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quinta-feira, junho 30, 2011

Causos de Bambas: Inácio Oliveira


Marlon Figura, Inácio Oliveira, Simas Pessoa, Anibal Beça e esse vosso escriba, se preparando para desfilar na Ala das Escrotas da BICA

Novembro de 1988. Eu havia retornado de uma viagem profissional ao Japão trazendo alguns presentes para os homeboys e já havia me livrado de quase todos eles.

Faltava apenas entregar um quimono de seda para o jornalista Inácio Oliveira.

Havia uns dois meses que eu ia praticamente todos os sábados ao Bar do Armando, seu hábitat natural, e nada de encontrar o sujeito.

Será que ele havia ido embora de Manaus?

Numa tarde de sábado, estávamos lá no bar do português jogando conversa fora, quando o sempre indiscreto poeta Marco Gomes contou a novidade: Inácio estava apaixonado por uma morena bela e não queria mais saber de frequentar o Bar do Armando.

O negócio dele era levar a menina pro cinema, jogar pipoca para os pombos nas pracinhas da cidade e degustar banana split na Sorveteria Glacial, uma coisa ultrarromântica.

Nesse dia, o Roberto Dibo estava mostrando ao vivo, só na base da voz e violão, as músicas do primeiro disco produzido pelo Coletivo Gens da Selva.

De repente, adentrou no recinto uma turma de pagodeiros e começou a fazer o maior escarcéu, com suas versões meia boca dos sucessos do Raça Negra.

A MPB de raiz foi derrotada pelo samba mauriçola.

O Marco Gomes deu a dica:

– Vamos lá pro Calígula, o bar do escritor Rui Sá Chaves, na Aparecida, que nessa hora ainda não deve ter ninguém.

A sugestão foi aceita.

Quando entramos no boteco do Rui, uma surpresa: Inácio e sua morena bela eram, até então, as únicas almas presentes no recinto.

Eles estavam sentados nos banquinhos do balcão, bebendo cerveja e conversando com o poeta Dori Carvalho, sócio do Rui Sá Chaves na empreitada.

Juntamos duas mesas (éramos uns oito sujeitos) e começamos a fazer o nosso coro particular para a música “Soneto Aberto Sobre a Morte”, uma parceria de Roberto Dibo com o poeta Alcides Werk.

A morena bela começou a gostar da presepada.

Inácio começou a ficar incomodado.

Por volta das seis da tarde, Roberto Dibo passou o violão para o Carlos Castro.

Ele enfileirou logo uma sequência de Vinicius e Toquinho, que deixou a namorada do Inácio (a única presença feminina no covil) à beira de um ataque de nervos.

Ela criou coragem, se aproximou da mesa e perguntou se ele sabia tocar “Corsário”, do João Bosco.

O violonista não se fez de rogado.

Ela pediu “Espanhola”, do Flávio Venturini. Carlos tocou.

Ela pediu “Lambada de Serpente”, de Djavan. Carlos tocou.

O Inácio tinha razão em esconder aquela preciosidade dos canalhas do Bar do Armando.

Além de seios fartos, sorriso hipnótico, jeito de menina sapeca e voz aveludada, a morena bela tinha uma padaria de classe mundial.

O jeans apertadíssimo realçava aquelas formas fornidas e ela se movimentava com uma elegância de felina, sabendo que qualquer um se prostraria diante daquela imagem celestial como ocorreu com o ímpio Saulo no caminho de Damasco.

Aí, a morena bela cometeu a imprudência de se sentar na nossa mesa e se servir das cervejas que estavam ao alcance da mão.

Mas aqui cabe abrir um parêntese.

Quando entramos no pardieiro, Inácio sequer havia nos cumprimentado.

Uma hora depois de a gente estar agitando o Calígula com música da melhor qualidade, o sacana ainda continuava na dele, sem nos dar a mínima, aparentemente mais enjoado do que bode emborcado.

Daí que quando a morena bela pediu licença e se sentou ao meu lado, a escala Richter de ciúmes do Inácio Oliveira deve ter batido no VDO.

Cavalheiro como sempre, eu ofereci pra Zoraide (esse, o nome dela) um dos trinta pratos de tira-gosto que a gente havia pedido.

Ela começou a detonar alguns bolinhos de bacalhau e a pedir músicas: “Volver a los 17”, “A palo seco”, “Medo de avião”, “Para viver um grande amor”, “Sina” e por aí afora.

Carlinhos detonando tudo com a competência de sempre.

A morena bela, cada vez mais desinibida, estava começando a entrar em estado de graça.

Os cachorrões da mesa, de olhares esgazeados e cada vez mais lúbricos, se preparando para avançar no osso.

De repente, o Inácio se embucetou de vez.

Ele se aproximou da mesa, segurou a morena bela por um dos braços e foi peremptório:

– Vamos embora, meu amor! Eu já pedi o táxi!

Zoraide se levantou, meio constrangida, com um ar estampado na cara do tipo “fazer o quê?”, quando eu a segurei pela mão e bati na bola de três dedos:

– Se você quiser ficar aqui com a gente, depois te deixo em casa. E pra mostrar que não estou de sacanagem, vou deixar você tomando conta da chave do meu carro!

E coloquei na sua mão a chave do Del Rey verde-piscina que eu possuía na época.

Sem dizer uma palavra, ela segurou a chave do meu carro na mão, colocou no bolso da calça apertadíssima e voltou a se sentar à mesa.

O Inácio Oliveira saiu do bar cuspindo fogo, entrou no táxi e foi embora.

Por volta das 9h da noite, resolvi deixar a Zoraide em casa.

Ela morava nas proximidades do Posto Coca 2, ali em São Lázaro.

Eu fazia aquele caminho todo santo dia, indo pra Philco.

Quando cheguei na Bola da Suframa, em vez de quebrar à direita, fui em frente, em direção a Ceasa.

Ela não disse nada, entretida em acompanhar “Jura Secreta”, do Fagner, que saía do toca-fitas.

Eu só parei o carro quando já estava diante de um dos apartamentos do motel Beira-Rio, na estrada da Refinaria.

Banana split, uma pinóia: agora era hora de candelabro italiano e cavalo marinho.

Saímos de lá por volta das três horas da manhã, trocando juras de amor eterno.

Pra completar o quadro, dei o quimono de seda do Inácio de presente para minha nova gueixa.

Ter perdido a morena bela pra mim, o Inácio tirou de letra.

O que ele nunca me perdoou foi ter ficado sem o quimono.

Também tem dessas coisas.

quarta-feira, junho 29, 2011

Causos de Bmabas: Thiago de Mello


Depois de 15 anos no exílio, o poeta Thiago de Mello desembarca em Parintins.

Fã de carteirinha do poeta, o empresário Antônio Faria, um dos grandes intelectuais da ilha, apressa-se em ir buscar o poeta no aeroporto.

Antônio veste sua melhor roupa e escolhe o carro mais bonito da família, para a empreitada.

Afinal de contas, ele ia ficar pela primeira vez na vida frente a frente com seu grande ídolo literário.

Feita as apresentações, Thiago aboleta-se no carro, enquanto um Antônio radiante e emocionado vai dirigindo vagarosamente, completamente embevecido, em direção à cidade.

No meio do caminho, ele reconhece um funcionário da loja JP, pertencente ao seu pai, Zé Pedro Faria, pedalando uma bicicleta.

Trata-se do folclórico Ari Seixas, um dos baluartes do movimento GLS da Ilha Encantada.

Antônio para o carro e chama Ari Seixas.

Ele encosta a bicicleta ao lado do carro.

– Arizinho, meu mano, deixa eu te apresentar esse ilustre passageiro que estou levando no carro. Ele é o famoso poeta Thiago de Mello, uma das glórias da nossa literatura. Thiago foi amigo íntimo do poeta chileno Pablo Neruda, tendo morado mais de dois anos na famosa Ilha Negra, onde ficava a casa-escritório do Neruda, o primeiro escritor latino-americano a receber o prêmio Nobel de Literatura. O Thiago está voltando para o Brasil depois de ter passado 15 anos exilado na Europa por ter enfrentado a ditadura militar com seus versos humanistas e cheios de paixão pela natureza.

Ari abaixou-se na janela, olhou para o poeta e não disse nada.

Antônio Faria continuou:

– O Thiago de Mello é autor dos famosos livros “Faz escuro mas eu canto”, “Canção do Amor Amado” e “Poesia comprometida com a minha e a tua vida”. Ele também escreveu o brilhante poema “Os Estatutos do Homem”, considerado uma obra-prima pela ONU e já traduzido para mais de 50 países. Além disso, o Thiago teve e tem entre seus amigos íntimos os poetas Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Paulo Mendes Campos, Ferreira Gullar e João Cabral de Melo Neto, os escritores Mario Vargas Llosa, Julio Cortazar, Gabriel García Márquez, Carlos Heitor Cony, Otto Lara Resende, Fernando Sabino, Armando Nogueira e José Lins do Rego, o teatrólogo Nelson Rodrigues, os artistas plásticos Pablo Picasso, Candido Portinari e Juan Miró, o paisagista Burle Marx, o arquiteto Oscar Niemeyer...

