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sexta-feira, maio 25, 2012

Caxuxa Blues (3)



Do lado esquerdo da rua Waupés, no canto com a rua Barcelos, quase em frente da nossa casa, ficava o boteco da dona Zeza e, logo ao lado, o casarão da dona Raimunda, uma negra lindíssima, educadíssima, charmosíssima, boníssima, que permaneceu pura e casta ao longo de sua existência.

Ela era filha do maranhense Horácio Solimões do Nascimento (aka “Mestre Horácio”), que veio morar no Amazonas quando o também maranhense Eduardo Ribeiro se transformou em governador do estado e começou a distribuir lotes de terra para os seus conterrâneos.

Dona Raimunda possuía um sorriso encantador e foi madrinha por afinidade de quase todos os moleques da rua.

No casarão de dona Raimunda morava uma plêiade de tipos inesquecíveis.

Dona Natilde, irmã de dona Raimunda, era o oposto da irmã: enquanto dona Raimunda vivia sorrindo, dona Natilde vivia de cara fechada, sempre dando esporro em algum moleque.

Ela fazia o tipo durona, intransigente, irritadiça, mas também tinha um coração de manteiga e era prestativa toda vida.

Dona Natilde teve quatro filhos: Isabel, que depois se casou com o futuro vereador Judicael Almeida, Inês, Sebastião e Guilherme, que depois se casou com Dona Edna (aka “Chiquita”).

Irmão das duas, o bonachão Mestre Manduka era da ala dos compositores do boi Caprichoso, da Praça 14 de Janeiro, e teve seis filhos: Horácio, que jogou profissionalmente no Rio Negro – e foi um dos motivos de eu ter me transformado em rionegrino ferrenho –, Edson (aka “Timba”, hoje coronel aposentado da PM), Silnéia, Neide (aka “Augusta”), Carlinhos (músico da noite e professor universitário) e o saudoso Paulinho, que durante alguns anos jogou de meia-armador no Murrinhas do Egito.

Mestre Manduka era o sujeito mais namorador da área e foi apropriadamente batizado pelos amigos de farra de “Consolo das Viúvas”.


Ex-amo do boi Caprichoso, Agostinho Pé de Ferro era irmão de Manduka e teve três filhas: Zulmira, Jovelina e Maria.

Após sofrer um acidente, Agostinho ficou com uma das pernas mais curta do que a outra.

Para compensar a deficiência, ele usava uma bengala e uma espécie de tamanco plataforma com solado de aço, o que lhe valeu o apelido.

Quando enchia a cabeça de truaca, Agostinho caminhava pelas ruas do bairro esculhambando o governo com sua poderosa voz de tenor enquanto agitava furiosamente a bengala no ar.

A molecada ficava com o coração na mão, mas ele era um pacifista militante e nunca fez mal a ninguém.


Mestre Horácio teve mais seis filhos: Venâncio, Conceição, Osvaldo (pai do rotundo Raimundo Pinho), Cizino, Ribamar e Horacinho (pai do famoso “João do Ipiranga”), mas com esses eu só tinha contato em dias de festa, quando a casa da dona Raimunda ficava colocando gente pelo ladrão.

Nesses dias, até o famigerado Sem Sorte, um gigantesco cachorro que desconfio ter saído do cruzamento entre um leão africano e uma hiena furiosa, adquiria bons modos e ficava pachorrentamente deitado na calçada da casa apenas observando os convivas.

Na sua rotina habitual, Sem Sorte costumava estraçalhar violentamente todo cachorro que entrasse no seu raio de ação ou se aproximasse de seu harém de não sei quantas cadelas e tinha o hábito condenável de tentar enrabar as crianças da rua.

Morreu envenenado por um morador mais ajuizado, supostamente o boa-praça Nozinho.

Logo após a casa da dona Raimunda, sob os pés de uma frondosa pitombeira, que batizou o local de “Pitombão”, ficava a casa de Guilherme e dona Chiquita.

