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terça-feira, dezembro 14, 2010

Cabeça e coração

por Sérgio Augusto

E se eu lhe dissesse que Orson Welles era botafoguense? Você, possivelmente, dirá que estou mentindo ou delirando.

Primeiro, porque Orson Welles não se interessava por esportes. Segundo, porque quando passou seis meses no Brasil nunca o levaram a um campo de futebol. Terceiro, porque se estimulado a fazer média com algum clube nativo, o escolhido, provavelmente, teria sido o Fluminense, o bicampeão da cidade quando o cineasta desembarcou no Rio, em fevereiro de 1942, para filmar o malogrado documentário It's All True.

OK, admito: é mentira. Um delírio da minha imaginação, desvairada por um exemplar de 1968 do Livro de Cabeceira do Homem, que há tempos avistei na vitrina da livraria Dantes, simpático sebo do Leblon cujo livreiro, Flamínio Lobo, não por acaso, é botafoguense.

Claro que aquela edição específica estava exposta com tamanho destaque porque em sua capa cintilava o escudo do Botafogo. Claro que ao vislumbrar, dentro da estrela solitária, o rosto de Orson Welles, pensei em voz alta: “Eu bem que desconfiava.” E, antes que fosse tarde demais, entrei na livraria e arrematei o precioso volume.

Bastou abri-lo para verificar que o cineasta, infelizmente, nada tinha a ver com o grêmio de General Severiano. Sua presença na capa se devia a uma célebre entrevista, concedida ao crítico e dramaturgo inglês Kenneth Tynan, que a revista traduzira. Apesar do nome, o Livro de Cabeceira do Homem era uma revista em formato de livro.

Quanto ao escudo do Botafogo, outro entrevistado justificava sua presença: Carlos Roberto, aquele incansável meio-de-campo alvinegro que carregava piano para o Gerson e parecia fadado a brilhar também na Copa do Mundo que aconteceria dois anos depois, no México.

Mas não houve jeito: hipnotizado pela sincrética imagem de Welles e a estrela solitária, voltei para casa convencido de que o diretor de Cidadão Kane e o Botafogo haviam sido feitos um para o outro. Quem conhece a dramática trajetória dos dois há de concordar comigo.

O que diria dessa fantasia o poeta Paulo Mendes Campos? Como ele era vivo em 1968, é bem possível que tenha lido aquele Livro de Cabeceira do Homem e também idealizado a falstaffiana figura de Welles entre os torcedores do Glorioso, quiçá como chefe da torcida, que luxo!

Pois ninguém gostava mais de brincar de “adivinhar” os times do coração (ou da alma) de artistas, poetas e escritores do que Paulinho. Segundo ele, Michelangelo, por exemplo, era Botafogo. Assim como Stendhal, Bach, Dostoievski e Rimbaud. Já Rafael, Flaubert, Mozart, Baudelaire e Machado de Assis eram Fluminense. Leonardo Da Vinci era Flamengo. Balzac, Beethoven, Tolstoi e Verlaine, também. Por incrível que pareça, Camões não era Vasco, mas Flamengo.

Paulinho, como se sabe, era visceralmente alvinegro. “Partilhamos defeitos e qualidades comuns”, confessou numa crônica. Para em seguida enumerá-los:

“Nos meus torneios, quando mais preciso manter os números do placar, bobeio num lance, faço gol contra, comprometo, tal qual o Botafogo, uma difícil campanha.

A mim e a ele soem acontecer sumidouros de depressão, dos quais irrompemos eventualmente para a euforia de uma tarde luminosa.

Sou preto e branco também, quero dizer, me destroço para pinçar nas pontas do mesmo compasso os dualismos do mundo, não aceito o maniqueísmo do bem e do mal, antes me obstino em admitir que no branco existe o preto e no preto, o branco.

(...)

O Botafogo é de futebol e regatas; também eu sou de bola e de penosas travessias aquáticas.

O Botafogo é um clube com temperamento amadorístico, mas forçado, a fim de não ser engolido pelas feras, a profissionalizar-se ao máximo; também sou cem por cento um coração amador, compelido a viver a troco de soldo.

Reagimos ambos quando menos se espera; forra-nos, sem dúvida, um estofo neurótico. Se a vida fosse lógica, o Botafogo deixaria de levar o futebol a sério, fechando suas portas; eu, se a vida fosse lógica, deixaria de levar o mundo a sério, fechando os meus olhos.

O Botafogo é capaz de quebrar lanças por um companheiro injustiçado pela Federação; eu aguardo a azagaia de uma justiça geral.

(...)

O Botafogo é capaz de cometer uma injustiça brutal a um filho seu, e rasgar as vestes com as unhas do remorso; como eu.

O Botafogo põe gravata e vai à macumba cuidar de seu destino; eu meto o calção de banho e vou à praia discutir com Deus.

O Botafogo não se dá bem com os limites do sistema tático; tem que ser como eu, dramaticamente inventado na hora.

(...)

O Botafogo é paixão, é Brasil, é confusão; Campos Paulo Mendes é paixão, Brasil, confusão.

O Botafogo conquistou um campeonato esmagando inesperadamente o Fluminense de 6 a 2; uma vez, enfrentei um dragão enorme e entrei no castelo encantado.