Ari abaixou-se na janela, olhou para o poeta mais uma vez e falou afetadamente:

– Pois olha, maninho, o meu cu nem tremeu...

Aí, voltou a pedalar a bicicleta e foi embora.

Antônio Faria só faltou se enfiar debaixo do carro.

Cuasos de Bambas: George Jucá


O baixista George Jucá estava participando de uma festa de aniversário na casa do músico Cledson Cleclé quando percebeu que Luciana, uma das irmãs de Cledson, estava se insinuando para ele.

Ocorre que Luciana já havia bebido todas e estava na fase terminal da manguaça, cujos principais sintomas são pernas bamboleantes, excessiva produção de “baba” nos cantos da boca e soluço intermitente.

Ela se aproximou do baixista, tentando manter o equilíbrio, passou o dorso da mão na boca para limpar a “baba” e, bamboleando na sua frente como um “joão bobo”, tentou puxar conversa:

– Você (hic)... não é (hic)... o baixista (hic)... George (hic)... Jucá (hic)...?

George Jucá, que imita um boiola com perfeição, deu uma desmunhecada, colocou as mãos nos quadris e, com a língua entre os dentes, mais afetadíssimo do que nunca, disparou:

– Você está enganada, amiga! Meu negócio é rôôôôla!

A Luciana esbugalhou os olhos:

– Vixe! (hic)... Sai (hic)... pra lá (hic)... viado (hic)... velho (hic)...!

E foi embora, injuriada.

George Jucá arranhou um pouco sua reputação de espada matador registrado em cartório, mas consegiu se livrar do bote do dragão.

terça-feira, junho 28, 2011

Deu Garantido na cabeça! Que merda...


Texto: Marcondes Maciel /Fotos: Paulo Sicsú

O boi bumbá Garantido é o campeão do Festival Folclórico de Parintins 2011.

A contagem dos votos de nove jurados iniciou por volta das 15h desta segunda-feira, 27, na sala de imprensa da Agecom no Bumbórdromo.

A agremiação foi campeã também no item galera como a melhor torcida do festival.


De acordo com o presidente Telo Pinto a vitória é dedicada principalmente a Nação Vermelha e Branca, torcedores apaixonados que deram a vibração positiva para o Garantido.

- É uma vitória de superação e de muita garra, afirmou Telo.

Ele parabenizou as tribos que compuseram o conjunto indígena na arena do bumbódromo, grupos de danças vindos da cidade de Juruti no Pará, Macapá, Nhamundá, Barreirinha, Maués e Manaus.

O boi Garantido teve no computo geral 1.258,8 pontos e o boi contrário apenas 1.258,6.


O apresentador Israel Paulain foi imbatível em todas as noites.

O levantador de toadas Sebastião Júnior levou a melhor em cima do levantador de toadas do contrário.

A sinhazinha Ana Luisa Faria também superou o mesmo item do contrário.

De modo geral todos os itens foram vencedores neste festival.


Após o resultado oficial, uma multidão formou um mar vermelho e saiu pelas ruas da cidade comemorando o título de campeão em cima de um trio elétrico.

Alguns integrantes do Garantido com o microfone na mão vez e outra davam um grito “Boiuuuunaaaaaaa”, em um tom desafinado e rouco, em uma sátira ao levantador do contrário que perdeu em seu item.

“Perdeu pro Sabá, Perdeu pro Sabá, Perdeu pro Sabá....”. Esse era um dos refrãos que a galera entoava durante a passeata.

A festa iniciou ainda no bumbódromo, mas toda a cidade comemorou, numa demonstração da grandiosidade da galera do Garantido.

A concentração aconteceu no curral Lindolfo Monteverde, na Cidade Garantido.

Veja abaixo o mapa de apuração geral:



Nota do Editor do Blog:

Eu só não vou chamar os filhos da puta dos jurados de ladrões com a mãe na zona porque aqueles cornos não merecem.

O Caprichoso perdeu por dois décimos porque um jurado deu 9,7 para o David Assayag, o melhor cantor amazonense de todos os tempos.

O que qui se faz com um jurado desses? Entrega pro Manicão da penitenciária Anisio Jobim? E se ele gostar da experiência?

Fora esse pequeno detalhe técnico, quem assistiu aos três dias do festival e viu o baile que o Caprichoso deu no contrário nas três noites deve estar puto nas calças. Que nem eu.

Felizmente, a vida não se resume a festivais...

Beyoncé diz que sempre quis ser estrela do rock


A popstar norte-americana Beyoncé Knowles realizou seu sonho no domingo, levando uma multidão enorme ao delírio com canções velhas e novas no encerramento do Festival de Música de Glastonbury deste ano.

A cantora de 29 anos de idade de Crazy in Love fez sua estreia em um dos maiores eventos mundiais de música ao vivo, três anos depois de seu marido, Jay-Z, ter desmentido os céticos com um show que ajudou a incluir o hip-hop no mapa de Glastonbury.

– Quero que vocês todos saibam neste momento que estão assistindo a meu sonho –, disse Beyoncé a dezenas de milhares de pessoas que se apertavam diante do palco Pyramid, o principal do festival. Um dos presentes no público era Jay-Z.

– Eu sempre quis ser uma estrela do rock, e nesta noite somos todos estrelas do rock. Quero que esta noite vocês se percam na música.


A entrada de Beyoncé foi alardeada com fogos de artifício, e depois disso ela produziu mais emoção sobre o palco para animar os fãs que tinham passado três dias enfrentando chuva e lama para assistir a seus artistas favoritos.

Usando casaquinho curto de paetês dourados, Beyonce cantou uma série de sucessos, começando com Crazy in Love e incluindo Single Ladies (Put a Ring On It) e Naughty Girl.

– Ainda não consigo acreditar que estou cantando em Glastonbury –, disse ela a um mar de fãs enlouquecidos.

Beyoncé mostrou energia igual a seus dançarinos, em um show cheio de dinamismo que só caiu um pouco quando ela apresentou canções de seu novo álbum, 4, a ser lançado este mês.

Houve gestos de reconhecimento a Annie Lennox com Sweet Dreams (Are Made of This), a Prince com uma versão ultra-lenta de The Beautiful Ones, a Lady Gaga com o dueto delas Telephone e a sua antiga banda, Destiny’s Child, com uma fusão de sucessos dela.


Este ano cerca de 180 mil pessoas assistiram ao festival na fazenda Worthy, no pitoresco sudoeste da Inglaterra, e o que vai ficar na memória delas será a lama.

As chuvas pesadas da sexta-feira e dos dias anteriores converteram a fazenda de 364 hectares em um gigantesco lamaçal. No domingo, porém, o sol apareceu, fez calor forte, e as capas de chuvas foram trocadas por biquínis.

A banda U2, atração principal da noite de sexta-feira, impressionou críticos ao apresentar uma série de seus maiores sucessos, mesmo sob chuva pesada.

Um grupinho de pressão chamado Art Uncut soltou no ar um balão grande com os dizeres U Pay Tax 2? (O U2 também paga impostos?), protestando contra a decisão tomada pela banda alguns anos atrás de transferir suas operações da Irlanda para a Holanda, para finalidades tributárias.

Manifestantes afirmaram ter sido maltratados por guardas de segurança que os obrigaram a tirar o balão do ar, mas o fundador do festival, o fazendeiro Michael Eavis, minimizou as críticas, dizendo que a história foi exagerada.

Festival da Lama


A lama ficará como recordação tão forte quanto a música no Festival de Glastonbury deste ano, em que U2, Coldplay e Beyonce foram as atrações principais e 180 mil pessoas enfrentaram barro e chuva para ouvir seus grupos e artistas favoritos.

Chegar de um palco a outro na fazenda de 364 hectares no sudoeste da Inglaterra em que o festival foi realizado era um empreendimento trabalhoso, obrigando as pessoas a andar no “passo de zumbi”.


Mesmo assim, muitos fã usando botas de chuva ficaram entalados na lama e dezenas acabaram estatelados no chão, com os rostos mergulhados na lama.

A paciência do público foi recompensada, e as capas de chuva foram trocadas por biquínis quando o sol saiu no sábado e domingo, facilitando os deslocamentos pela fazenda.

– Acho que a recordação principal será a lama –, disse Matt Bennett, fã de 20 e poucos anos, sentado no palco Other para curtir o sol quente.

Sua amiga Amy Mortimer acrescentou:

– Você se acostuma com a lama, e, quando o sol apareceu, pudemos nos concentrar na música.


Michael Eavis, fundador de Glastonbury e dono da pitoresca fazenda de vacas leiteiras onde o festival é realizado na maioria dos anos desde a década de 1970, elogiou o estoicismo do público do festival.

