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sexta-feira, agosto 12, 2011

O cobra criada do Bariri


Em pé: Soraya, Veramilton Almeida, Henrique Medeiros e Walter Lobato. Sentados: Pedrinho Ribeiro, Carlos Paulain, Aldisio Filgueiras, eu, Edmilson Pai da Mata, Suhelen e Zé Prego

Junho de 2002. Por volta das 14h de uma quinta-feira, 27, eu e o músico Pedrinho Ribeiro embarcamos em um barco fretado, no porto da Manaus Moderna, com a intenção de assistir ao Festival Folclórico de Parintins, que começaria no dia seguinte.

Passamos a tarde enfurnados dentro das redes, no barco completamente lotado.

Por volta das 19h, os passageiros do barco começaram a desatar as redes e abandonar a embarcação.

Pedrinho Ribeiro foi ver o que estava acontecendo.

O agenciador de passagens, reponsável pelo “fretamento”, havia sumido com a grana e o dono do barco decidiu que não ia para Parintins de jeito nenhum.

Por volta das 21h, estávamos apenas eu e Pedrinho Ribeiro no barco, como duas almas penadas.

Um moleque apareceu com uma caixa de isopor vendendo cervejas.

Pedi uma pra mim e outra para o músico e lhe estendi uma nota de R$ 50.

O moleque disse que ia trocar o dinheiro.

Deixou, em consignação, sua pequena caixa de isopor.

Não voltou mais.

Dentro do pequeno isopor, apenas quatro latinhas de cerveja, já mornas, porque o gelo havia derretido.

Quebrei a caixinha de isopor na base da patada.

Aquilo era um claro sinal dos deuses de que a gente devia desisitir da viagem.

Mas, foda-se, sou taurino, teimoso e brasileiro.

Brasileiro não desiste nunca.

Dormimos no barco fantasma, agarrados com nossas bagagens, para evitar um prejuízo ainda maior.


Na manhã seguinte, fizemos um rápido café da manhã no mercado Adolpho Lisboa e depois fomos procurar um barco retardatário com destino a Parintins.

Encontramos o magnífico “Comandante Freitas”.

Comprei as duas passagens, embarcamos, atamos nossas redes e fomos para o convés do barco apreciar a paisagem e fumar.

Por volta das 11h (o barco ia sair às 12h), a gente ainda estava ali, conversando sobre a presepada da noite anterior, quando ouço uns gritos de alguém me chamando da amurada do cais.

Olho para a direção do chamado e me deparo com a figura extraordinária do engenheiro Mário Gilson, professor de Matemática do CEFET, meu amigo de adolescência e tremendo gozador.

– Você está indo pra onde, poeta? – ele dispara.

– Para o festival de Parintins! – respondo.

– Ainda tem vaga aí nesse barco? – insiste.

– Vaga, acho que tem. O que não tem é rede! – ironizei.

Mário Gilson se despediu de mim e foi embora.

Quinze minutos depois, ele estava entrando no barco com uma rede debaixo do braço, comprada nas imediações do mercado Adolpho Lisboa.

Achei aquilo meio esquisito.

Apresentei ele para o Pedrinho Ribeiro, falei que o sacana era casado com uma das irmãs do Romito, outro homeboy da Cachoeirinha e um dos fundadores do famoso bloco “Aluga-se Moças”, expliquei que o Mário Gilson era meu amigo há mais de 30 anos, um excelente jogador de futebol, piadista incorrigível, louco de pedra, aquelas coisas.


Rindo o tempo todo, Mário Gilson começou a armar sua “baladeira” ao lado da nossa, enquanto explicava a situação:

– Poeta, eu vim aqui no mercadão fazer algumas compras com o meu filho, mas resolvi ir com vocês. Faz tempo que não ando de barco. Dei a chave do carro pro moleque levar pra casa, junto com as compras, e pedi pra ele dar a boa notícia para a dona Encrenca, que vai ficar uma fera. Já desliguei até o celular. Estou indo só com a roupa do corpo, mas em Parintins eu compro o que for preciso. Vamos tomar uma cerveja?