O Botafogo, às vezes, se maltrata, como eu; o Botafogo é meio boêmio, como eu; o Botafogo sem Garrincha seria menos Botafogo, como eu; o Botafogo tem um pé em Minas Gerais, como eu; o Botafogo tem um possesso, como eu; o Botafogo é mais surpreendente do que conseqüente, como eu; ultimamente, o Botafogo anda cheio de cobras e lagartos, como eu.

O Botafogo é mais abstrato do que concreto; tem folhas secas; alterna o fervor com a indolência; às vezes, estranhamente, sai de uma derrota feia mais orgulhoso e mais botafogo do que se houvesse vencido; tudo isso, eu também.

Enfim, senhoras e senhores, o Botafogo é um tanto tantã (que nem eu). E a insígnia de meu coração é também (literatura) uma estrela solitária.”

Em nenhum momento de sua vida Paulinho queixou-se da burrice de seu alter ego de chuteiras. Para ele, nem o mais incompetente plantel botafoguense merecia ser chamado de burro. Verdade que não viveu o bastante para conhecer a equipe que atuou no Brasileirão de 2002, mas é possível que mesmo diante dela resistisse à tentação de sublimar um time de sumidades, vestido com o uniforme alvinegro, como fez o jornalista inglês Mark Perryman com a alva camisa do Tottenham Hotspur.

Fanático torcedor do Hotspur, Perryman um dia desesperou-se com a estupidez de seus jogadores e resolveu substituí-los na imaginação, idealizando um dream team, um time dos sonhos, com craques do espírito, do goleiro ao ponta-esquerda: um autêntico escrete-cabeça de que jamais pudesse se envergonhar.

A camisa número 1, entregou-a a Albert Camus, sem dúvida o goleiro com maior Q.I. da história do futebol, pois antes de virar o escritor, ensaísta, dramaturgo e pensador que todos admiramos, Camus defendeu muita bola num time amador argelino.

Na zaga, dois beques da pesada: os filósofos Friedrich Nietzsche e Ludwig Wittgenstein. Na lateral-direita, Simone de Beauvoir. Do outro lado, mais um parisiense da Rive Gauche, Jean Baudrillard.

Dividindo a intermediária e o meio-de-campo, William Shakespeare e o chinês Sun Tzu. Na ponta-direita, Oscar Wilde. Na esquerda, o jamaicano Bob Marley. Enfiados no miolo do ataque, dois aríetes italianos: Umberto Eco e Antônio Gramsci.

Para montar seu dream team, Perryman foi obrigado a recorrer a nove craques estrangeiros. Nem os súditos da Coroa britânica que integravam a equipe torciam pelo Hotspur, que, aliás, ainda não fazia parte da liga inglesa quando Wilde era uma espécie de Garrincha da eloqüência nos salões londrinos.

É nisso que dá torcer por um clube sem tradições. Digo mais: sem as tradições do Botafogo. Vou mais longe: sem as tradições intelectuais do Botafogo.

Se os botafoguenses quisessem e a necessidade os obrigasse a tanto, poderiam montar um dream team - aliás, mais de um dream team - só com craques do espírito, afetiva e efetivamente ligados ao Botafogo.

A fama do Botafogo como clube de intelectuais só em parte se deve ao fato de que em suas linhas, ao longo dos anos e às vezes simultaneamente, atuaram jovens com curso superior completo, como os médicos Carvalho Leite, Álvaro Lopes Cançado (o popular Nariz) e o Afonsinho da década de 1960, o advogado Heleno de Freitas, o engenheiro Luiz Menezes e o arquiteto Otávio de Morais. Esse acúmulo de jogadores com formação universitária apenas reforçou uma reputação cujas origens remontam ao início do século passado.

Em 1916, quando os cinco times mais importantes do Rio organizaram um festivo quadrangular com equipes formadas por jogadores veteranos e alguns dirigentes, o Fluminense entrou em campo com o apelido de Hipotéticos, o Flamengo com o de Aquáticos e o América com o de Utopistas.

Embora fizesse jus ao cognome dado ao Flamengo, que até como clube de regatas nasceu depois do Botafogo, coube ao grêmio da estrela solitária o epíteto de Teóricos. Coincidência ou não, os Teóricos levaram a melhor no torneio. E ainda ficaram com o troféu de artilheiro, conquistado por Paulo Azeredo, campeão infantil em 1910, já veterano em 1916, e três vezes presidente do clube nas cinco décadas seguintes.

Schmidt, Bilac e Vinicius, Paulinho, Sabino e Clarice; Glauber, Otto, Verissimo, Ivan e Antônio Cândido.

Que tal este time? Tão atemporal e espetacular ele é que até me permiti armá-lo à antiga, como os times de futebol do período 1880-1925 e os de botão da minha infância, com dois zagueiros, três jogadores na intermediária e cinco atacantes.

Schmidt é o poeta e empresário Augusto Frederico Schmidt, golquíper de praia e dirigente do Botafogo, responsável direto pela fusão do Club de Regatas Botafogo com o Botafogo Football Club - além de autor de um livro de poesias intitulado Estrela Solitária. Bilac é o poeta Olavo Bilac, botafoguense histórico.

Vinicius é o de Moraes, o incomparável bardo da Bossa Nova, que assim reagiu quando um magnata norte-americano insistiu para que ele desistisse de voltar para o Brasil e continuasse morando na Califórnia: “Me diga, sinceramente, uma coisa, mr. Buster, o senhor sabe lá o que é um choro de Pixinguinha? O senhor sabe lá o que é ter uma jaboticabeira no quintal? O senhor sabe lá o que é torcer pelo Botafogo?”

