes seguidas a música “As Andorinhas”, do Trio Parada Dura.



Ele acompanhava a música cantando alegremente a plenos pulmões e batucando no volante do automóvel.

Para evitar esse tipo de desconforto, eu havia levado um lote fitas cassetes (Beatles, Rolling Stones, Led Zeppelin, Deep Purple, Barry White, James Brown) e o Mário Adolfo, outro (Vinicius & Toquinho, Cartola, Lupícinio Rodrigues, Elis Regina, Belchior, Raul Seixas).

No rancho, Ademar nos presenteou com um pequeno toca-fitas cassete de sua propriedade. O problema é que não havia pilhas. A gente só podia ligar o aparelho dentro do barracão do rancho, onde existia luz elétrica.

Como as cantorias noturnas do Evandro eram realizadas à beira de uma fogueira acesa a uma boa distância do barracão, não havia como nossas músicas interferirem nas dele. Essa política de boa vizinhança só funcionou até o sábado seguinte.

Na primeira semana, a minha rotina diária era a mesma. Eu saía da barraca de camping por volta das seis horas da manhã, escovava os dentes, caía na água (um gelo!) e começava a beber.

O Mário Adolfo só entrava na água pra beber depois das 10 horas da manhã. Devia ser alguma simpatia dele, sei lá.

O café era servido no barracão pontualmente às oito horas da manhã, o almoço ao meio-dia e o jantar às sete da noite. Por volta de meia-noite, as luzes do rancho eram desligadas e todo mundo se recolhia às suas barracas.

Das seis da manhã às seis da tarde, a sensação térmica era de que você estava no deserto da Namíbia, porque o sol era verdadeiramente abrasador.


Quando anoitecia, entretanto, a sensação térmica era de que você estava morando na Antarctica. Para suportar o frio da gota serena, era necessário se agasalhar e ficar perto de uma fogueira. A cachaça de alambique havia sido levada para combater aquela friagem maligna.

O tuxaua Ademar nos ensinou alguns macetes: nunca entrar na água correndo para não ser ferrado pelas gigantescas arraias existentes no rio. O certo é entrar no rio arrastando os pés no leito arenoso, que as arraias vão embora.

Ele também nos ensinou a pegar peixes com as mãos, se jogando rapidamente em cima dos cardumes, mas normalmente estávamos bêbados demais para que as inúmeras tentativas obtivessem êxito.


O Mário Arruda resolveu exibir seus dotes de mateiro calejado e nos deu uma aula prática de sobrevivência na selva, embora eu desconfie que metade dos nomes de árvores que ele nos mostrou tenha sido inventada naquela hora.

No domingo, o rancho foi visitado por um grupo de voluntários membros da ONG “Amigos do Araguaia”.

Eles descem o rio de caiaques e vão parando em cada rancho para dar conselhos ambientalmente corretos sobre a flora e a fauna da região e conscientizar os turistas sobre a importância de manter limpos o leito, as margens e as praias do Rio Araguaia.

– Se vocês tivessem chegado aqui há dois dias, teriam evitado um crime ambiental! – expliquei para o rapazinho que me pareceu ser o chefe do grupo.

Disse isso e o levei até a cozinha do rancho, onde o cantador Evandro preparava um portentoso ensopado de jacaré, abatido por eles na sexta-feira.


Aproveitei para mostar a cabeça do jacaré sendo secada ao sol.

Transtornado, o rapazinho deixou o nosso rancho almadiçoando todo mundo.

Sem parar de temperar o ensopado, Evandro ficou me olhando puto da vida. Limitei-me a aconselhar:

– Bicho, se eu fosse você já tinha jogado essa porra no meio do rio, pra servir de comida pras piranhas. Pela quantidade de pragas que o moleque nos jogou, quem provar desse ensopado vai ficar com diarréia...

Não deu outra.


Na tarde de domingo, o sanitário do rancho ficou congestionado. O desmantelo foi tão grande que, no dia seguinte, um novo sanitário teve que ser providenciado às pressas.

Mais naturalistas do que nunca, eu e Mário Adolfo havíamos descoberto uma nova maneira de se divertir.


Em vez de freqüentar o banheiro do rancho e suas nuvens de moscas, mosquitos, piuns e meruins, a gente atravessava o Rio Araguaia (na sua parte mais profunda a água não passava da altura do meu peito) e fazíamos nossas necessidades fisiológicas em Mato Grosso, já que do outro lado do rio era o município de Barra do Garças.

A idéia seria, após o nosso retorno a Manaus, zoar com a jornalista matogrossense Solange Elias, garantindo que o seu estado natal não passava de um cagadouro fuleiro.