Eles eram pais dos moleques Gutemberg (aka “Gute”), Nazaré (aka “Luluzinha”), Edemberg (aka “Edinho”), Gilberto (aka “Beto”), Guilherme Filho (aka “Miminho”), Raimunda Edna e Gilmar.

O desencanado Gilberto, que era fisicamente parecidíssimo com meu irmão Simas, morreu vítima de um estúpido acidente de trânsito quando tinha pouco mais de 20 anos.

Seu pai, o gente fina Guilherme, faleceu de ataque cardíaco em meados dos anos 90.

Dona Chiquita, eternamente linda e risonha, permanece morando no local, em companhia da belíssima Raimunda Edna, que nunca quis se casar.

Foi no “Pitombão” que nasceu o bloco de sujos “Aluga-se Moças”.


Sici Pirangy e Arlindo Jorge no bloco “Aluga-se Moças”

Ao lado da casa da dona Chiquita, ficava a casa do João Leitão (mais tarde meu colega de classe na ETFA e futuro dono dos Supermercados Leitão).

Eles eram todos muito claros – incluindo os olhos – e me pareciam vindos do Paraná.

Lembro que uma das irmãs dele era da categoria especial e vivia trancafiada nos fundos da casa, supostamente para não assustar a vizinhança.

Algumas vezes, cheguei a vê-la brincando na janela da sua residência e ela não me pareceu tão assustadora assim.

Talvez porque criança não tenha mesmo preconceito.

Ao lado da casa do João Leitão, ficava a casa de dona Libânia e seu Quili, pais de Sandra (aka “Bina”), João Cambão e Toinho.


Seu Quili era um crioulo imenso, de quase dois metros, que colecionava gibis do Fantasma.

Ele possuía dezenas de caixas abarrotadas de revistas e costumava emprestar as mesmas para a molecada da rua.

Dona Libânia era branca e franzina, bem miudinha mesmo.

Educada e prestativa, dona Libânia, apesar de usar óculos, era uma costureira de mão cheia.

A mãe do seu Quili, dona Pretinha, também morava com eles.

A Bina era uma mulata sestrosa, de cabelos lisos e olhar enigmático.

João Cambão e Toinho eram exímios jogadores de futebol.

Logo depois vinha a casa da dona Zeza, mãe dos moleques Raimundo, Marcio, Leonor (aka “Lió”), Raimunda (aka “Mundica”) e Marcileudo Barros.

Não conheci o pai deles.

Dona Zeza era uma mulher muito bonita, austera, de ar quase imperial.


Lió era a mulher mais bonita e gostosa do pedaço, e deve ter rendido muitos cultos a Onan por parte dos adolescentes da rua.

Marcileudo, hoje poeta e escritor, resolveu estudar bateria na adolescência e quase expulsou metade dos moradores da rua por conta de seus ensaios tresloucados.

Raimundo e Márcio são os principais personagens do best-seller “O Boteco”, do Marcileudo Barros, atualmente na 47ª edição, relatando alguns causos acontecidos no bar mais antigo da rua, o já citado boteco da dona Zeza.

Ao lado da casa deles ficava a casa do comerciante Abel Geleiro, que possuía uma quitanda de frutas especializada em todo tipo de bananas e também vendia o famoso “gelo cristal”, daí seu apelido.


A quitanda ficava localizada na entrada do beco de acesso à Vila Mamão, na época considerada a “red zone” do bairro.

No início, seu Abel entregava as pedras de gelo pilotando uma humilde carroça movida a pangaré.

Mais tarde, comprou uma “fubequinha” que só pegava na manivela.

Finalmente, adquiriu uma pick-up seminova e, alguns anos depois, um caminhão de pequeno porte.

Sua evolução patrimonial se transformou em dito espirituoso nas rodas de dominó do bairro.

Quando um sujeito tirava quatro carroças e se queixava, um adversário dizia logo:

– O Abel Geleiro começou com uma carroça e ficou rico. Imagina você, que já começou com quatro...

O filho mais velho de seu Abel, Eduardo, se transformou em um dos melhores artesãos de vidro soprado da cidade, tendo oficina e loja de venda na Central de Artesanato Branco e Silva.