Paulinho, claro, é o Mendes Campos, e Sabino, o seu colega mineiro Fernando Sabino. Clarice é a Lispector, propositalmente escalada na lateral esquerda porque não resisti ao devaneio de vê-la contendo os impetuosos avanços de Simone de Beauvoir, num eventual confronto com o dream team de Mark Perryman no Maracanã do imaginário. Com Glauber Rocha, Otto Lara Resende, Luis Fernando Verissimo, Ivan Lessa e Antônio Cândido de Mello e Souza (sim, nosso maior crítico literário tem alma alvinegra) no ataque, convenhamos, não tem pra ninguém.

E no banco de reservas? É, aquele lá, é mesmo o Lucio Rangel, sentado ao lado de seu amigo Orestes Barbosa. Como só pode dispor de cinco jogadores no banco, a comissão técnica - formada por João Saldanha, Armando Nogueira e Sandro Moreira - optou pelos cineastas Carlos Diegues e Ruy Guerra, e, por razões táticas, pelo embaixador Walther Moreira Salles, que além de craque nas finanças, na diplomacia e no mecenato, é pai de três outros orgulhos alvinegros, Walter, João e Pedro Moreira Salles, e amicíssimo do presidente do clube, Juscelino Kubitschek de Oliveira.

Todos esses senhores me eram inteiramente desconhecidos quando virei Botafogo, sendo que três deles (Waltinho, João e Pedro) ainda nem haviam nascido. Não usei o verbo virar levianamente. Eu de fato virei Botafogo. Meio envergonhado confesso que até os seis anos de idade fui um torcedor passivo e inconsciente do Vasco da Gama. Passivo porque mero herdeiro da estima de meu lusitano pai pelo clube da cruz-de-malta. Inconsciente porque, afinal de contas, eu tinha apenas seis anos de idade em 1948.

Torcer pelo Vasco às vésperas da década de 1950 era como torcer pelo Chicago Bulls na década de 90. Talvez fosse o mais poderoso time de futebol do país. Fora campeão em 1945, em 1947, e forneceria a base da seleção brasileira para a Copa do Mundo de 50. Mas o Botafogo até que não fazia feio naquela época, muito pelo contrário. Emplacara quatro vice-campeonatos seguidos: 44-45-46-47. Mas não foi essa honrosa regularidade que me fez virar a casaca, como então se dizia - sem qualquer alusão ao Vasco, cujo grito de guerra era assim: “Casaca! Casaca! Casaca! Zaca! Zaca! A turma é boa, é mesmo da fuzarca! Vasco!”

O responsável pela “traição” foi um colega de jardim-de-infância, chamado Carlos Lúcio, que pouco depois desapareceria para sempre da minha vida, sem deixar rastro. Carlos Lúcio torcia pelo Botafogo porque seu pai torcia pelo Botafogo; ou seja, era um botafoguense passivo e inconsciente. Embora se lixasse para o fato de eu ser vascaíno, a mim incomodava não torcer pelo time do meu melhor amigo.

Um dia, me enchi de coragem e pedi a meu pai permissão para torcer pelo Botafogo, não lhe sonegando a razão de tão drástica atitude. Ele, crente tratar-se de um capricho infantil e passageiro, me deu, sem qualquer advertência, o seu nihil obstat - e ficou esperando, estoicamente, a minha volta ao redil cruzmaltino. Ainda bem que esperou sentado.

Na tarde de 28 de novembro de 1948, ei-lo sentado nas arquibancadas de General Severiano, tendo ao lado o filho único e apóstata, que saboreava sua primeira incursão a um estádio de futebol como um presente de Natal antecipado. Em campo, a equipe da casa e o time do Flamengo. Uma vitória rubro-negra colocaria o Vasco em excepcional vantagem na disputa pelo título, nos condenando, na melhor das hipóteses, ao quinto vice-campeonato consecutivo. O Flamengo vinha de uma convincente vitória sobre o Fluminense, e logo deu mostras de que estava mesmo embalado, fechando o primeiro tempo com 2 a 0 no placar.

Na cabeça de meu pai, faltavam apenas 45 minutos para a minha reconversão ao culto vascaíno. Esquecera-se de que, naquela temporada, o Botafogo se especializara em virar o jogo no segundo tempo. Dois meses antes, derrotara o próprio Vasco por 2 a 1, depois de estar perdendo por 1 a 0. E uma semana antes daquele confronto com o Flamengo, repetira a façanha com o Olaria, marcando nos 19 minutos finais os três gols de que necessitava para transformar uma derrota por 3 a 1 numa vitória por 4 a 3.

Contra o Flamengo, não foi diferente: viemos com tudo na etapa final, e vencemos por 5 a 3. Minha estréia como torcedor não podia ter sido mais auspiciosa.

Duas semanas depois, a grande decisão. Para o Vasco, para o Botafogo e para meu pai, ainda esperançoso de que uma derrota alvinegra, tida como líquida e certa pela torcida adversária, e a conseqüente perda do campeonato - justamente para o Vasco - apagariam o meu, com perdão pelo trocadilho, botafogo de palha.

Sua esperança começou a definhar com um minuto e meio de jogo, quando Paraguaio marcou, de cabeça, o primeiro tento alvinegro. Placar final: Botafogo 3 a 1. Voltei para casa campeão. E absolutamente convicto de que a minha insígnia não era mesmo a cruz-de-malta, mas a estrela solitária.