– Conseguimos sobreviver, mesmo sob as condições mais adversas. Depois de 41 anos, somos sobreviventes.

Não haverá Festival de Glastonbury em 2012, ano de Olimpíadas em Londres.

Eavis disse que já tem três grupos importantes reservados para a edição 2013 do festival, mas se negou a informar quais são.


A superestrela norte-americana Beyonce Knowles encerrou o festival na noite de domingo, fazendo sua estréia em Glastonbury três anos depois de seu marido, Jay-Z, ter surpreendido com o sucesso que fez no evento.

Jay-Z estava no meio da multidão agitada de dezenas de milhares de pessoas que assistiu ao show de alta energia em que Beyonce apresentou sucessos dela mesma, covers de músicas de outros artistas e uma fusão de faixas conhecidas de sua banda antiga, Destiny’s Child.

quinta-feira, junho 23, 2011

Aula 30 do Curso Intensivo de Rock: Folk Rock


Quando Robert Allan Zimmerman, um judeu interiorano de Duluth, Minessota, pegou a primeira guitarra aos 12 anos, em 1953, ainda não tinha feito o bar-mitzvah e esse tal de rock’n’roll nem existia oficialmente.

Ele largou a Hibbing High School, em 1959, para seguir o profeta Little Richard.

E o obscuro rock baladista Bobby Vee foi o primeiro artista estabelecido a contratá-lo – como pianista de seu grupo.

Só então, já na pele de Bob Dylan (numa homenagem ao poeta galês Dylan Thomas), ele pegou a Highway 61 (mais tarde título de um de seus discos) e foi visitar o bardo folk Woody Guthrie, preso há oito anos numa cama de hospital com uma rara doença hereditária (mal de Huntington) que levaria 15 dolorosos anos para matá-lo.

Woody Guthrie era um cantor intinerante que sempre fez uma música de forte cunho social.

Os heróis de suas músicas eram sempre os camponeses pobres (como no álbum “Dust Bowl Ballads”) e as vítimas de injustiça, cantadas em “Sacco & Vanzetti” (os dois anarquistas italianos executados na cadeira elétrica).

Na maioria das vezes, eram canções recitadas falando de negros colhendo algodão, descrições da Conquista do Oeste, denúncias de fura-greves e capatazes filhos da puta, lembranças de velhas baladas inglesas e irlandesas.


Nascido no Okhaloma, em 1912, Guthrie for marinheiro mercante até a depressão americana, quando começou a cantar e compor.

Uma de suas característica era a capacidade de formular discursos políticos da maior complexidade em termos muito simples e acessíveis, enquadrados nos campassos da música folk.

Homem assumidamente de esquerda, Guthrie entalhou a canivete em seu violão a frase “isto é uma máquina de matar fascistas”.

Quando finalmente se conheceram, Guthrie tinha 49 anos, Dylan 19, mas a música os unia e se tornaram amigos.

O encontro lançou a âncora definitiva na carreira de um dos maiores poetas do rock, influência de John Lennon a Jimi Hendrix, mito radical que jogou a política na arena pop e eletrificou o folk ancestral.

Sua primeira turnê começou em abril de 1961 no Greenwich Village, abrindo shows do bluesman John Lee Hooker.

Naquele mesmo mês, ganharia US$ 50 tocando gaita no disco “Midnight Special”, de Harry Belafonte.

Um produtor nova-iorquino, John Hammond Sr., descobre Dylan tocando no Gerde’s Folk City do Greenwich Village e lhe oferece um contrato.


Em outubro de 1961, Dylan gravaria seu primeiro álbum, “Bob Dylan”, com versões cruas de canções tradicionais, como “House Of The Rising Sun”.

Não emplaca nas paradas, mas uma de suas mais conhecidas canções, “Blowin’ In The Wind” (“Quantos caminhos um homem deve seguir / Até ser aceito como um homem?”) é publicada pela revista Broadside e começa a ser forjada a lenda.

Inspirado em Richard Buckley (intelectual hipster dos anos 20), ligado em jazz e underground, Dylan a partir do Village fez a caipiragem folk virar hype e instalou o culto às raízes no cocoruto da mídia, auxiliado pela cantora Joan Baez, a Madonna dos oprimidos, com quem viveu alguns anos após um encontro no Newport Folk Festival, em 1963.

Joan Baez, nascida em Nova York, filha de um médico mexicano, tinha sido a grande sensação do Festival Folk de Newport em 59 e, já em 62, era capa do Time e vendia mais discos que Sinatra.

Dylan e Joan se conheceram quando ele ainda cantava no citado pub Gerde’s, fizeram sucessos juntos em Newport em 63 e acabaram rompendo em 65.


As rivalidades profissionais se tornaram insuportáveis na turnê inglesa de 65, quando Joan ficou reduzida a acompanhar passivamente Dylan, como uma espécie de tiete, sem que ele a convidasse a subir ao palco uma só vez.

Foi também em 65 que Dylan se tornou elétrico, como dizem.

Ou seja, trocou o violão acústico do folk pela guitarra elétrica do rock.

No ano anterior, excursionando pela Inglaterra, ele conheceu o trabalho dos Beatles, dos Rolling Stones, de Eric Burdon e os Animals e sentiu que o rock’n’roll ganhara vida nova nas mãos dos jovens músicos ingleses.

Partiu então para uma fusão muito louca entre o novo rock e a folk song tradicional e o resultado foi um monstrengo chamado de folk rock.

Quando se apresentou no Festival de Newport em 65, Dylan foi recebido com vaias.

Não era apenas o novo som que desagradava os puristas do folk, mas as letras que se tornaram mais densas e surrealistas, como na celebração psicodélica de “Mr. Tambourine Man”.


Dylan começara a falar de coisas como o drama do homem magro e culto que leu toda a obra de Scott Fitzgerald, mas não conseguia mais entender o mundo.

Falava da velha que morava num depósito de lixo e freqüentava os cemitérios, tinha a cara da morte e vinha puxar as cobertas das pessoas no meio da noite.

Descrevia a “Travessa da Desolação”, cheia de personagens grotescos, fazendo amor ou esperando a chuva passar.

Sua nova cruzada era promover a abertura das cucas das pessoas através do rock.

Suas músicas tornavam-se clássicos instantâneos cutucando a classe média acomodada e preparando o terreno ideológico da nação Woodstock.

“Masters Of War” lancetava no fígado a América belicista.

Escrita durante a crise dos mísseis de Cuba, “A Hard Rain Is Gonna Fall” profetizava pesadelos orwellianos para o american way of life e “Ballad Of A Thin Man” completava o serviço.

Acuava o zé-ninguém reichiano através da paranóia (“alguma coisa está acontecendo aqui, mas você não sabe o que é, sabe Mr. Jones?”) e definia o combate: “Você é uma vaca / Dê-me algum leite ou desapareça”.


O texto épico misturado ao pano de fundo urgente da mudança dos ventos transformou Dylan numa usina de idéias e canções capazes de digitar a época em poucos segundos.

“Mr. Tambourine Man” atingiu o primeiro lugar em 65 e virou emblema dos Byrds.

“All Allong The Watchtower” incorporou-se em definitivo ao repertório do xamã negro Jimi Hendrix.

Joan Baez constatara que “It’s All Over Now, Baby Blue”, e também caíra na estrada.

Manfred Mann detonava “If You Gotta Go, Go Now” e, saltando um pouco no espaço, até o recente metal caótico Guns N’Roses foi bater na antiga porta com “Knocking’on Heavens Door”.


Agora tente imaginar o seguinte quadro: você tem 25 anos e nos últimos cinco anos de sua vida se tornou, primeiro, um campeão dos direitos humanos, “herói” da política estudantil, trovador querido dos universitários e de todas as colorações da esquerda.

Depois, numa velocidade que lhe parece absolutamente alucinante, você se viu no trono do estrelato pop, adorado agora por multidões de jovens.

Só alguém foi tão famoso em seu país, os Estados Unidos: Elvis Presley.

Mas Presley era um bronco, um ingênuo, uma criatura de seu empresário.

E você não: você sofre de lucidez crônica, muitas vezes paranóica, um lirismo brotando por todos os poros, uma consciência crítica que não o deixa dormir.

Você leu bastante, foi ao cinema, gosta de poesia.

Mas, hoje, na América ninguém é mais famoso do que você.

Foi nesse contexto que Bob Dylan criou “Blonde On Blonde”, um álbum duplo vital, obsessivo e transformador, capítulo derradeiro no livro número um de sua biografia.

O disco foi lançado em maio de 66.


Em julho, Dylan foi cuspido fora de sua moto Triumph 500, nas cercanias de Woodstock e, com várias costelas quebradas, suspeita de fratura de crânio e lesão cerebral, viu-se confinado a uma cama de hospital por três meses, seguidos de mais um ano de afastamento da vida artística – começava aí o livro dois de sua vida.

Mas voltemos atrás.