Nós três subimos para a área de lazer do barco, nos instalamos perto do bar e começamos a encher a cara.

As gargalhadas que eu e Pedrinho Ribeiro davámos diante das presepadas contadas pelo Mário Gilson despertaram a atenção de um sujeito que estava bebendo sozinho em uma das mesas.

Meio sem jeito, ele se aproximou de nós três e abriu o coração:

– Desculpe o incômodo, mas é que estou indo pela primeira vez a Parintins e não conheço ninguém, nem aqui no barco nem lá na cidade. Eu posso sentar aqui com vocês e participar da conversa? As cervejas vão ser por minha conta!

– Meu irmão, pagando as cervejas, você pode até se sentar no meu colo e me beijar na boca! – disparou Mário Gilson.

Com dez minutos de conversa, o sujeito já era nosso amigo de infância.

Ele se chamava Paulo Emílio e era auditor fiscal da Secretaria de Fazenda (Sefaz).


Nascido e criado no Bariri, uma favela de palafitas imprensada entre o bairro da Matinha e o igarapé de São Raimundo e considerado um dos lugares mais barra-pesadas de Manaus, Paulo Emílio havia se separado da mulher há pouco tempo e estava indo a Parintins para esfriar a cabeça.

Ele tinha comprado uma camarote para quatro pessoas, mas suas três convidadas haviam dado o “bolo”, na última hora.

Estava sem eira nem beira, quem nem um barco sem quilha.

– Meu brother, você vai conhecer tantas cunhans porangas naquela terra, que é bem capaz de se casar de novo! – avisou Mário Gilson. “Eu nunca vi uma cidade pra ter tanta mulher bonita como Parintins!”

Pedrinho Ribeiro explicou ao Paulo Emílio como funcionava o esquema do festival:

– O portão da galera abre às 16h porque os torcedores precisam treinar a sua participação no evento. Como a entrada é de graça, aquilo vira a maior muvuca. Se você for Garantido, não pode usar nada azul, se não será trucidado pelos torcedores do seu boi. Se for Caprichoso, idem. Nada de vermelho, nem na cueca. Os camarotes são só para convidados e você recebe um crachá de acesso, que dá direito a circular por todo canto. As cadeiras numeradas podem ser adquiridas na frente do bumbódromo, na mão de cambistas, mas é preciso ter cuidado com os ingressos falsificados!

– Quanto custa uma cadeira numerada? – questionou Paulo Emílio.

– No ano passado, custou 200 pilas! – avisou o músico. “Esse ano, deve estar entre 200 e 250 pilas!”

– Porra, é caro pra caralho! – resmungou Paulo Emílio. “Eu acho que vou ficar na galera...”


– Se você for pra lá, precisa entrar na fila antes das 14h. Aproveite para comer, beber, mijar e cagar antes de se meter lá dentro, porque o espaço da galera fica tão cheio e apertado que quem se levanta não consegue mais sentar! – explicou Pedrinho Ribeiro.

– A não ser que você goste de sentar em cadeira ocupada! – disparou Mário Gilson.

– Que é isso, mano, eu sou cobra criada do Bariri! Sou macho paca! – avisou Paulo Emílio, vermelho como um pimentão.

– Eu e o poeta somos lá da Cachoeirinha! É por isso que a gente não se mete com o pessoal da galera, porque se um daqueles putos passar a mão na nossa bunda a porrada come no centro! Se a gente tiver de entrar pra ver o espetáculo, nós vamos pros camarotes ou pras cadeira! – explicou Mário Gilson.

– E vocês vão ficar aonde, na galera ou nas cadeiras? – questionou o auditor fiscal.

– Orra, meu, a gente vai ficar mesmo é na putaria franciscana, que rola nos botecos fora do bumbódromo! – detonou Mário Gilson. “É lá que ficam as cunhans porangas! O nosso negócio é pegar muié, não é ver porra de boi bumbá!”