Quase 20 anos depois, ávido por compartilhar comigo todas as emoções que o Botafogo nos oferecia na década de 1960, meu pai também acabou virando a casaca, comovente gesto de solidariedade paterna, que eu saiba, sem similar nos anais futebolísticos.

Para compensar a minha deserção, o Vasco ganhou, em 1948, um ilustre trânsfuga alvinegro. Até parece coisa de português: logo no ano em que seu time conquistou o campeonato da cidade, enfiando três no Vasco, o botafoguense Francis Hime cismou de virar vascaíno.

Imagine o transtorno que sua defecção causou na família, toda ela alvinegra, com profundas ligações com o clube. Profundas, vírgula, profundíssimas. Afinal de contas, já havia um Hime no primeiro time que o Botafogo mandou a campo, em outubro de 1904: Norman Hime, que aprendera futebol na Inglaterra. E dois anos depois, seu irmão Gilbert entraria no time, consagrando-se em poucos meses como artilheiro do Campeonato Carioca.

Já que estou falando de apostasias vascaínas, peço licença para saltar duas décadas (depois eu volto) e pegar um garoto de 4 anos, chamado Arthur Dapieve, que tinha tudo para crescer devoto de São Januário, como seu pai, mas viu a luz a tempo. Levado ao Maracanãzinho, para uma récita do Circo de Moscou, deparou-se pela primeira vez com um vendedor de bandeirolas de clubes e pediu que lhe comprassem uma.

Liberado pelo pai para escolher a que mais lhe agradasse, Dapieve desprezou a do Vasco, a do Flamengo, a do Fluminense, hesitando alguns segundos entre a do Botafogo (“com aquela magnética estrela solitária sobre fundo negro”) e a do América (“com aquele lindo e singelo vermelho-sangue”). A magnética estrela afinal suplantou a rubra singeleza americana, e o Botafogo ganhou mais um torcedor. Daqueles que acreditam, piamente, que futebol não é DNA, é destino.

Aliás, se fosse DNA, Sérgio Porto jamais teria se bandeado, na juventude, para as hostes tricolores. Único torcedor do Fluminense de uma família de botafoguenses, ele virou a casaca para livrar-se da esquizofrênica situação de vestir a camisa de um clube (jogava pólo aquático pela equipe das Laranjeiras) e torcer por outro. Tudo bem, compreende-se; mas Sérgio não precisava ficar gozando o resto da família por sua fidelidade a um clube pelo qual, segundo ele, não fazia o menor sentido torcer: “Botafoguense é aquele que não tem coragem de ser Flamengo, nem classe para ser Fluminense.”

Ora, torcer por um time de massa, como o Flamengo, não é prova de coragem, mas de comodismo e falta de imaginação. Não vejo muita diferença entre torcer por clubes de massa e só ler best sellers, por exemplo, ou só ir ao cinema para assistir a sucessos de bilheteria e amarrar-se em pagode, axé music e outras inanidades de enorme apelo popular.

Botafoguense que se preza despreza até os clubes mais populares de outros estados e países. Sua falta de sintonia com os preferidos das multidões é fruto de uma necessidade orgânica de ir contra a corrente, de repelir o gregarismo e, em última análise, esquivar-se do populismo.

Apesar de elitista, como, no fundo, são todos os intelectuais, o botafoguense não tem as veleidades aristocráticas que deram ao tricolor a ilusão de que em suas veias corre sangue azul. O Botafogo, a seu modo um time de massa - massa cinzenta -, não só surgiu como um repto juvenil ao estabelecido e aburguesado Fluminense, seu mais antigo rival (daí porque chamam cada partida entre os dois de “clássico vovô”), como continuou sendo, em vários aspectos, o seu avesso. Nosso símbolo é o fogo, não uma caixa de pó-de-arroz.

Ao criar tipos simbólicos para cada clube do Rio, nos anos 1940, o caricaturista argentino Mollas imaginou para o Botafogo a figura do Pato Donald, que, como todos sabem, é um sujeito irascível, que briga pelos seus direitos e não leva desaforos para casa. Para o Fluminense, Mollas escolheu a figura de um cartola. Se eu fosse tricolor teria protestado, mas os tricolores, pelo visto, se sentiram muito bem representados. E de fato o foram.

Se os tricolores da arquibancada se julgam seres superiores, imagine o grau de soberba dos seus paredros. Em 1911, por exemplo, o Fluminense perdeu, altivamente, nove jogadores de seu time campeão porque seus cartolas decidiram ignorar os protestos de toda a equipe contra a inopinada substituição do centroavante Alberto Borgerth, líder e capitão do time, pelo zagueiro Ernesto Paranhos, imposta pela comissão técnica.

Naquele mesmo ano, os dirigentes do Botafogo preferiram abandonar a Liga Metropolitana (e arcar com as terríveis conseqüências dessa aparente bravata) a abster-se de apoiar integralmente dois de seus jogadores, punidos com penas exorbitantes por uma briga em campo.

Como bem lembrou Mário Filho, numa crônica para a Manchete Esportiva, enquanto o Fluminense “preferiu perder um time a deixar de ser o que era, isto é, o Fluminense”, o Botafogo solidarizou-se com o seu plantel e chutou o pau da barraca, “para continuar mais Botafogo do que nunca”. Classe é isso.

Prometi que voltaria aos anos 1940 e estou cumprindo a promessa. Do contrário, perderia as conversões de dois expoentes do meu dream team: Luis Fernando Verissimo e Ivan Lessa.