Voltemos ao jovem Dylan popstar, recém-casado com Sarah Lowndes – artista plástica, poetisa, adepta do zen-budismo –, consumidor contumaz de anfetaminas, excursionando sem cessar de uma costa à outra da América e, nos intervalos, ainda achando tempo para sessões de gravações nos estúdios da Columbia, em Nashville.

O jovem Dylan que, no ano anterior, chocara o mundo careta e bem-pensante do festival folk de Newport, subindo ao palco com uma guitarra elétrica ao pescoço, e que, na seqüência, colocara no topo das paradas de sucesso uma longa diatribe sobre os rigores da vida errante, “Like A Rolling Stone”.

Todos e cada um desses elementos, características de um momento rico, mas tenso de sua vida, estão na música mercurial de “Blonde On Blonde”, um álbum duplo, mas não muito – o lado D é inteirinho ocupado por “Sad Eyed Lady Of The Lowlands”, uma pungente balada de adoração a Sarah onde Dylan atinge o auge de sua capacidade poética de expressar o amor.

“Sad Eyed” acaba sendo um dos raros momentos de serenidade num álbum que respira a energia nervosa da anfetamina.


Outro instante de doçura é também uma balada de amor – “Visions Of Johanna”, no caso, um adeus sentido, mas terno, a um grande ex-amor, Joan Baez.

Muitos vêem tanto em “Sad Eyed” quanto em “Johanna” as primeiras manifestações de um sentimento realmente religioso em Dylan, a busca de uma dimensão metafísica, espiritual, para a existência.

A maioria dos músicos de “Blonde On Blonde” é de feras de Nashville, do country & western, portanto.

Para afiar o gume cortante, ele acrescentou o grande guitarrista de blues, Al Kooper, e seus amigos canadenses, Levon Helm e Robbie Robertson, do grupo que viria a ser The Band.

Órgão, guitarra e harmônica formam o coração elétrico da sonoridade e o disco todo é puxado nos agudos, um som nervoso, quase diáfano.

Nos textos, atrás de uma bateria de metáforas, Dylan despeja rancores, paranóias e um insistente pedido de tréguas.

Ele tem raiva dos hipócritas em “Leopard-Skin Pillbox Hat”, das amantes mentirosas em “Just Like A Woman”, das situações irremediáveis em “Memphis Blues Again”.

Não há solução, diz a voz mercurial, ou melhor, a solução é “todo mundo ficar chapado” (ou “ser apedrejado”, os dois sentidos de “get stoned”, refrão crucial da faixa de abertura, “Rainy Day Women 12 & 35”).


Depois do terrível acidente de moto, ele ficou se recuperando numa casa de campo, que comprou em Woodstock, a uma hora de Nova York, colocando a cabeça pra trabalhar.

Seus 18 meses de silêncio só reforçavam a onda de boatos que falavam até de sua morte.

No começo de 68, Dylan voltou às raízes folk com o surpreendente lúcido “John Wesley Harding” em que, no auge da invasão hippie, falava parabolicamente de bandidos, vagabundos, santos e imigrantes.

Dylan tornou-se religioso extremista nos anos 70 e só voltou às paradas de sucesso com a canção “Hurricane”, um grande clássico de oito minutos e a primeira faixa do disco “Desire”, de 1975.

A música foi feita para o então presidiário Rubin Carter.

Como isso se deu?

Oito anos após sua prisão, Carter enviou uma cópia de sua autobiografia, “The Sixteenth Round: From Number 1 Contender to 45472”, a Dylan, que admirava e pontificava como um líder contracultural naqueles tempos.

Passados 30 dias, o cantor foi visitar Carter na cadeia.


“A primeira vez que o vi, eu compreendi uma coisa: a filosofia daquele homem estava correndo na mesma estrada que a minha e eu não encontrei muita gente como ele na vida”, disse Dylan, após o encontro.

Dylan então chamou o seu produtor, Jacques Levy, e os dois perpetraram esse que é um dos maiores clássicos do rock, metade canção de protesto e metade documento.

“Como pode a vida de um homem / Estar na palma da mão de um babaca?”, cantava Dylan.

Ele se declarava enojado de viver numa terra onde a Justiça era um simples jogo viciado.

O violino que se ouve na faixa é tocado por Scarlet Rivera (o restante da banda, no disco, tem o baixista Rob Stoner, o baterista Howard Wyeth e as vocalistas Emmylou Harris e Ronee Blakley).

Dylan, acompanhado da banda-projeto The Rolling Thunder Revue (que incluía convidados como Joan Baez, Joni Mitchell, Arlo Guthrie e o poeta Allen Ginsberg), chegou a fazer dois concertos na primavera de 1976 para arrecadar fundos para ajudar na defesa de Rubin Carter.


Foram tocar até na prisão – onde, segundo a revista Rolling Stone, Joni Mitchell foi vaiada.

O outro show, no Madison Square Garden, rendeu US$ 100 mil.

Mas Dylan também enfrentou problemas com uma das testemunhas do caso, Patty Valentine, que o processava por usar seu nome na letra da música.

Os advogados de Dylan na Columbia Records tiveram de pedir pequenas alterações na letra da canção para evitar possíveis novas ações.

O sucesso da música o livrou de grandes problemas, tendo sido muito bem tocada nas rádios americanas.

Um mês depois dos primeiros concertos, o Revue se reuniu novamente (desta vez com Isaac Hayes, Stevie Wonder, Carlos Santana, Richie Havens e Rick Danko) para um show para Carter no Astrodome de Houston, Texas.

Saber o momento certo de fazer as coisas é tudo na vida, como qualquer lutador de boxe sabe muito bem.

Por isso, o fato de dois livros lançados nos Estados Unidos – “Hurricane: The Miraculous Journey de Rubin Carter”, de James S. Hirsch, e “Lazarus and the Hurricane”, de Sam Chaiton e Terry Swinton – seguirem as pegadas do filme de Denzel Washington, “Hurricane – O Furacão”, não é nem coincidência nem falta de oportunismo.

Mas falta alguma coisa em ambos. Um nome. O mesmo nome.


Não importa que partido se tenha tomado ou se venha a tomar, não há como escapar da idéia de que Rubin “Hurricane” Carter – o peso médio injustamente condenado em 1966 por um triplo assassinato em Paterson, New Jersey – foi o padrinho em jurisprudência de O.J. Simpson.

Basta acreditar em um quarto das histórias que esses livros contam, falcatruas jurídicas, oportunismo político, veneno racista e provas forjadas pela polícia e pela promotoria, para imaginar um júri negro dizendo simplesmente: “Isso nunca mais vai acontecer”.

Também não é muito difícil visualizar observadores brancos pensando em quantos outros Carters existem abandonados no sistema penal americano sem que nenhum Bob Dylan escreva suas canções-tema.

Há bons motivos para que O.J. Simpson não apareça nas páginas desses dois livros.

James Hirsch, ex-repórter do New York Times e do Wall Street Journal, deixou de lado as maçantes elucubrações sociológicas para escrever um livro cheio de detalhes.

Factual ao extremo, sua obra contém uma raiva intrínseca que conquista a empatia do leitor – no fim, quando ele cita as carreiras de sucesso dos principais carrascos de Carter, dá vontade de atirar o livro longe.

Ausentando-se da narrativa, Hirsch faz um retrato extremamente pessoal de Carter e dos estranhos idealistas canadenses que, em 1988, o ajudaram a conquistar sua liberdade.

Sam Chaiton e Terry Swinton são dois desses canadenses que praticamente adotaram um jovem negro do Brooklyn chamado Lezra Martin, no início dos anos 80.


Lezra, de 16 anos, foi inspirado pela autobiografia de Carter, “The Sixteenth Round”, a corresponder-se com o condenado – que, por sua vez, inspirou os canadenses a se mobilizarem em sua defesa.

Os dois canadenses originalmente publicaram “Lazarus” no Canadá, em 1991 (dois anos antes do assassinato de Nicole Brown Simpson), e, como não são videntes, mantiveram-se fiéis a seu roteiro em que aparecem como seres afeitos aos auto-elogios.

A questão mais intrigante é por que omitiram a existência de Lisa Peters – a líder comunitária de rua de Toronto que se casou com Carter depois de sua libertação para que ele obtivesse cidadania canadense e que Hirsch transforma numa das personagens centrais de seu livro.

Lisa foi fundamental para que Carter rompesse seu silêncio depois de ter sua sentença confirmada em 1976 (uma acusação baseada em princípios racistas que mais tarde foi julgada inconstitucional) e Hirsch acredita que seu envolvimento romântico com Carter foi tão importante quanto a movimentação legal dos canadenses.


Uma reportagem publicada na revista McLean, de Toronto, diz que Lisa Peters, Sam Chaiton e Terry Swinton moram juntos, se dão bem e estariam chocados com a maneira como Hirsch os retratou em seu livro (como anti-semitas e xenófobos, algo corroborado por Selwyn Raab, repórter da revista Times).