Paulo Emílio ficou meio cabreiro, mas não disse nada.

Paramos de beber quando o bar fechou, por volta da meia noite.

Descemos para as nossas “baladeiras” e deixamos o Paulo Emílio dormindo, de bruços, em cima da mesa.

Alguém da tripulação que depois o levasse para seu camarote.

A gente é que não ia servir de pajem para um cobra criada do Bariri.

Na manhã seguinte, iniciamos nova sessão de bebedeira por volta das 10h da manhã.

Por volta do meio-dia, Paulo Emílio deu as caras na área de lazer.

Recusou polidamente um copo de cerveja estupidamente gelada oferecido pelo Mário Gilson.

– Obrigado, mano, mas hoje eu não consigo beber. Estou com a maior ressaca da paróquia! – explicou. “Que horas o barco chega na cidade?”

– Por volta das 15h! – avisei. “Se você quer mesmo ir pra galera é melhor se arrumar logo e se concentrar para a guerra!”

Paulo Emílio voltou para o seu camarote.

O barco chegou a Parintins na hora prevista.


Como o cais estava superlotado de barcos, a solução foi o “Comandante Freitas” ficar ancorado no “Maresia”, que, por sua vez, estava ancorado no “Cidade de Nhamundá”, que por sua vez estava ancorado no “Coronel Tavares”.

Do último barco saía uma prancha pra orla da cidade, nas imediações do Bar Chapão.

Ou seja, para se alcançar a terra seria necessário atravessar por dentro dos três barcos.

Sóbrio, eu pularia de uma embarcação pra outra de olhos fechados, mas com a cabeça cheia de truaca aquilo era um convite certo para o suicídio.

Resolvi maneirar na bebida.

De camisa polo amarela, bermuda branca e tênis branco, Paulo Emílio foi lá com a gente se consultar se podia entrar daquele jeito em qualquer galera porque ele ainda não tinha escolhido um boi para torcer.

Ele só iria decidir a parada diante do bumbódromo.

Não colocamos nenhuma objeção.

Falamos apenas para ele tomar cuidado com os “punguistas” vindos de Manaus, que costumam descer em peso na cidade nessa época do ano e depois ensinamos o caminho do bumbódromo, tomando como referência o Bar Chapão.

– Eu sou cobra criada do Bariri, parente, não dou mole pra malandro não! – disparou, antes de se despedir da gente e partir, todo serelelepe, em direção a arena.

Continuamos bebendo no barco.

Por volta das 19h, resolvemos encarar a encrenca.


Fretamos um triciclo em frente ao Bar Chapão e um sujeito extremamente raquítico, condutor do veículo, quase morreu de cãibras depois de conseguir, milagrosamente, nos transportar até as imediações da Catedral.

De lá em diante, fomos a pé.

No meio do caminho, encontramos Paulo Emílio completamente transtornado, vindo da direção do bumbódromo e chorando feito uma criança.

– O que qui tá pegando, compadre? – perguntei amistosamente.

– Porra, bicho, acabou o festival pra mim! Acabou o festival pra mim! Porra, caralho, buceta! Acabou o festival pra mim! – gemia Paulo Emílio, sem segurar as lágrimas.

– Não vai me dizer que você encontrou sua ex-esposa com o ricardão no meio da galera e eles te chamaram pra brincar de boi! – espantou-se Mário Gilson, que podia perder um amigo, mas não perdia a piada.

– Foi muito pior, porra, muito pior! – lamentava-se Paulo Emílio. “Acabou o festival pra mim! Acabou o festival pra mim!”

Conseguimos levá-lo para um boteco, para entender seu drama.

Ele continuava se recusando a beber uma cerveja estupidamente gelada, mas abriu o jogo.

Em Manaus, o analista fiscal havia sacado todo o seu dinheiro (salário do mês, férias e adiantamento do décimo terceiro) porque pretendia passar três noites nababescas com suas três amigas.

Como elas fizeram “forfait”, ele resolveu viajar sozinho.

