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sexta-feira, junho 03, 2011

O som da punkadaria


Pepe Escobar

Os ícones do rock anos 50 se auto imolaram. Eddie Cochrane em um acidente de carro. Elvis sanitizado pelo Exército. Chuck Berry na cadeia. Jerry Lee Lewis aniquilado por escândalos. Buddy Holly morto em desastre aéreo. Little Richard evangelizado.

Os ícones do rock anos 60 eram czares obscenamente ricos. Parodiavam glórias passadas. Padeciam de pretensão de “artistas”. Muita farmacologia. Muito trânsito entre os ricos e os entendiados. Pouco rock.

Crise econômica. Veio o glitter. Bowie, Marc Bolan, Gary Glitter, Roxy Music. Uma estética temporariamente agradável. Depois, o peso renovado da crise. Desemprego, subúrbios desolados, estudantes revoltados.

Na Inglaterra cinzenta, pré-apocalíptica, surgia uma nova geração. Músicos, cantores, fãs, arruaceiros, parasitas. Todo mundo querendo uma anarquia. Não acontecia absolutamente nada.

Era uma garotada proletária. Cabelo curto, roupa seca e em cima. Pouco a fazer, a não ser olhar feio. Uma massa de energia bruta reprimida. Só faltava um anticristo messiânico para mudar este poder latente em um rock destruidor.

No meio da década, já se espalhavam as raízes das bandas punk. A London SS, com Mick Jones (depois Clash), Brian James (depois Damned) e Tony James (depois Generation X). Joe Strummer, o Lula do punk, com os 101´ers. Dave Vanian (depois Damned) era coveiro. Hugh Cronwell (depois Stranglers) dava ácido para seus alunos na Suécia.


Três morcegos suburbanos adoravam o Who, tocavam músicas dos anos 60 e se autodenominavam The Jam. Na terra desolada da adolescência, vagavam a colorida Poly Styrene (depois X-Ray Spex), Billy Idol (depois Generation X e super-ídolo), Howard Devoto (depois Magazine). Seriam os líderes das bandas punk/rock da primeira onda, pós-Sex Pistols.

Já corria solta a renascença do rock. Fontes principais: Iggy Pop, o apocalíptico psicótico; MC5, os hippies radicais; David Bowie, o camaleão enigmático; a tradição Mod do Who e Small Faces em começo de carreira. E os New York Dolls: uma bomba de arrogância e tendências autodestrutivas. A primeira banda dos anos 70 a sugerir que uma nova geração estava começando a transformar estilo em revolta. Acabaram como James Dean: um final trágico, inevitável e perfeito.

Malcolm McLaren estava por trás de tudo. Um dos maiores sismógrafos da cultura jovem em todos os tempos. Como ele inventou os Sex Pistols todo mundo sabe. Johnny Rotten/ Lydon era o que faltava: a personificação definitiva da atitude punk, envolta em hostilidade cínica.

Desde seu primeiro show, em novembro de 75 um escândalo, os Sex Pistols cristalizaram uma frustração reprimida generalizada. Sozinhos, instigaram um movimento, dando-lhe forma, estilo e direção. Rotten, com sua cabeça de morte, era o Ícone.

Estava provado. Qualquer um podia tocar rock´n´roll puro e frenético. Bastava arrumar algum equipamento e aprender alguns acordes. E veio o nome: punk. A partir das garage bands americanas dos anos 60, produtoras de sons caseiros, rápidos, tolos e violentos.


Estourou a subcultura: imprensa alternativa, moda, alusões indiscriminadas a sadomasoquismo, fascismo e transexualismo. Tudo muito bem calculado pelo contingente da moda: os primeiros discípulos dos Pistols. Entre eles, Siouxsie, ex-Susan Janet, futura Dama Negra, Sid Vicious, futuro Pistols e autodesignado mártir de uma era.

