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segunda-feira, julho 11, 2011

Aula 10 do Curso Intensivo de Rock: Blues


Durante a colonização americana chocaram-se duas culturas musicais distintas: a tradição da música clássica européia, cultivada pela maioria wasp (“white, anglo-saxonic, protestant”, ou seja, “branca, anglo-saxônica e protestante”) e a música primitivo-tribal dos escravos africanos, usados como mão-de-obra barata nas fazendas, senzalas e plantações de algodão existentes no delta do Mississipi.

Seqüestrados da África e vivendo num território completamente hostil, os escravos negros tentaram não se diluir na cultura musical branca cultivando seus próprios sons ou inventando novos códigos sonoros, de difícil assimilação pelos brancos.

Foi dessa forçação de barra, da procura consciente de uma inadequação à harmonia européia que nasceram os cânticos negros religiosos (“spirituals” e “gospels”), as canções de trabalho (“work-songs”) e o legítimo samba de crioulo doido batizado como blues.

O blues caracterizava-se, especificamente, por ser um canto eivado de tristeza, revolta e aceitação, uma mistura doce-amarga entre o desejo de voltar ao continente negro e a impossibilidade real de concretizar esse sonho, uma espécie de ceticismo cínico que penetrava na face florida da cultura branca como uma faca Ginsu bem amolada.

Eram chocolates negros servidos caprichosamente aos senhores das fazendas, mas estavam recheados de estricnina e ácido sulfúrico.

A marca do blues, a sua célula básica, é a “blue note”, que forma a tonalidade triste, melancólica da música, como se fosse uma espécie de resistência cultural do negro africano que, apesar de olhar o mundo branco sem ilusões, se sente incapaz de aderir completamente aos mil tons oriundos do continente europeu.

Algumas pessoas chamaram estas notas – chocantes para os ouvidos da classe média branca – de rebeldes.

No jargão dos músicos, elas eram “dirty notes” (“notas sujas”) e sua função era exatamente essa: agredir os ouvidos brancos como uma oitite terminal.

Talvez seja por isso que em Moscou, Amsterdam ou Manaus, todo mundo reconhece um blues depois de poucos acordes.

Afinal, aquele som traduz algo que todo mundo já sentiu: dor.


Em uma entrevista para a revista Rolling Stone, o mestre B.B. King tentou explicar com suas palavras o sentimento que une os milhões de amantes de sua música.

“As pessoas vivem me dizendo: ‘Eu briguei com a minha garota e agora só escuto as suas músicas.’ Isso não é exatamente lisonjeiro, mas eu não fico surpreso com o fato das pessoas procurarem a dor na minha música. Assim é o blues”, disse o guitarrista.

O primeiro registro escrito do termo “blues” data de 14 de dezembro de 1862.

Charlotte Forten, uma jovem professora negra nascida livre no norte dos Estados Unidos que alfabetizava os escravos da Carolina do Sul, registrou seus sentimentos num diário depois de assistir a uma missa na comunidade negra: “Voltei da igreja com o blues. Me joguei em minha cama e pela primeira vez desde que cheguei aqui, me senti muito triste e miserável.”

Talvez não haja melhor tradução para o sentimento expresso pelos lamentos dos escravos, que anos depois transformariam-se num gênero musical.

O trecho citado anteriormente foi extraído de um livro escrito pela própria professora, “A Free Negro In The Slave Era” (“Uma Negra Livre Na Era dos Escravos”).

O blues nasceu para dar voz aos escravos do sul dos Estados Unidos.


A partir da década de 1860, os spirituals – canções religiosas entoadas pelos negros africanos desde sua chegada à América – sofreram uma mutação fundamental.

Além de apelar para Deus, os escravos começaram a curar suas dores de amor através da música.

A transgressão não estava somente na conotação amorosa e sexual das letras do blues.

No formato musical, o estilo também marcou uma ruptura.

Fugindo da complexidade do jazz e da rigidez dos eruditos, o blues nasceu como uma música crua.

Em sua grande maioria as canções têm apenas três acordes, construídos segundo a famosa escala pentatônica africana, uma seqüência básica de apenas cinco notas musicais.

Durante o século 19, o blues era uma tradição oral passada nos campos de geração para geração.

Enquanto os negros soltavam suas emoções, os brancos viam o lado prático da coisa.

Para os fazendeiros, as work-songs (“canções de trabalho”) ajudavam a imprimir um ritmo ao trabalho no campo e deixavam os escravos mais alegres.

Ilegal desde 1808, o contrabando de escravos africanos para o sul dos Estados Unidos só iria cessar com a Guerra Civil americana, ou Guerra da Secessão, em 1865.

Com a emancipação dos escravos, os negros passaram a ser trabalhadores rurais assalariados.

E as work-songs deram lugar ao canto solitário de um homem trabalhando a terra.


Quando os primeiros berros cortaram a noite americana, eram manifestações tão pessoais que identificavam imediatamente o indivíduo que os emitia.

“Aí vem o Sam”, comentava a namorada ou o amigo. “Will Jackson está chegando”, ou ainda “Acabo de ouvir Archie dobrando a esquina”.

Os blues também eram marca de individualidade: havia blues de Blind Lemon, blues de Willie Johnson, e assim por diante.

Já nos primeiros berros se encontrava o material idiomático que caracterizaria a evolução do blues: o tempo lento, a preferência pela terça bemolizada (a chamada “blue note”) e o sentimento melancólico.

O blues foi se consolidando a medida que os gritos iam se tornando mais complexos: gritos acompanhados pela guitarra, pela gaita-de-boca ou por outros instrumentos pobres e rudimentares, inclusive pelo ritmo marcado na batida do pé, típico das zonas rurais.

Nas cidades iam-se introduzindo nos acompanhamentos do blues os instrumentos europeus, mais sofisticados e cosmopolitas: cornetas, trombones, clarinetas e pianos.

Inicialmente uma nota musical solta no espaço, o blues, seguindo o ritmo natural da fala, acabou se fixando em doze compassos, divididos em três partes iguais, com um diferente acorde para cada parte.

As próprias palavras marcam esta divisão: “I’m going down and lay my head on the railroad track / I’m going down and lay my head on the railroad track / When the train come along, I’m gonna snatch it black” (“Eu estou fodido e vou colocar minha cabeça no trilho da estrada de ferro / Eu estou fodido e vou colocar minha cabeça no trilho da estrada de ferro / Quando o trem chegar, eu vou me arrebentar e mais um negro vai pro inferno”, numa tradução aproximada)

Ao fim de cada frase sobra um tempo livre, que é geralmente preenchido por uma resposta instrumental.

Esse esquema de chamada-e-resposta sobrevive no rock, no diálogo entre voz e guitarra.

Marshal Stearns, crítico e pesquisador do jazz, analisou essa estrutura peculiar: “O fato fora do comum nesta forma de blues é que consiste de três partes, em vez de duas ou quatro. É uma forma de estrofe bastante rara na literatura inglesa e pode ter-se originado com o negro americano. Assim como a estrofe da balada, ela fornece um bom veículo para uma narrativa de qualquer tamanho. Ao mesmo tempo é mais dramática: os dois primeiros versos criam a atmosfera de maneira clara, pela repetição, e o terceiro desfere o golpe. A estrofe do blues é comunicação em forma de cápsula, feita sob medida para a apresentação ao vivo, em meio a um público participante”.

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