Seus trabalhos de moldagem, gravura e escultura em vários tipos de vidro são realmente primorosos.

Na juventude, Eduardo era o melhor fabricante de papagaios da área e o imbatível lutador de telecatch Verdugo, cujas lutas coreografadas com outro homeboy da área, Zé Maria, mais conhecido como o lutador Atlas, atraíam gente dos quatro cantos da cidade.

O musculoso Zé Maria, um dos filhos da dona Neca, morava na rua Barcelos, onde hoje funciona o barzinho de seu irmão Paulo.


Depois da casa do Abel Geleiro ficava a casa do Zé Zebra, cujas feições lembravam a de um guerreiro mongol  –  talvez Genghis Khan.

Ele era um passarinheiro de mão cheia e possuía dezenas de gaiolas com curiós, golas, bicos-de-lacre e canários-do-reino, que costumava pegar nas matas do Japiim.

Temperamental ao extremo, era difícil o Zé Zebra terminar uma partida de futebol na rua sem se engalfinhar com algum adversário.

Sempre que possível, eu fazia questão de jogar no time dele. Seguro morreu de velho.

Algumas casas depois da do Zé Zebra, ficava a casa do Álvaro, um excelente jogador de futebol (foi titular do famoso “Rosa Com Amor”), que teve um final trágico.


Rosa com Amor: Álvaro é o segundo agachado, da esquerda pra direita

Tenente do Exército e recém-casado, Álvaro estava participando de uma aula de instrução para uma turma de recrutas, em Porto Velho (RO), quando uma granada foi lançada, mas não explodiu.

Os recrutas tentaram se aproximar da granada para saber o que estava acontecendo, quando Álvaro percebeu que o artefato estava prestes a explodir.

Para proteger os recrutas, ele se lançou sobre a granada, recebendo toda a carga explosiva no próprio peito.

Morreu dilacerado na mesma hora.

Uma morte heroica, que abalou a população do bairro.

O meu cunhado Nelson era um de seus melhores amigos e ficou tão traumatizado que passou três meses sem sair de casa.

Depois da casa do Álvaro vinha a Vila Veiga, onde moravam Pedrinho, Paulinho, Antônio (aka “Tonho”), Luiz Cláudio (aka “Peba”), Antonio Carlos (aka “Papagaio”), Albano, Maninha e Amazonas Albuquerque, todos filhos do coronel PM Pimenta.

O engenheiro Pedro Albuquerque foi diretor do Porto de Manaus durante vários anos.


Paulinho foi prefeito de Nhamundá por três vezes e deve ser bafejado pela sorte, porque é o único amigo que tenho que escapou duas vezes de acidentes aéreos em que os bimotores se espatifaram no chão.


Tonho, que agora se chama Tony, é vereador em Parintins e ex-presidente da Câmara Municipal daquele município.

Peba, que tem a minha idade, virou despachante.

Maninha, como o próprio nome diz, continua sendo a solidariedade em pessoa.

A gente fina Amazonas se aposentou como delegada da Polícia Civil em Manaus.

Vítima de AVC quando ainda era criança, Antonio Carlos era deficiente físico, tinha uma das mãos permanentemente retorcida nas proximidades do peito e andava quase saltitando com uma perna de cada vez, o que lhe valeu o apelido de “Papagaio”.

Albano, com quem eu costumava bater longos papos no Bar do Caxuxa, era piloto de aeronaves de pequeno porte e um abatedor de lebres de mão cheia.

Ganhava qualquer mulher na conversa.

No final dos anos 80, ele sofreu um acidente fatal quando se dirigia a um garimpo na região de Altamira (PA) pilotando um monomotor.

Morreu jovem, com menos de 30 anos.

Era um exímio contador de causos dos beiradões e até hoje sinto falta dos relatos que ele me fazia sobre suas incríveis aventuras.

Um comentário:

Anônimo disse...

Simão aqui e um dos caras que esta na foto do rosa com amor, gostria que vc colocasse os nomes dos jogadores que estão na foto equipados e os que estão ao lado