Isso só torna mais estranha a ausência de Lisa do livro, um dos que serviu de base para o filme de Norman Jewison.

Não é segredo que esse grupo canadense tem uma agenda política.

Em sua opinião, o Lezra Martin que conheceram era o produto intelectualmente comprometido de um país corrupto e só sua intervenção o salvou.

Eles têm algumas idéias bastante estranhas, entre elas a de que há pouco metrô no Brooklyn (uma surpresa para os milhares de passageiros do trem F) e que os grandes júris dos EUA são compostos apenas por empresários.

O Canadá aparece como um paraíso virtual.

Mas aqueles interessados no caso Carter – que, é importante dizer, continua a fazer a Justiça do condado de Passaic parecer tão estúpida hoje como foi vingativa no passado – vão perceber que os dois livros se complementam, embora de maneira estranha.

Ambos concordam no que se refere aos fatos básicos, mas a história é inverossímil.


No dia 17 de junho de 66, dois homens e uma mulher foram assassinados no Lafayette Bar, na cidade de Paterson, por dois homens negros, cujas descrições iniciais em nada correspondiam a Carter e John Artis, o outro acusado.

Carter e Artis foram detidos para interrogatório e liberados na noite dos crimes e, mais tarde, a promotoria do condado de Passaic afirmou que os dois nunca tinham sido suspeitos do caso.

Em seguida, os dois foram presos e condenados com base em evidências e testemunhos de que a polícia de Paterson já dispunha na ocasião em que liberou os dois suspeitos.

Ao reagir ao filme de Norman Jewison, o xerife do condado de Passaic, Edwin Englehardt, declarou que Carter e Artis tinham sido soltos com base num “aspecto técnico constitucional”.

Bem, quem quiser acreditar nisso ainda terá de se perguntar por que o detetive Vincent DeSimone e os demais investigadores geniais de Paterson deixaram seus principais suspeitos em liberdade se, como disseram mais tarde, já “sabiam de tudo”.

A não ser, é claro, que ainda não tivessem tido tempo para armar todas as provas falsas, uma conclusão tirada por todos os autores e pelos que acompanharam o caso desde o início.

Ambos os livros têm suas falhas, sejam elas factuais ou filosóficas.


Hirsch, por exemplo, fala de um tiro disparado no Lafayette Bar que, na prática, ninguém ouviu.

Em várias ocasiões ele repete informações de uma forma que parece que ele esqueceu de já ter escrito aquilo.

Chaiton e Swinton, que usam apenas os primeiros nomes e escrevem na terceira pessoa, são mais que tendenciosos quando reconstroem longas conversações expositivas que envolvem Lezra, Carter e outros, especialmente porque recheiam esses diálogos com um suspeito “dialeto negro”.

Dos dois livros, o de Hirsch é o mais ponderado e justo.

O Carter de Hirsch não é nenhum santo.

Depois dos crimes de Lafayette até mesmo seus parentes disseram acreditar que o alcoólatra, mulherengo, lutador de boxe e ex-condenado seria capaz de matar.

A única coisa que estranhavam era o fato de ter usado uma arma, coisa que, diziam, ele não seria capaz de fazer.

A milagrosa jornada que Carter de Hirsch faz é, assim, mais digna de credibilidade, enquanto o livro “Lazarus” ainda nos faz perguntar onde Lisa Peters foi parar.

Mas que o caso rendeu uma música maravilhosa e um filme sensacional, isso rendeu.


Em 2002, o jornalista inglês Howard Sounes lançou o livro “Dylan: A biografia”, resultado de uma minuciosa e exaustiva pesquisa.

O grande diferencial do livro escrito por Sounes de todo e qualquer relato biográfico já feito sobre Dylan é a complexa teia de informações recolhidas acerca do mestre.

Em tentativas anteriores, jornalistas como Anthony Scaduto (autor da primeira biografia em 1971) deixaram de fora muitas pessoas envolvidas na carreira de Bob, desde amigos de infância até outras que hospedaram-no em tempos iniciais de carreira em Nova York, namoradas (muitas, é bom que se diga) e colegas de profissão.

Sounes procurou e achou todo e qualquer indivíduo ligado a Dylan em seus 42 anos de carreira, fazendo um retrato fiel e consistente de uma personalidade enigmática, rica de frases e situações, no mínimo, interessantes.

Tal fato é corroborado pelo próprio autor em texto introdutório do livro, dizendo que “embora um bom trabalho tenha sido feito (sobre os outros livros), o desafio de escrever uma biografia superior que transmita a inteira grandeza do feito artístico de Bob Dylan e que também revele a verdadeira vida desse homem esquivo e fascinante permanece.”

Permanecia.

Em tese, Howard Sounes traçou paralelos importantes, culminantes no Dylan compositor, dono de si e de uma carreira de altos e baixos.

Muito mais do primeiro, obviamente.

Como todo grande artista, Dylan fez álbuns fundamentais (“Blonde On Blonde”, “Blood On The Tracks”, “Desire”), mas também produziu música dispensável.

Nem todos podem ser perfeitos.


A gênese do trabalho de Dylan está diretamente ligada à vida no interior de Duluth, distrito cuja economia girava em torno da mineração de ferro, ouvindo no rádio o blues de Robert Johnson e o boogie de Little Richard.

Num canto do estado de Minnessota, Dylan desenvolveu o faro para a música folk de Leadbelly e Woodie Guthrie.

Firmou o pé nas work songs (música dos apanhadores de algodão do sul dos EUA), nos spirituals (música religiosa negra americana), mas, principalmente, na música folclórica americana, representada fortemente pela “Anthology of American Folk Music”, compêndio de seis discos organizado pelo pesquisador e etnomusicólogo Harry Smith que reunia gravações feitas por músicos nas décadas de 20 e 30, e que Dylan certa vez roubou do apartamento de um conhecido, como conta o livro.

Excêntrico, esquisitão, imitador de si mesmo.

As facetas de Bob Dylan descritas em sua mais completa biografia deixam reticências ricas, quase enigmáticas.

Contar, com a riqueza de detalhes e com a qualidade de texto feita por Howard Sounes, a vida e a obra de um sujeito tão pleno de estranhezas e melindres como era (e é) Bob Dylan, não deve ter sido tarefa das mais fáceis.

O próprio biografado não contribui para o relato, mas deu total aval ao trabalho, afinal de contas, deve ser muito engraçado ler a própria vida sob uma perspectiva diferente.

Enfim, ficam as histórias e toda a complexidade de um artista único, pensador original e poeta genial.

Para os velhos, “Dylan: A biografia” é uma revelação.

Para os mais novos, um farol.

Aula 31 do Curso Intensivo de Rock: Carlos Santana


Em 1966, no mesmo ano em que começou o inferno zodiacal do boxeador Rubin Carter, um mexicano chamado Carlos Santana imprimiu ao folk rock um acento latino divertido e dançante, o que lhe abriu as portas para wasp de cintura dura e cucarachas malemolentes.

Desde quando a Santana Blues Band começou uma irrestível ascenção em São Francisco – que iria explodir no histórico Festival de Woodstock em 1969 –, a receita guitarra mais percussão mais teclados sacoleja quadris acima e abaixo do equador.

A vida do músico começou muito cedo, aos cinco anos de idade.

Seu pai, um violinista mariachi, ensinou-lhes as primeiras noções musicais ainda na pequena vila de Autlan, no estado de Jalisco.

Três anos mais tarde, quando a família mudou-se para Tijuana, o menino trocou o violino pela guitarra, sob o influxo de B.B. King, T. Bone Walker e John Lee Hooker que ouvia nas rádios locais.

Criado na turbulenta fronteira mexicana, o adolescente Carlos acabou indo tocar blues de madrugada nos clubes, dividindo o local com prostitutas e strippers.

Talvez tenha sido por isso que seu pai, também músico profissional, tenha se mudado para Mission, distrito de São Francisco, em 1961.

Carlos foi tragado pelo fermento criativo dos anos 60, numa época em que o submundo psicodélico e os protestos contra a Guerra do Vietnã colidiam com as novas orientações musicais oriundas da costa leste.

Não demorou muito e logo estava esbarrando em músicos como os do Grateful Dead, Jefferson Airplane, Moby Grape e a Paul Butterfield Blues Band.

Juntou-se então ao organista Gregg Rolie e formou sua primeira banda.


Incentivado pelo influente promoter e empresário Bill Graham, que contratou a banda para apresentar-se em sua casa de espetáculos de Fillmore West – tornando-se o primeiro empresário não oficial do grupo –, Santana se transformou em uma das atrações mais quentes naquela região da baía.

“Bill Graham deu aos hippies a oportunidade de aprender alguma coisa”, lembra Santana. “Ele disse que se quisessem ouvir o Grateful Dead, deviam ouvir antes Miles Davis. E se quisessem ouvir Santana, que ouvissem primeiramente Roland Kirk”.