Morando em Porto Alegre, o menino Luis Fernando torcia, em primeiro lugar, pelo Internacional; era um colorado. Mas seu segundo time, naturalmente, disputava o Campeonato Carioca. A exemplo dos mineiros, os gaúchos (vide João Saldanha e Luiz Mendes, outro colorado de origem) tinham especial simpatia pelo Botafogo, que a Minas e ao Sul ia com freqüência disputar amistosos e buscar reforços.

Quando, em 1948, o centro-médio (ou center-half, como então se dizia) Ávila, ídolo do Internacional, transferiu-se para General Severiano - por sinal, numa transação intermediada por Luiz Mendes -, Verissimo embeiçou-se de vez pelo Botafogo. E nunca mais deixou de ser um dos mais ilustres botafoguenses dos pampas.

Recém-chegado dos Estados Unidos, onde passara parte da infância, por pouco Ivan Lessa não adotou o América, clube de simpatia de seu pai, o escritor Orígenes Lessa. Ainda sem time, quando foi morar na avenida Atlântica, Ivan, como outros pirralhos de Copacabana, acabou sucumbindo à inescapável mística de Heleno de Freitas.

“Sou Botafogo porque tive um béguin pelo Heleno lá pelos 10 anos de idade”, confessou-me o meia-esquerda do meu time-cabeça. Em 1946 Ivan raramente perdia um racha na Bolívar e na Barão de Ipanema, duas ruas de Copacabana onde o “boa pinta e falador” Heleno podia ser visto quase todo dia, a pé ou ao volante de um cinematográfico carro esporte em dois tons de azul. Ora no restaurante Dolly (hoje Nino’s), na esquina da Bolívar com Domingos Ferreira, às vezes espiando o futebol de praia, quando não participando de uma linha de passe na areia, onde quer que estivesse o mais glamouroso craque brasileiro de todos os tempos reinava absoluto na princesinha do mar.

Outro que teve um béguin por Heleno foi Armando Nogueira. Mal chegado de sua terra natal, Xapuri (Acre), Armando ainda nem apreciara direito os encantos do Rio quando, na tarde de 10 de setembro de 1944, um primo o levou ao estádio de General Severiano para assistir, em pé, bem no meio da arquibancada, a um Botafogo x Flamengo. Não um Botafogo x Flamengo qualquer, mas o que entraria para o folclore do futebol carioca como o “jogo do senta”, pois, a certa altura, os atletas do Flamengo, inconformados com um gol - de resto, legítimo, de Geninho - sentaram em campo e se recusaram a continuar jogando.

De nada adiantou o trabalho de relações-públicas intensamente executado, durante a partida, pelo primo rubro-negro: “Aquele ali é o Zizinho, um monstro... aquele outro é o Jaime, joga como um príncipe... esse aí é o Pirilo.” Armando só tinha olhos para o time que trazia no peito uma estrela de cinco pontas, “radiosa como a luz da tarde ensolarada”.

“Foi de vê-la reluzir no peito de Heleno de Freitas que se deu a revelação”, recordaria Armando numa crônica confessional que só em 2003 resolveu tornar pública.

Mais de meio século depois, ele ainda se perguntava por que não escolhera torcer pelo Flamengo, que já era o time mais querido do Rio, acabara de sagrar-se bicampeão carioca e muitas outras alegrias prometia à sua torcida. “Afinidades eletivas, meus amigos”, revelou o cronista. “Coisas do coração. Mistérios da alma. Premonição, talvez, pois, no final do jogo, o Botafogo daria a volta olímpica saudando a sua torcida. Tinha goleado o Flamengo, ganhando de cinco a dois. Heleno marcara dois belos gols, um deles, de cabeça. Uma testada bíblica!”

Logo Armando descobriria outras afinidades: “O Botafogo tem tudo a ver comigo: por fora, é claro-escuro, por dentro, é resplendor; o Botafogo é supersticioso, eu também sou. O Botafogo é bem mais que um clube - é uma predestinação celestial. Seu símbolo é uma entidade divina. Feliz da criatura que tem por guia e emblema uma estrela. Por isso é que o Botafogo está sempre no caminho certo. O caminho da luz. Feliz do clube que tem por escudo uma invenção de Deus.”

Não tive a ventura de ver Heleno jogar. Já peguei Pirilo em seu lugar. Meu primeiro ídolo foi Nilton Santos, que era chamado apenas de Santos quando estreou no Botafogo, na temporada de 1948. Os ídolos da garotada do meu tempo geralmente eram os jogadores que sabiam marcar gols ou, então, evitá-los com muita dose de sorte e algum espalhafato.

Nem atacante, nem goleiro, Nilton Santos, o ídolo improvável, impôs-se como um jogador singular, absolutamente fora-de-série, muito à frente do seu tempo, um craque de vanguarda, lato sensu: um zagueiro que, ao contrário dos demais, não se limitava a defender, aventurando-se com inusitada regularidade até a área adversária, para trocar passes, fazer lançamentos e arriscar perigosos chutes a gol.

Foi com ele que nasceu o ala moderno: inexpugnável lá atrás e agressivo lá na frente. Exímio em qualquer posição, majestoso no trato com a bola e inteligente das travas da chuteira ao topete, não ganhou numa rifa o apelido de Enciclopédia do Futebol; nem foi obra de cupinchagem a sua consagração como o melhor lateral-esquerdo do mundo em todos os tempos, depois de ganhar as Copas do Mundo de 1958 e 1962.