O rock sempre flertou com a violência como metáfora. Rotten destruiu a pose e a substituiu pela realidade. A raiva era a mais importante arma dos Pistols. Seu som era propositadamente demencial, destrutivo e depressivo. Contra o monolito da indústria da música e o horror deste sórdido planeta. Tocaram para socialites entupidos de tédio e pó, e para armadas de garotos barras pesadas em clubecos precários. Já no final de 76, bombardeavam com napalm a psique européia.

As principais bandas logo definiram suas imagens individuais. Os Pistols como depravados mendigos anarquistas. O Damned como palhaços do horror pastelão. O Clash como guerrilheiros urbanos e poetas políticos infiltrados na mídia. O Jam como herdeiro do Who. Os Stranglers como intelectuais cínicos (e odiados pelos punks por sua “herança hippie”). Os Vibrators como personagens de história em quadrinhos.

Chegou a hora de passar para o vinil. Começaram a estourar os pequenos selos independentes. Mas as multis estavam de olho. O punk era viável comercialmente. Logo foi absorvido pela estrutura corporativa capitalista. Em novembro de 76 os Pistols saem à rua com “Anarchy In The U .K.”. O enraivecido tema da juventude do mundo moderno, cru, clássico, exalando um niilismo furioso, empurrando a perene pos-sessão demoníaca do rock para extremos impensáveis.

Depois, a queda, lenta, inexorável. Escândalos, pancadarias, navalhadas. Tumulto generalizado. Onde quer que os Buzzcocks (com o romântico desiludido Pete Shelley na guitarra), Clash, X-Ray Spex ou os Heartbreakers do ex-Doll Johnny Thunders tocavam, era o caos. O Roxy Club, em Londres, meca punk, pegava fogo (até os donos do clube acabaram com o negócio em abril de 77).

As multis começaram a atacar pesado. A CBS pegou o Clash e os Vibrators. A United Artists, os Stranglers e os Buzzcocks. A Polydor, o Jam. O Damned continuou na Stiff, pequeno selo independente que logo lançou duas bombas: Elvis Costello e Ian Dury e seus afunkalhadíssimos Blockheads. A Stiff tinha um contrato com a Island, que lhe garantia farta distribuição na Europa.


77, ano mágico e caótico, foi o estouro generalizado. Este que vos fala esteve na Inglaterra boa parte do ano e acompanhou a voragem do processo. Uma bomba atrás da outra. Em janeiro, saiu o Low, de Bowie, ditando os caminhos para a futura cópula música/ eletrônica. Patti Smith, a papisa punk/simbolista americana, quebra uma vértebra em um show. Em março, Iggy e Bowie tocam juntos ao vivo. Sid Vicious entra arrasando nos Pistols, no lugar de Glen Matlock (esse foi tocar depois com Iggy). O Clash lança seu antológico compacto “White Riot”.

Em abril, o Damned faz o primeiro show punk inglês nos EUA. Os Stranglers lançam seu primeiro LP, logo convertido em hino da moçada cavernosa. Em maio, os Sex Pistols assinam com a Virgin, depois do pau com a EMI. Em junho, o Jam briga com o Clash. Os Pistols tocam em um barco no meio do rio Tâmisa, sai o maior cacete e Malcolm McLaren é um dos presos. Em quase todo show punk, ou na rua, sai briga. Todos os músicos, incluindo Bob Geldof nos primeiros flertes do Boomtown Rats com a pop music, e Gaye Advert, a bela morena baixista dos Adverts, levam porrada ou navalhada.

Em agosto, morre Elvis, aos 42. Em setembro, Marc Bolan, um deus na Inglaterra, aos 29. O Clash solta Complete Control, co-produzido pelo bruxo do reggae Lee Perry: O pau come solto e está acabando uma era.