Graham, um tipo rude e mordaz, nomeara a si mesmo crítico dos artistas que contratava.

Ele assustava muita gente, mas Santana se lembra dele com ternura.

“Recordo com saudade as notas que ele tomava durante os shows, não importava de quem fossem: Sinatra, Barbra Streisand, Bob Dylan, Eric Clapton, Jimi Hendrix”, conta o guitarista. “Ele me mostrava depois as anotações e dizia: ‘Ok, a primeira música foi excelente, a segunda, uma droga e a terceira, comprida demais’. Quantos empresários você conhece que têm a coragem de dizer-lhe isso?”, indaga.

“O problema é que a gente sabia que ele tinha razão. Não tinha nada a ver com a coisa de ser empresário ou algo parecido: ele estava falando sobre música”, observa o guitarrista.

Durante os cinco anos seguintes, Carlos mergulhou naquela atmosfera saturada do rock, música folk, psicodelismo, fumaça de cigarros nada ortodoxos, batas indianas, sandálias, poesias beat, hipsters e otras cositas más.

Guitarrista da escola uivante de Jimi Hendrix, com acordes alongados e chorosos, entrecortados pelo soluço de escalas velozes e blues notes inesperadas, Santana conseguiu filtrar uma caligrafia tríplice, casando negritude e latinidade na eletrificação do folk rock.

O resultado foi uma música explosiva, que encontrou na Santana Blues Band um veículo poderoso e de fácil aceitação pela juventude disposta a aderir de vez ao nascente multiculturalismo.


Em 1969, com a música “Soul Sacrifice” agradando a gregos e chicanos, ele virou um superstar da noite pro dia e começou a detonar um hit atrás do outro.

Do disco “Abraxas” (1970) saíram “Black Magic Woman” e “Oye Como Va”.

De “Santana III” (1971), “Guajira” e “Batuka”.

A aparição de Santana no concerto de Woodstock, em 1969, projetou-o nacionalmente.

Talvez o fato de que estivesse se drogando com mescalina tenha dado à banda alguma vantagem, mas sem dúvida ela foi um dos maiores sucessos do festival.

Os primeiros ídolos musicais de Carlos foram blueseiros como Muddy Waters, Buddy Guy e Otis Rush, porém ele começou a diversificar bastante o que ouvia.

Ao rock e blues básicos, Santana acrescentou os ritmos latinos e o formato mais livre do jazz moderno absorvido de discos como “My Favourite Things”, de John Coltrane e Bitches Brew, a fusão de rock e jazz de Miles Davis.

“Miles costumava aparecer lá em casa, ele era um dos caras mais divertidos que já conheci”, recorda-se Santana. “Tinha um tremendo senso de humor. Muita gente via nele um tipo diferente de Pantera Negra, mas comigo ele era muito dócil”.

Ele se admira com o fato de, no plano musical, Davis ter mudado o curso da música sete vezes.

“Stravinsky fez isso uma vez só. Até mesmo John Coltrane, para mim o músico do século, disse: ‘Tudo o que descubro Miles já tocou’”.

Os primeiros discos de Santana, incluindo o quarto (o complexo “Caravanserai”, de 1972, muito influenciado pelo jazz), foram alguns dos mais originais e influentes da época.

A versão que ele dá para a história de sua banda tende a dissimular os conflitos pelo poder e o abuso das drogas, que só pioraram com o sucesso e que acabaram por levar Santana a abraçar os ensinamentos hindus de Sri Chinmoy.


De 1973 a 1981, o músico se apresentava como Devadip Carlos Santana, tendo colaborado com outros músicos de jazz de mesma afinidade espiritual, tais como John McLaughlin, Stanley Clarke, Wayne Shorter e Herbie Hancock.

Nos anos 80, retornou aos poucos à sua fórmula original de rock, ritmos latinos e blues.

“O jazz é um oceano”, define Santana. “O rock é uma piscina. Eu curto mesmo é um lago”.

Ele continuou a trabalhar regularmente, mas o público mais jovem se manteve distante dele, e seu nome começava a parecer nada mais do que uma curiosidade histórica.

Apesar de tudo, outras músicas foram se destacando no seu repertório como “No One To Depend On”, “Toussaint L’Overture”, “Gypsy Queen” e “Hold On”, todas tendo um ponto em comum: solos de guitarra arrepiantes combinando com uma cozinha chinfrosa de bateria, timbales e congas, além dos vocais salerosos cheios de energia e balanço.

Músicas deliciosamente suingadas, daquele tipo que ainda hoje a gente assobia no banheiro ou batuca alegremente na mesa do botequim.

Em 1988, ele conseguiu conquistar seu primeiro Grammy como melhor performance para rock instrumental com “Blues For Salvador”.

Muito se deve, portanto, ao chefão da Arista, Clive Davis, que propôs a Santana o primeiro contrato de gravação quando ele estava na Columbia, em 1968, e armou o cenário para o retorno do músico ao oferecer-lhe um novo contrato em 1995.

Davis quis saber de Santana quais eram suas aspirações artísticas e tudo indica que ficou satisfeito com a resposta: “Quero unificar as moléculas com a luz por meio da música”.


Por isso quando a indústria fonográfica americana anunciou a sua premiação anual, em fevereiro de 2000, todas as atenções do Staples Center de Los Angeles estavam voltadas para Carlos Santana, então com 52 anos, indicado para nada menos do que dez prêmios Grammy.

Esse já seria um feito notável quaisquer que fossem as circunstâncias, mais ainda se pensarmos que há alguns anos Santana era considerado apenas um dinossauro dos anos 70, sem nada a dizer para os ouvintes de hoje. Isto, claro, quando alguém se lembrava dele.

Entretanto, Depois de conquistar oito prêmios Grammy pelo álbum “Supernatural”, o roqueiro mexicano também se consagrou campeão da primeira edição do Grammy Latino, realizado em outubro do mesmo ano.

A faixa “Corazón Espinado”, que reúne Santana com a banda mexicana Maná recebeu o prêmio principal do evento, o de “Gravação do Ano”, além do de melhor “Performance de Rock em Grupo”.

Tanto Santana quanto Maná ainda venceriam respectivamente os prêmios de melhor “Grupo Pop” e melhor “Pop Instrumental”.


“Supernatural”, o disco que deu novo alento à carreira de Santana, é um cozido de ritmos latinos da última moda temperado pela sonoridade característica do guitarrista.

O que ajudou “Supernatural” a cruzar a fronteira e entrar em território pop foi o conjunto de artistas que dele participam.

“Do You Like Yhe Way” é de Lauryn Hill, que faz também o vocal rap.

“Maria Maria” foi composta e produzida por Wyclef Jean em parceria com Santana.

O cantor Eagle-Eve Cherry e os Dusty Brothers dão uma palhinha em “Wishing It Was”, um blues meio híbrido.

O vocal de Rob Thomas (do Matchbox 20) em “Smooth”, também parceria com Santana, contribuiu para que a canção ficasse 12 semanas no topo da lista de singles mais executados da Inglaterra.

Acrescente-se ainda a essa lista Dave Matthews e um duo com Eric Clapton e temos aí a receita para 5 milhões de discos vendidos em apenas seis meses.

“Dou crédito total a todo o mundo”, afirmou Santana. “Dou crédito total à minha esposa, dou a Lauryn Hill todo o crédito por ter me convidado a ir com ela à entrega do Grammy, dou a Eric Clapton todo o crédito por sua simpatia, dignidade e elegância tão grandes. Eu não preciso de crédito, meu negócio é progredir, não é fazer sucesso”.

Para Santana, o sucesso é um “bolo bonito”.

“Você o corta e o come sozinho e aí se engasga. O progresso você corta e alimenta as pessoas com ele e, quem sabe, até sobre um pedacinho para você. Essa é a minha experiência”, resume.

Talvez nessa filosofia de vida ainda haja mesmo um pouco daquele filho do flower power de 1969.

Aula 32 do Curso Intensivo de Rock: Neil Young


Por estranho que pareça, um dos pilares do folk rock americano é o canadense Neil Young.

Dono da conjunção voz/guitarra mais descarnada do rock’n’roll, ele sempre se manteve como um outsider, ao mesmo tempo fiel às raízes e franco-atirador nas mais diversas tendências.

A revolta inerente ao trabalho de Young deveu-se em boa parte à sua origem.

De compleição física e saúde precária (além de epilético e diabético, teve poliomelite aos seis anos), ele compensava o temperamento introvertido com a dedicação à música.

Tocou em clubes folk de Toronto e com grupos como The Squires e The Mybah Birds (cujo cantor era Rick James!), do qual saiu – com o baixista Bruce Palmer – para ir à Califórnia, no início de 66.

Consta que a dupla estava presa num engarrafamento em Los Angeles, quando topou com o carro onde estavam os guitarristas Stephen Stills e Richie Furay.

Young já conhecera Stills há alguns anos no Canadá e deste reencontro nasceu o Buffalo Springfield.