Nenhum outro jogador, nem mesmo Heleno de Freitas e Garrincha, encarnou o espírito botafoguense com a perfeição, com a plenitude de Nilton Santos. Em parte porque nenhum outro vestiu tantas vezes a camisa do Botafogo. Foram ao todo 719 jogos, em 16 temporadas. Isto mesmo: 16 anos.

Pois é, houve um tempo em que os jogadores de futebol não trocavam de clube como quem troca de carro, relógio, celular e namorada, logrando identificar-se mais profunda e sinceramente com seus times e estabelecendo com a torcida um vínculo, uma cumplicidade, hoje impensáveis.

Nilton Santos fez mais do que vestir o uniforme alvinegro durante 16 anos. O Botafogo foi o único clube profissional de sua vida. Fidelidade igual nunca se viu.

Cresci, estudei e me iniciei no jornalismo assistindo às suas exibições, sempre de gala, no Botafogo e nas seleções carioca e brasileira. Quando ele foi o biografado do mês, no quinto número da revista Vida do Crack, em setembro de 1953, arrumei um jeito de comprar dois exemplares: um para recortar as fotos e montar um álbum, outro para guardar.

Diante da resistência de minha mãe, que alegava já ter gastado comigo naquele mês uma pequena fortuna em gibis e ingressos de cinema, apelei para minha avó, que ao ouvir as palavras “vida do Santos” persignou-se, lascou um conselho (“Isto mesmo, meu filho, é melhor você ler sobre a vida dos santos do que histórias em quadrinhos”) - e depositou na minha mão o dobro do que eu lhe mendigara.

O álbum há muito se perdeu, mas o segundo exemplar da Vida do Crack está comigo até hoje, em perfeito estado de conservação, guardado como se fosse a Bíblia de Mongúncia. Depois então que o próprio craque o autografou, seu valor tornou-se rigorosamente inestimável. “Se eu fosse você, não o trocaria nem por um desenho do Michelangelo”, me aconselhou João Moreira Salles. Falava a sério. E ele nem viu a Enciclopédia jogar ao vivo.

Por causa de Nilton Santos, mais de uma geração de torcedores empolgou-se pelo Botafogo e nem sequer o abandonou nos melancólicos campeonatos da primeira metade dos anos 1950. Que o digam Carlos (Cacá) Diegues e Ruy Solberg.

Nascido em Maceió, Cacá mudou-se para o Rio aos sete anos de idade. Fiel ao bairro onde sua família, alagoana e torcedora do CSA, instalara-se, escolheu de pronto o Botafogo, desprezando a opção dos demais Diegues pelo tricolor das Laranjeiras.

Cacá, porém, só crismou sua escolha depois de ver com os próprios olhos os milagres que o santo plural de seu time fazia em campo. Milagres que Ruy Solberg testemunhava com maior freqüência e de pertinho, pois jogando no juvenil do Botafogo, no início da década de 1950, volta e meia cruzava com a Enciclopédia no gramado de General Severiano.

Ao contrário de nobilíssimos botafoguenses de raiz como Bebeto de Freitas, Elena Landau e Júlio Rego, que já nasceram ungidos pela estrela solitária - Bebeto é sobrinho de João Saldanha e primo de Heleno de Freitas; os pais de Elena e Júlio foram remadores do Botafogo - Ruy Solberg é, como eu, um convertido; o que só o engrandece.

Ainda garoto deixou-se enfeitiçar pela visão de uma bandeira vermelha desfraldada na janela de um ônibus, e entregou seu coração ao time pelo qual Ivan Lessa e Arthur Dapieve perigaram de torcer. O desencanto se deu em 1954, no jogo decisivo do Campeonato Carioca, contra o Flamengo.

Mal a bola começou a rolar no Maracanã, Tomires, um jagunço que o técnico Fleitas Solich pusera ao lado de Pavão na zaga rubro-negra, deu um pontapé no atacante Alarcon, o cérebro do América, que saiu de maca para não mais voltar.

Injuriado com a passividade de seu time, que botou o galho dentro e em nenhum momento ousou desfazer, na marra, sua inferioridade numérica (naquele tempo não eram permitidas substituições, e o América jogou com dez atletas até o fim), Ruy decidiu ali mesmo mudar de torcida. Como já pertencia ao quadro juvenil alvinegro, optou pelo Botafogo, escolha que Nilton Santos e Garrincha ajudariam a sacramentar.

Curiosa essa aproximação de botafoguenses com o América. Logo o América, que tantas aprontou com o Botafogo nas primeiras décadas do século passado. Perdemos o título de 1908, para o Fluminense, por causa de dois tropeços diante da equipe rubra, que, vale salientar, adotou a cor vermelha naquele ano (antes jogara toda de preto e, por outra breve temporada, de vermelho e preto).

Nossa única derrota na triunfal campanha de 1910 foi para a equipe de Campos Salles, que também nos impôs o único revés do campeonato de 1914 e não nos deu trégua no torneio seguinte.

A saída do Botafogo da Liga, em 1911, começou com uma entrada violenta de um jogador americano no artilheiro alvinegro.

No returno de 1929, o América nos enfiou uma goleada de 11 a 2.

Passamos por todos os adversários, em 1932, menos pelo América.