Os selos gigantes, as grandes salas de show, a espetacularização através da mídia especialmente da TV e toda a máquina da indústria da música absorveram e trituraram o punk. Virou moda. Passageira. Sem mais possibilidade de bombardear o sistema. É a mesma história de sempre. A indústria da música manteve a ilusão de rebeldia no punk por algum tempo. Usou as mesmas e velhas cenouras: dinheiro, sexo, drogas e fama. Extraiu os dentes podres do punk e o converteu em mais um meio de produção de grana. “Anarquia”, pediam os Pistols. “Rebelião”, pediam os Clash. Os Stranglers, no seu segundo LP, cínicos e sabendo a época em que viviam, limitaram-se a constatar: “Chega de heróis”.

Mas persistiram e ainda persistem grandes sons. As melhores bandas continuaram fazendo bons discos alguns até mesmo excepcionais. Quem não os conhece, hoje, deve escutá-los correndo. Quem conhece deve refazer a viagem. Entram aí todas as podres pérolas da primeira fase: Pistols (com a devastação de “Holydays in the Sun” ou “No Feelings”), os dois primeiros LPs do Damned, o primeiro do Clash, o Jam em sua fase ultra Who, os dois primeiros Stranglers.


E os formidáveis Buzzcocks. Seu segundo LP, já de 78 (Another Music In A Diferent Kitchen), é antológico. Eles pegam um som light metal, de guitarra distorcida, usam com extrema habilidade para construir canções pop, secas observações sobre a vida e o amor. “Fiction Romance”, a primeira lado A, vai na veia: um riff pesado e discordante por trás do qual articula-se o drama do romântico desiludido tentando enfrentar a dura realidade.

Dos destroços punk, em 78, surgiram históricas resplandecências. Como a Tonic for the Troops, o segundo LP dos Boomtown Rats, onde empregam várias formas rock, reggae e Bob Geldof manda pau nas letras. Real Life, do Magazine de Howard Devoto (que antes fazia dupla infernal com ShelIey nos Buzzcocks), é uma hóstia sagrada. Dá vários passos além do conglomerado dos três acordes com som de serra elétrica. E traz a memorável “Shot By Both Sides" (“estou chocado pelo que corre no coração da malta”), com seu chorus no limite do desespero elétrico.


E com as melhores bandas da segunda fase, muitas depois batizadas de new wave pela mídia internacional, temos a herança platinada do punk: os Adverts com um LPzinho interessante, Crossing The Red Seas; os esgares alucinados do Chelsea; as aberrações de Slaughter and the Dogs; a no music das Slits; as pop songs suburbanas do X-Ray Spex; as sofisticações do Wire e do Sham 69; a ácida crítica ao establishment pelo Alternative TV (com Mark Smith, a alma do FalI); a garra do Generation X (BilIy Idol dando um show na sua linha “durão tesudo” em “The Untouchables”); FalI da primeira fase, onde Mark Smith fica falando pelos cotovelos enquanto a banda vai levando, monocórdia; o quase heavy metal do 999; e as extremas sofisticações do XTC e do Squeeze.

Toda esta torrente sonora é prima contemporânea da linha decadente estetizada americana, com Patti Smith, os inacreditáveis Tubes, os herdeiros de garage bands Ramones, os neo simbolistas Richard HelI e Tom Verlaine (a imprescindível cabeça do Television), Mink de Ville, e os Heartbreakers de Johnny Thunders. Em tudo isso, a ser ouvido e reouvido com extremo prazer, está esparso o sêmen punk, tanto na raiz quanto em espírito.

Como toda vanguarda suicida, o punk foi uma bomba de efeito limitado. Um séquito de milionários do rock ganhou a companhia de outro (Johnny Rotten, hoje, é um dândi; Clash foi deserdado pela audiência mais radical). Mas mexeu com energia e a psique da garotada a nível planetário. Claro que política socialmente não conseguiu mudar muita coisa. Não há brechas no Grande Ovo Corporativo Multinacional. Tudo entra na dança do vil metal. Não tem nada não. Foi um movimento do cacete. Os sons continuam aí para provar.


(publicado na revista Bizz, em novembro de 1985)

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