Durante a primeira semana, Evandro, Ademar ou Valter se revezavam como pilotos das voadeiras e nos levavam para conhecer outros ranchos – alguns, com cerca de 500 pessoas e bandas tocando ao vivo.

Ver aquelas meninas goianas bronzeadíssimas era um colírio para os olhos. Ah, meu Deus, as meninas goianas...

Foi então que na noite do sábado seguinte a cobra Norato se mexeu no leito do rio.

Como sempre fazíamos, eu e Mário Adolfo estávamos bebendo e escutando os Beatles dentro do barracão do rancho praticamente sozinhos.

Sei lá por que cargas d’água, mas nessa noite a turma da cantoria resolveu abandonar o luau em torno da fogueira para vir tocar ao vivo dentro do barracão. Não demos a mínima.

De repente, durante a execução de um hit da dupla Matogrosso e Mathias (argh!), o Evandro se invocou de que a música do nosso pequeno gravador estava lhe tirando a concentração. Pediu pra gente desligar o aparelho.

Mário Adolfo, na condição de cunhado do tuxaua do rancho, falou que não desligava o gravador nem pelo caralho.

Argumentei, numa boa, que deixar de ouvir Beatles para ouvir Matogrosso e Mathias (argh!) iria manchar pro resto da vida nossa carreira de betalemaníacos renitentes.

Um dos participantes da cantoria, o padre Jordelino, morto de bêbado, não se fez de rogado: pegou um terçado e zás, cortou o cabo AC do aparelho. O gravadorzinho emudeceu.

Ficamos escutando aquele repertório sertanejo em silêncio, com os colhões atravessados na garganta.


O Ademar estava pescando de malhadeira do outro lado da ilha. Quando ele chegou, com um novo lote de pintados, dourados e filhotes, contamos o que havia acontecido.

O nosso tuxaua não se fez de rogado: pegou o mesmo terçado e partiu pra cima do Evandro, disposto a bandar o violão ao meio. Começou a confusão.

Gritos, discussão, xigamento daqui, xingamento dali, Mário Arruda veio ver o que estava acontecendo e já se armou com uma pernamanca para atacar os “inimigos”.

O Ademar estava possesso – e com razão. Ele, sozinho, arrebentaria uns três sujeitos a terçadadas. O Mário Arruda, outros dois.

Ainda sobrariam dois: o padre Jordelino e o pacifista Valtinho Mão de Lata.

Como guerra é guerra, eu e Mário Adolfo já estávamos escolhendo qual dos dois seria vítima de nossa primeira cadeirada.

Foi quando o mulherio entrou no circuito, esculhambando “aquele bando de machos que não sabiam beber e depois ficavam dando escândalo”. Foi um pára pra acertar.

Depois de meia-hora de bate-boca, os “quase-brigões” se recolheram às suas barracas.


Evandro, Valter, eu, Eldejames, Tágore, Ademar e Mauro (filho do gaúcho José Ternes)

Na manhã seguinte, quando foi servido o café, estavam todos com caras de “Madalenas arrependidas”. Um constrangimento geral.

Pra completar, não havia mais talheres no rancho.

É que durante a confusão, Dona Inês, com receio de aquilo descambar para uma pancadaria generalizada, escondeu todas as facas, colheres e garfos em um buraco na areia e não se lembrava mais da localização exata.

Coube às crianças inventarem uma divertida caça ao tesouro – e em meia hora elas já haviam transformado a praia em um autêntico queijo-suíço –, até conseguirem encontrar as peças diligentemente escondidas.

No domingo, Ademar Arruda pegou a voadeira, foi até Aragarças e retornou com um novo cabo AC pro gravador.

Os cantadores foram definitivamente exilados do barracão do rancho, nós voltamos a usar nosso gravadorzinho e a paz voltou a reinar no pedaço.

No sábado seguinte, eu e Mário Adolfo nos despedimos da galera e o prestativo Ademar Arruda foi nos levar até Brasília, de onde embarcaríamos para Manaus.

Ainda havia no rancho 20 grades de cerveja Brahma e 20 caixas de cerveja Skol em lata.

Quando a voadeira começava a se afastar do rancho, falei pro Mário Adolfo:

–Bicho, se aquelas cervejas fossem Antarctica, acho que a gente teria entrado em coma alcoólica...

Mário Adolfo morreu de rir.


Nunca mais ter voltado ao Araguaia é um dos grandes pecados veniais que tenho cometido ao longo desta minha atribulada existência.

Porque, sinceramente, aquelas duas semanas de curtição foram uma das melhores férias de minha vida.