E se conquistamos o título de 1930 com sua ajuda, retribuímos a gentileza no campeonato seguinte, tirando o Vasco do páreo para que o time de Sílvio, Alemão e Carola levasse a taça para Campos Salles.

Apesar da corriqueira associação do América com o inferno e o diabo, é o clube da estrela solitária que, já no nome, encarna com maior consistência todas essas metafóricas relações com o elemento que mais contribuiu para civilizar o homem primitivo: o fogo.

O América não é o verdadeiro time do capeta e com fogo na roupa. O verdadeiro time do capeta e com fogo na roupa é o BotaFOGO. Basta examinar sua camisa.

Ou você não sabia da milenar fama dos tecidos listrados como “coisa do demo”? Eu tampouco sabia até ler um fascinante ensaio do historiador e paleógrafo francês Michel Pastoureau, intitulado O Pano do Diabo.

Listras. As Sagradas Escrituras já não as recomendavam. Está no Levítico: “Não levarás sobre ti uma veste que seja feita de dois.” Dois tons, bem entendido. A fama, portanto, não é antiga, é antiqüíssima. Pastoreau, contudo, fez do século XII o seu ponto de partida, por ter sido naquela centúria que os carmelitas causaram escândalo com seus primitivos mantos barrados.

Nem um apelo do papa Alexandre IV, em 1260, conseguiu convencê-los a adotar uma veste lisa. Os muçulmanos sempre usaram mantos listrados numa boa; daí a pinimba da Igreja, avessa a qualquer parentesco com hábitos orientais.

De mais a mais, os tecidos listrados eram então usados - em vestimentas, cintos, fitas, capuzes e barretes - por judeus, heréticos, bufões, saltimbancos, carrascos, prostitutas, leprosos e outros excluídos da sociedade daquele tempo. Caim, Judas, Dalila e Salomé também haviam feito das listras um involuntário emblema de seu opróbrio.

Nos países germânicos do século XIII, as roupas dos bastardos, servos e condenados eram obrigatoriamente listradas. Acreditava-se que eles perturbavam ou pervertiam a ordem estabelecida e precisavam ser reconhecidos a distância.

Lúcifer e todas as criaturas satânicas eram quase sempre apresentados em trajes barrados, durante a Idade Média. Esse rígido esquema sinalético arrefeceu um pouco no Renascimento, mas a reputação do pano listrado só mudaria substancialmente do final do século XVIII em diante, depois de representar, na França, a vitória do bem (burguês) contra o mal (aristocrático), o triunfo da marginalidade, e, no Novo Mundo, a implantação da democracia moderna, raiada de stripes forever.

Negativas nos uniformes dos campos de concentração nazistas e dos presidiários do cinema e dos quadrinhos, as listras expandiram-se positivamente por outros corpos: de crianças, banhistas, marujos e esportistas, seus mais benignos usuários.

A semiologia das listras é infinita e encontrou em Pastoureau um hermeneuta de ampla visão. Ampla o suficiente para incluir em seu inventário até as riscas do calção do Obelix, do dentifrício Signal e das camisas do Racing e do Juventus.

Certo, o Botafogo não foi o único clube brasileiro a adotar um uniforme com listras verticais. Mas foi certamente o primeiro a usar, nestas paragens, listras verticais em branco e preto.

O detalhe do branco e preto é de suma importância, na medida em que expressa uma dicotomia rica em simbolismos - bem e mal, dia e noite, luz e treva, sol e lua, razão e instinto, alegria e luto, pureza e vício - inapelavelmente diluída pela nossa vocação para o dualismo, pela nossa inclinação para assimilar valores contraditórios e aparentemente irredutíveis.

Guiados por uma estrela e pelo fogo que Prometeu roubou do céu e Lúcifer levou para o inferno, nós, botafoguenses, somos bons e maus, cerebrais e supersticiosos, racionais e passionais, eufóricos e deprimidos, fanáticos e blasés, apolíneos e dionisíacos. O Botafogo não é preto, nem branco: é preto e branco, e branco e preto.

Outra peculiaridade do Botafogo foi ter sido o primeiro time alvinegro com meias de cor cinza, mistura chiquíssima. Este detalhe sempre intrigou o artista plástico Carlos Zilio. “A justificativa que encontro para isto”, teoriza o ilustre botafoguense, “pode ser buscada nas principais concepções sobre a cor. Se, para a teoria de Newton, o branco é o somatório das cores, para a de Goethe, a síntese é o cinza. Minha opinião e crença são de que a opção pela cor cinza nas meias, feita pelo Botafogo, tem a ver com a sua profunda intuição romântica.”

No final dos anos 1940, Mário Filho explicou assim a alma alvinegra: “Ser botafoguense é mais do que pertencer a um clube, a um grande clube. É pertencer a uma casta, com o seu tipo especialíssimo, inconfundível.”

Que tipo seria este? Para o grande cronista esportivo, um sujeito acima de tudo romântico, que ouve mais a voz do coração que a da cabeça, um impulsivo, audaz e anacrônico mosqueteiro: “A única flor retardatária de capa-e-espada que surgiu depois de 1900, um D'Artagnan sempre pronto a desembainhar a espada e a se meter em encrencas, a arriscar até a própria vida por uma coisinha.”

Nelson Rodrigues foi menos feliz do que seu irmão Mário Filho, pois nos botafoguenses só vislumbrou o pessimista inato e o masoquista impenitente. “Ponham uma barba postiça num jogador do Botafogo, dêem-lhe óculos escuros, raspem-lhe as impressões digitais e, ainda assim, ele será inconfundível. Por quê? Porque há, no alvinegro, a emanação específica de um pessimismo imortal.” E não parou aí.