Com tanto dinheiro vivo na mão (uns R$ 30 mil), ele ficou com medo de deixar a grana no camarote do barco e ser roubado pela tripulação.

Colocou tudo numa carteira porta-cédulas, arrumou a tranqueira no bolso traseiro da bermuda e resolveu entrar na fila da galera do Garantido, “porque sou muito fã do David Assayag”, explicou.

No meio do empurra-empurra de centenas de torcedores, quando é aberto o portão, algum garoto esperto “aliviou” o bolso do distinto.

Ele só foi perceber que havia dançado, duas horas depois, quando chamou um vendedor de picolé e procurou pela carteira.

– Os cartões de crédito e o talão de cheques eu já consegui sustar, mas, porra, naquela carteira estavam todos os meus documentos! Todos, porra, todos! Eu vou levar um ano pra tirar a segunda via de todos eles! – urrava de dor, raiva e frustração. “Tinha uma foto da mamãe fazendo a primeira comunhão e que era uma espécie de talismã sagrado! Eu nunca mais vou ver aquela foto, porra, nunca mais! Acabou o festival pra mim! Acabou o festival pra mim!”

– Porra, bicho, você não disse que era cobra criada do Bariri? Como é que você caiu numa esparrela dessas? – questionava Mário Gilson, visivelmente puto. “Os moleques da Cachoeirinha entram na galera do Garantido só de sunga e saem de bermuda, camiseta, óculos espelhado, máquina fotográfica, relógio, tênis importado, bandana, cordão de ouro e o diabo a quatro. Eles roubam geral. Porra, e você, lá do Bariri, vem aqui em Parintins e me faz uma merda dessas? Ser roubado na galera do Garantido? Porra, bicho, assim você está nos desmoralizando...”

Tentando engolir o choro, Paulo Emílio se despediu da gente e foi embora, em direção ao barco, discutindo com mil seres imaginários, supostamente os reais causadores de seu infortúnio.

Telefonei para o radialista Tadeu de Souza relatando o ocorrido.

Ele colocou um anúncio na rádio Alvorada.

Como não adiantava chorar pelo leite derramado, eu, Mário Gilson e Pedrinho Ribeiro fomos para “a putaria franciscana que rola do lado de fora do bumbódromo”.


Estacionamos numa barraquinha de um vendedor de “capeta” (vodka, canela em pó, leite condensado, pó de guaraná, pó de mirantã e gelo picado) e só saímos de lá quando estávamos totalmente encapetados, cada um enrabichado com uma capetinha de quatrocentos talheres.

O calor na casa das vadias era um verdadeiro inferno.

Saímos de lá, com o dia amanhecendo.

Por volta das 11h de domingo, o Tadeu de Souza me telefonou avisando que a carteira porta-cédulas do Paulo Emílio havia sido encontrada por um moleque em um terreno baldio próximo da delegacia.

A carteira estava esperando por ele na portaria da rádio Alvorada.

Anunciamos a boa nova pro mané do Bariri e ele se mandou pra lá.

Foi a última vez que falamos com ele.


Na noite de domingo, último dia do festival, voltamos pra barraquinha de “capeta”, ficamos novamente encapetados, descolamos três diabinhas e fomos participar alegremente de uma nova estação nos infernos.

Deixamos a casa das capetinhas por volta das 3h da madrugada, depois que me lembrei que o barco ia zarpar pra Manaus assim que as luzes do bumbódromo se apagassem.

O comandante só estava esperando por nós três para levantar âncora.

Continuamos frequentando a área de lazer do barco na viagem de volta para encher a cara, mas o Paulo Emílio tomou chá de sumiço.

O Mário Gilson acredita que ele se matou de vergonha e a tripulação jogou o corpo no rio para se livrar de problemas posteriores com a polícia.

Um comentário:

Unknown disse...

boa noite amigo por acaso vossa senhoria teria alguma nota sobre o cantor Carlos Filgueiras se tiver por favor mande para o meu email :carlos.filgueiras@yahoo.com.br ficarei muito grato se conseguir me responder .