Em dois anos de existência, o grupo formou – ao lado dos Byrds – uma das correntes mais influentes do rock sessentista, que eletrificou o country e o inseriu no contexto psicodélico da época.

Apesar de ter grande repercussão, o BS foi logo esfacelado devido às mudanças de membros e às rusgas constantes entre Young e Stills pela voz de comando.

Com o fim do grupo, Stills foi se agregar a David Crosby e ao inglês Graham Nash (egressos dos Byrds e dos Hollies, respectivamente) e – com a futura inclusão de Neil – formariam o supergrupo Crosby, Stills, Nash & Young, na virada dos anos 60/70.


Porém, entre essas duas experiências de sucesso fulminante, Young iniciara carreira-solo gravando um álbum com seu nome e a ajuda de amigos como os produtores David Briggs, Jack Nietzsche e o guitarrista Ry Cooder.

Mas um encontro com um grupo chamado The Rockets – cujo núcleo era composto pelo guitarrista Danny Whitten, o baixista Billy Talbot e o baterista Ralph Molina – definiu seu passo seguinte.

Young tomara contato com a banda há alguns anos (por meio da namorada, a cantora folk Robin Lane), mas os compromissos com o Buffalo Springfield impediram-no de tocar com eles.

Ao rever o grupo, Neil rebatizou-o como Crazy Horses e passaram a ensaiar juntos.

Logo, a trupe estava afiada para gravar (em apenas duas semanas) o álbum “Everybodys Knows This Is Nowhere”, feito praticamente ao vivo em estúdio.

Desde a faixa de abertura (o hit “Cinnamon Girl”), o disco mostrava uma união absolutamente instintiva entre o folk rock sem firulas do grupo e Neil se alternando entre os vocais e os delírios guitarrísticos.

O ápice disso surgia em “Down By The River” e “Cowgirl In The Sand” (ambas com mais de nove minutos), em que os longos solos eram a extensão musical dos versos apaixonados de Young.

“Round And Round (It Won’t Be Long)” e “Running Dry (Requiem For The Rockets)” também não deixavam por menos: a primeira era um lírico tema acústico gravado apenas por Young, Whitten e Robin Lane, enquanto a outra contrapunha os vocais angustiados de Neil ao violino do ex-The Rockets, Bobby Notkoff.

A sonoridade crua da faixa-título e de “The Losing End (When You’re On)” completavam este registro antológico, acrescentando-lhe a pitada necessária de despojamento.


Young continuaria a forjar outras obras-primas pelas décadas seguintes, na maioria escorada pelo Crazy Horse.

Poderia se listar o aterrador “Tonight’s The Night” (75) – dedicado a Danny Whitten e Bruce Berry (roadie do CSN&Y), mortos por overdose em 72 e 73, respectivamente – ou o hard country rock de “Zuma” (também de 75, já com Frank Sampedro na segunda guitarra).

Ou mesmo a dobradinha “Rust Never Sleeps” / “Live Rust” (ambos de 79), com canções como “My, My, Hey, Hey (Out Of The Blue)” e “Powderfinger”, primeiro nas versões de estúdio e depois ao vivo.

Uma interação que voltou a surpreender nas trovoadas retumbantes de “Freedom” (89), de “Ragged Glory” (90) e do ao vivo “Weld” (91).

Depois das tormentas, Young retomou outra antiga colaboração com os Stray Gators em “Harvest Moon” (92), um álbum límpido e eminentemente acústico inspirado em “Harvest” (72), seu disco de maior sucesso.

Afinal, enquanto a maioria de seus colegas de geração resignaram-se em viver de louros passados ou se acomodaram na auto-indulgência, a chama do rock’n’roll permanecia viva em Young.

Mesmo depois de tantas turnês, discos e sucesso, nada impede que Neil Young, aos 56 anos, acorde às vezes com o pé esquerdo.

Para encontrá-lo, basta seguir até onde a vista alcança.

Ali está ele, sentado sozinho num banco de parque no coração da Filadélfia, obscuro, do jeito que mais gosta.

Ele fala um pouco sobre o fascínio da estrada (o típico “Sinto falta da minha família, mas...”) e então dá de ombros, como quem faz uma concessão, não como quem se desculpa.

Fala do seu CD de estúdio, “Silver And Gold” (fazia quatro anos que não gravava), lançado em 2000, e depois conversa sobre a caixa com oito CDs que cobre desde o período em que era desconhecido, em meados dos anos 60, até 1972, quando chegou ao primeiro lugar da Billboard.

Também fala de suas turnês, uma, sozinho, e outra com três velhos amigos que, há 30 anos, formavam a banda mais sensacional da América: Crosby, Still, Nash & Young.

Parece que o tempo conseguiu finalmente fazer dele uma celebridade. Será?


Antigamente, ele compunha músicas com títulos como “Journey Through The Past” e sempre conseguiu passar a impressão de alguém que foge do seu lugar na história da música como se fosse um túmulo.

A caminho do hotel, onde o ônibus está estacionado, um fã pede um autógrafo, mas Neil Young se recusa: “Eu não dou autógrafo”, diz – e segue adiante sem alterar o passo.

Antes de entrar no seu ônibus, o Pocahontas, todo mundo dizia que aquele era um santuário imaculado.

Ben, de 21 anos, filho de Neil Young, sofre de paralisia cerebral.

O Pocahontas tem um compartimento projetado para ele, de onde observa a estrada em sua cadeira de rodas.

O cantor esparrama-se em uma cama enorme atrás desse compartimento.

“Eu tocava em um clube em Fort Williams, cantávamos uma música chamada ‘Farmer John’, e já perto do fim começamos a fazer uma jam session...”

Mas isso faz muito tempo, no outono de 1964, e a banda era a Squires.

Foi no Canadá, onde Young foi criado na cidade de Omemee, que, aos três anos, caiu num lago e quase se afogou.

E antes de fazer parte de uma banda da Motown com Rick James e de ir para Los Angeles à procura de Stephen Stills, a quem só encontrou no último minuto em um engarrafamento na Sunset Strip.

Depois, eles formaram a Buffalo Springfield.

Isso também foi antes que “After The Gold Rush” e “Harvest” o colocassem no mapa musical do início dos anos 70 e dos 28 discos que o conservariam sempre em evidência.

Isso, como já dissemos, foi há muito tempo, antes da dor cruciante no disco intervertebral em 1971 e da epilepsia, que ainda o assombra no palco.


Tudo aconteceu antes do período revolucionário dos fins dos anos 70, quando um ídolo do rock depois do outro caía diante da guilhotina da relevância cultural.

Neil Young, porém, foi um dos artistas oriundos dos anos 60 que a revolução não apenas poupou, como também acolheu.

Isto foi antes também da estúpida ação que moveu contra ele, nos anos 80, o manda-chuva de sua gravadora, David Geffen, acusando-o de não fazer discos dignos do verdadeiro Neil Young.

E antes dos anos 90, quando Kurt Cobain o citou no bilhete que deixou ao se suicidar.

Foi antes ainda de se tornar o homem que o tempo esqueceu do mundo do rock, compondo músicas a um só tempo primordiais e futurísticas, inocentes e surreais, tradicionais e revolucionárias e antes que se tornasse, com seu timbre característico e sua guitarra desgastada pelas tempestades do Mojave, um homem-vórtice para o folk, o country, o blues, a psicodelia, o grunge, a música eletrônica, o lamento sinfônico e o guincho metálico.

Há muito tempo, quando tocava “Farmer John” e ainda não tinha 20 anos, recorda-se Young, a música tomou um rumo desvairado.

“Nunca tinha tocado daquele jeito antes. Era como se fizéssemos aquela canção explodir. Tocávamos a música sem a música, mostrando realmente do que se tratava a canção”.

Naquele momento, nascia sua identidade musical.

Se o rock sempre foi impelido por dois impulsos, um utópico e o outro anárquico, a maior parte de seus intérpretes deixara-se influenciar pelos dois: Chuck Berry, Elvis Presley, John Lennon, Bob Dylan, Jimi Hendrix, Neil Young.

São os discos do Neil utópico que as pessoas compram aos montes.

Mas em canções como a sônica “I’m The Ocean” ou a brilhante “Powderfinger” é o Neil anárquico que chega aos brados ao espírito da época e o modifica.

O conflito entre utopia e anarquia deu origem à ambigüidade moral e à complexidade.

Em 1970, quando compôs “Ohio”, logo após o assassinato de quatro estudantes pela guarda da Universidade Estadual de Kent, sua ira se tornou mais instintiva do que política.

“Escrevo o que sinto”, reconhece Neil.

Ficou muito claro também, no decorrer dos anos, que Neil Young nunca defendeu nenhuma linha ideológica.

Uma vez ou outra, dava seu apoio a Reagan ou a Jesse Jackson.

Para o novo milênio, a dupla equivalente seria Al Gore e McCain.