Em outra oportunidade, definiu o torcedor botafoguense como um cara que compra o seu ingresso “como quem adquire o direito, que lhe parece sagrado e inalienável, de sofrer”, sentindo-se feliz e realizado “quando arranca os cabelos e chora lágrimas de esguicho.”

Não somos criaturas pateticamente melodramáticas, que se descabelam com um vasto sorriso de gratificação na alma, mas algo superior: somos trágicos, no melhor e mais grego sentido da palavra. Trágicos de nascença, já que o Botafogo Futebol Clube só virou de Futebol e Regatas depois que um de seus atletas morreu de repente, fulminado por um infarto, numa quadra de basquete.

“Somos trágicos como os gregos, na época em que o mundo ainda não era povoado por homens cinzentos, mas por heróis”, ponderou João Moreira Salles com o amigo tricolor Marcos Caetano, tentando consolá-lo pelo 1 a 0 que o São Caetano acabara de impor ao Fluminense, na Copa João Havelange de 2000. “Nossas derrotas, assim como nossas vitórias, nunca são óbvias e jamais podem ser pressentidas”, prosseguiu, relembrando um recente e fatal tropeço do Botafogo diante do Santa Cruz, jogando em casa (única vitória do time pernambucano fora de Recife na Copa João Havelange de 2000), e a perda da Copa do Brasil para o Juventude, em 1999. “Isso é verdadeiramente magnífico, é grande, imenso, do tamanho dos grandes tombos, não da história, mas do mito: isso é Édipo, é Antígona, é Rei Lear e é Hamlet.”

Quando vencemos, superando obstáculos supostamente intransponíveis, como o Vasco de Ademir, o Flamengo de Zico, e Golias que tais, afivelamos a persona de Davi e nos sentimos, crê João, “mais vivos do que jamais um flamenguista se sentirá”, pois essa é a nossa vida, a nossa sina, da qual devemos nos orgulhar, porque é ela “que nos torna imensos”, imensos como os trágicos personagens de Homero, Shakespeare e Dostoievski.

Cá entre nós, Orson Welles, que antes de atingir a glória eterna tantos revezes sofreu em sua carreira e diversas vezes viu-se forçado a atuar em filmes de segunda categoria, não podia mesmo ter outro time.

O advogado e jornalista Nelson Paes Leme, botafoguense hereditário, vai mais longe: segundo ele, o cineasta tornou-se de fato um simpatizante do alvinegro quando aqui veio rodar It’s All True. A prova dessa conversão lhe foi fornecida por seu pai, Luiz Paes Leme, célebre, entre outras façanhas, por ter sido um dos fundadores da União Nacional de Estudantes.

Dissidência da velha Casa do Estudante do Brasil, a UNE, a exemplo do Botafogo, surgiu como um desafio juvenil ao establishment. Presidida pela socialite Ana Amélia Carneiro de Mendonça, mulher do legendário goleiro do Fluminense Marcos Carneiro de Mendonça, a Casa do Estudante do Brasil não só tinha raízes tricolores como, na visão da juventude menos acomodada da época, não movia um dedo contra a ditadura getulista.

Para angariar fundos para a recém-criada UNE, a estudantada liderada por Luiz Paes Leme organizou uma Festa da Mocidade (espécie de Congresso de Ibiúna do Estado Novo), no Calabouço, a alguns metros de distância da Casa do Estudante do Brasil. “Foi um megaevento para a época”, salienta Nelson, “e Welles participou ativamente da festa.

Meu pai e outros jovens ligados à família Aranha, todos botafoguenses e amigos de Carlito Rocha, submeteram o cineasta àquele tipo de lavagem cerebral que fazemos com sobrinhos e netos, antes que eles elejam outro time. Meteram na cabeça dele que o ‘quente’ no futebol carioca era o nosso alvinegro e ele aderiu de imediato ao time da estrela solitária.”

Resumo da ópera: Orson Welles não precisou ir a um campo de futebol no Rio para escolher o time de sua simpatia. Bastou-lhe o Calabouço. Do resto da catequese deve ter-se ocupado Vinicius de Moraes, que acompanhou o cineasta a tudo quanto é canto da cidade e com ele tomaria aulas de direção, em Los Angeles, no final dos anos 1940.



Nota do gerente do mocó:
Este post é meu presente de Natal para os seis botafoguenses que conheço em Manaus - Aureo Petita, Orlando Farias, Mário Adolfo, Mário Adolfo Filho, Marcus Vinicius e Murilo Rayol. Evoé!

3 comentários:

murilo rayol disse...

Essa crônica é emocionante.Tem que ser Botafoguense, pra se entender na íntegra.Obrigado,realmente um lindíssimo presente de Natal!!!

murilo rayol disse...

Esa crônica é realmente emocionante.Só quem é Botafoguense, entende na plenitude.
Obrigado, realmente é um excelente presente de Natal

Jeferson "Garrafa" Brasil disse...

Meu kiridu Simão, duas coisa: 1. obrigado pela singela e oportuna homenagem ao Botafogo. Isso posto, 2. Eis aqui um botafoguense copnvicto e praticante a protestar contra voce só conhecer ínfimos 6 botafoguenses: Eu e meus filhos, Marco Antônio e João Paulo Brasil, tb comunganos desta religião. abraço,