A utopia da fase inicial de sua música sucumbiu à anarquia de maneira espetacular numa turnê em 1973, que foi sua resposta dura ao estrelato.

O clímax dos shows acontecia quando Young gritava “Acordem!” para o público, enquanto os anos 60 se desmoronavam à sua volta numa chuva de vítimas do vício.

Agora, na traseira do Pocahontas, ele se lembra daquela época e diz: “Fico feliz de ter sobrevivido”.

Sempre que Young “tentava escapar do sucesso fazia mais sucesso ainda, o que não apenas o confundia, como o deixava igualmente humilhado”, diz seu agente Elliot Roberts.

O astro passou, então, a narrar as mortes das pessoas à sua volta em uma série de canções contra as drogas.

Na memória coletiva de seu público fiel, talvez ele seja sempre a figura pensativa, reclinada e solitária à sombra do portão de After the Gold Rush.

Na verdade, porém, praticamente todo mundo que o conhece sabe do seu humor por vezes tolo, estranho ou malicioso.

Com mais de 1,80m de altura, seu andar tranqüilo, porém determinado, resume todas as suas contradições: zen, embora um tanto obsessivo, aberto, mas não muito, decidido a realizar suas ambições, porém contido.

A carreira de Neil Young se caracteriza por uma série de repentes e recuos que se manifestam toda vez que vai lançar um disco ou dar uma entrevista ou quando o cantor está para iniciar uma turnê.

Na opinião dos que acompanharam o cantor ao longo dos anos, Neil é o exemplo mais bem-acabado da imprevisibilidade.

Às vezes, porém, ele dá a impressão de ser menos inteiro e mais genuinamente fragmentado do que imagina a maioria das pessoas.

A “esquizofrenia” utópico-anarquista (segundo o próprio Young) de sua música revela tanto o Neil espontâneo quanto o controlador.

Os dois são reais e espiam por cima dos ombros um do outro, tentando corrigir os maus juízos recíprocos e evitando que ambos cometam algum desatino.


Não há melhor exemplo disso do que os recentes percalços do biógrafo autorizado de Young.

Depois de assinar um contrato com o cantor e com a Random House, o jornalista Jimmy McDonough passou oito anos escrevendo, pesquisando e entrevistando mais de 300 pessoas, sempre contando com a colaboração de Young.

Quando, porém, apresentou o original do livro em 98, Young se negou a aprová-la.

Ninguém próximo de Young quis comentar a razão pela qual ele matou o projeto.

McDonough está processando o cantor em US$ 1,8 milhão.

O drama que tomou conta da vida de Young em sua juventude atingiu o clímax em novembro de 1978, com o nascimento de seu segundo filho, com Pegi, e a constatação de que, como o primeiro filho do cantor, Zeke, com a atriz Carrie Snodgrass, Ben sofria também de paralisia cerebral.

O caso de Zeke é menos grave (atualmente com 28 anos, trabalha como engenheiro de som em vários projetos do pai). Ben, porém, é tetraplégico.

Neil Young contaria mais tarde que, saindo do hospital, disse: “Olhei para o céu em busca de um sinal e pensei: o que foi que fiz? Deve haver algo de errado comigo”.

A paralisia cerebral, entretanto, é algo imprevisível, nada tem a ver com genética, e sua filha, Amber, não é doente.

Como se não bastasse tudo isso, depois do nascimento de Ben, se descobriu que Pegi tinha um tumor no cérebro.

Suas chances de sobreviver na época eram de 50%.

Então, no início dos anos 80, o homem cuja obsessão por sua música o consumia totalmente, pôs de lado a carreira e passou a se dedicar à família.


O problema de saúde de Ben era tão intenso que, em 1982, quando Neil Young lançou um disco estranho intitulado “Trans”, com vocais eletrônicos distorcidos, pouca gente sabia que aquilo era fruto do esforço em se comunicar com o filho mudo pelo computador.

No restante da década, a música de Young estava muito estranha em uma série de gravações que, em retrospectiva, parecem resgatar as explorações estilísticas de uma identidade artística em revolução da qual emergiu seu melhor álbum, “Freedom”, de 1989.

Nos anos 90, ele só lançou discos importantes.

Certa tarde, na Filadélfia, depois de marcar novamente uma entrevista à qual ele novamente não compareceu, os jornalistas descobriram que Young havia ido a uma escola para crianças com paralisia cerebral.

Ele e Pegi contribuem com grandes somas para uma escola do mesmo tipo na Califórnia.

Durante as turnês, ele sempre abre espaço para que jovens portadores da doença assistam ao show.

No melhor estilo de Neil Young, sua visita se deu durante uma noite de lua cheia e teve até elevador emperrado, obrigando o cantor a ficar parado entre um andar e outro por alguns minutos.

Parado no meio do estacionamento de um shopping enquanto espera o seu ônibus abastecer, Young fala de passar mais tempo com a família.

Hoje, ele parece eternamente jovem.

No passado, Young era velho antes do tempo.

“Estou envelhecendo”, afirma ele em sua canção mais famosa, “Heart Of Gold”, composta quando tinha 24 anos.


Em Phoenix, depois de mais um show, enquanto o restante da banda festeja com os amigos nos bastidores, Young senta-se sozinho em uma sala escura e silenciosa com algumas poucas velas acesas e massageia as costas com um pouco de gelo.

Ele parece ter realmente 56 anos.

Pouco antes, no palco, entregara-se completamente a um “Down By The River” insano, assim como fizera com “Rockin’ In The Free World”, na Filadélfia.

O homem que o tempo esqueceu transformava o tempo em farrapos. Mas agora, na penumbra, Young é o homem do qual o tempo se lembrou, especialmente de suas costas.

Entretanto, basta ouvir a primeira música do disco ao vivo “Road Rock VI – Friends & Relatives”, a insana “Cowgirl In The Sand”, de 18 minutos de duração, com aquela guitarra que parece meio engasgada e a voz fanha, parecendo sair de um trem em movimento, e tudo fica esclarecido.

Sim, esse homem é a lenda do Rock in Rio. É um dos poucos que ainda emprestam mistério e heroísmo ao rock’n’roll.

O disco em questão é uma pequena odisséia familiar do canadense, que canta acompanhado da irmã e da mulher.

Simultaneamente, como numa espécie de catequese às pressas, a gravadora repôs no mercado estoques esgotados dos discos mais recentes de Neil Young, que são “Harvest Moon”, “Unplugged”, “Comes A Time”, “Sleeps With Angels” e “Decade”.


Como o nome entrega, “Road Rock VI – Friends & Relatives” (2000) é o sexto álbum ao vivo de Young.

Além de sua banda, Young tem os reforços de Chrissie Hynde, dos Pretenders, na faixa “All Along The Watchtower”, de Bob Dylan.

Young também incluiu no disco a faixa “Fool For Your Love”, que ele sempre cantou nos seus shows durante mais de uma década, mas nunca tinha gravado.

Sua banda inclui o guitarista Ben Keith, o pianista Spooner Oldham, o baixista Donald “Duck” Dunn e o baterista Jim Keltner.

A irmã do cantor, Astrid, e sua mulher, Pegi Young, ajudam nos vocais.

O filho, Zeke, cuidou do áudio da gravação. Um disco em família.

O disco foi gravado durante um show de Neil Young no Red Rocks Amphitheater, no Colorado.

Traz clássicos de todos os tempos do cantor, como “Motorcycle Mama”, um country rock da mais pura escola Neil Young, com os vocais femininos esgarçados e a batida subversiva, implodindo qualquer atmosfera caipira da canção.

Ele faz um mélange de várias coisas, das antigas às recentes.

A acústica “Peace Of Mind”, por exemplo, é de “Comes A Time”, de 1978.


Neil Young é um dos maiores compositores do rock e basta ouvir apenas uma das faixas do CD para saber o motivo.

“Tonight’s The Night”, a sétima faixa, é uma tocante elegia a um amigo, morto por overdose de drogas.

Piano dedilhado com lassidão, um canto ritualístico, o pedal steel lancinante e um coro fora de tempo criam o clima adequado.

Nos últimos quatro anos, desde que fez a trilha sonora para o filme “Dead Man”, de Jim Jarmusch, Neil surpreendeu sempre e muito mais ao vivo.

“Dead Man” foi um momento único na carreira de Young.

Inspirado no poema do poeta inglês William Blake, ele compôs 13 faixas sem nome, impulsionadas basicamente pela guitarra, com algum órgão e piano atravessando os versos.

Filho de Edna “Rassy” Young, uma apresentadora de “quiz show” da TV canadense, e Scott Young, um cronista esportivo do jornal Toronto Sun, Neil mostrou desde muito cedo que seu negócio era negar o show business no qual viveu cercado no início.

Mais interessado em tocar seu banjo e a guitarra, largou a escola e foi para a estrada, de onde nunca mais saiu.

O álbum “Road Rock VI – Friends & Relatives” é mais um belo registro dessa aventura sem fim.