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sexta-feira, maio 18, 2012

Laços de família: Dona Celeste Pessoa



Se estivesse viva, mamãe estaria fazendo hoje 80 anos. Mas ela faleceu há 34 anos, no dia 10 de novembro de 1978. Estava com 46 anos. Quer dizer, eu próprio já vivi uma década a mais do que ela, o que me parece um despropósito. Muito mais do que eu, dona Celeste Pessoa merecia esse plus extra de existência terrena porque, acima de tudo, era uma pessoa decente. É por causa disso que, no meu inferno zodiacal particular, 1978 foi o ano do cachorro louco.

A loba alfa da família, Simone Pessoa, atualmente exercendo o cargo de diretora do campus da UEA, em Lábrea, também está aniversariando hoje. Durante a doença da mamãe, ela foi uma autêntica guerreira. Tenho orgulho de ser seu irmão. Nós três (eu, Simone e mamãe) éramos taurinos e maioria absoluta nas questões astrológicas da família. Com o passar do tempo, mais três taurinos vieram se juntar a nós: minha filha Maíra, meu sobrinho João Ricardo, filho da Simone, e meu sobrinho Simão Neto, filho da Selane. Continuamos maioria absoluta.


Mamãe, Simone e papai, durante a formatura da loba alfa em Engenharia Florestal

Características dos taurinos? Vontade, perseverança e amabilidade. Atração pelo prazer. Firme e determinado, persistente e confiante, escrupuloso e paciente, amoroso e materialista, teimoso e argumentador. Tem a qualidade de esperar seus planos amadurecerem. Gentis e amáveis quando não provocados. Furiosos e imprevisíveis quando ofendidos. Gostam das boas roupas e adoram a boa mesa. Facilidade para acumular bens materiais. Possui uma faceta estética, estável e muito centrada, mas pode tornar-se possessivo e comodista. Alguém duvida disso?

Mas voltando à vaca fria. Não lembro em que mês de 1978 minha mãe descobriu que estava com câncer. Aliás, eu nem sequer sei se algum dia ela soube que estava com a doença. Dona Celeste e Pai Simão haviam acabado de voltar das praias de Salinas (PA) e, aparentemente, estavam vendendo saúde. Em maio ou junho, eu fiquei sabendo que ela estava com um problema gastrointestinal por informações das minhas irmãs, mas não atinava para a gravidade do assunto.


Em agosto, quando começamos a frustrada greve na Sharp do Brasil, mamãe piorou bastante. Ela não quis ir para um hospital. Minhas irmãs improvisaram uma enfermaria em seu quarto de dormir. Uma determinada tarde, eu fui ter com ela. Conversamos pouco, por causa das dores excruciantes que lhe agoniavam. Ela apenas me pediu, apertando a minha mão direita, que eu tomasse conta do Simas, na época um pivete desordeiro de 17 anos.

 – Ele é o meu filho caçula e o seu único irmão. Cuide dele porque um dia ele também vai cuidar de você...

Não sei se a mamãe estava jogando praga. O fato é que estou cumprindo a tarefa até hoje. Mamãe também me perguntou como estava meu trabalho na Sharp e menti um pouquinho. Fiquei com vergonha de falar que havia encabeçado uma greve na empresa e que estava desempregado.


Papai e mamãe no batizado de um de seus inúmeros afilhados

O quadro clínico começou a se agravar em progressão geométrica. No final de outubro, após a metástase, mamãe não conseguia mais beber líquidos. Minhas irmãs Simone e Silene passavam algodões embebidos em água nos seus lábios para minorar o sofrimento, já que sua garganta estava praticamente em carne viva.

A Polícia Federal começou a suspeitar das dezenas de receitas fornecidas pelo psiquiatra Rogelio Casado (na época, casado com a Silene) e pelo médico ginecologista Sebastião Oliveira exigindo novas doses de morfina para aplacar as dores da paciente. Nessa época, dona Celeste já estava em coma induzida. Mamãe ainda continuou lutando contra o câncer, mesmo inconsciente, durante umas duas semanas.


Isabelle, filha do Jaques Castro, e sua tia Ângela

Irmã do Jaques Castro, Ângela foi a última pessoa a ver minha mãe fechar os olhos e desistir da briga inútil, já na noite de uma sexta-feira, dia 10 de novembro.  Chorando copiosamente, ela foi me avisar do desfecho da tragédia. Saí de casa, em companhia dela, e cheguei à casa dos velhos no exato momento em que minhas irmãs começavam a “preparar” minha mãe para o velório. Não quis entrar no quarto. Minhas quatro irmãs se esmeraram na tarefa de deixar dona Celeste tão bonita quanto tinha sido em vida, apesar de o câncer ter arruinado sua formosura. Mamãe morreu com 46 anos, pesando pouco mais de quarenta quilos. No auge de sua forma física, ela pesava 70 kg e era simplesmente exuberante.

No sábado, começaram a chegar dezenas de coroas de flores enviadas pelos amigos da família. Eu estava tão anestesiado que aceitava os votos de condolências no modo automático de um robô autista. Pai Simão começou a providenciar o enterro no cemitério São João Batista. Ficou meio complicado, porque era a primeira vez que a gente ia enterrar alguém da nossa família naquele campo santo e não possuíamos um jazigo permanente.

Graças ao empenho do administrador do cemitério, o rotundo Sebastião Prata, que era primo em segundo grau da mamãe, o velho conseguiu uma sepultura provisória e foi providenciar a papelada oficial na prefeitura para efetuar o enterro. Eu estava aparentemente tranquilo, me balançando em uma rede no quarto do Simas, quando entrou minha avó Rosa, se debulhando em lágrimas.

– Eu sou uma amaldiçoada! – ela gemeu. “É a minha segunda filha que morre, e eu, uma velha completamente inútil, ainda continuo aqui. Isso não está certo!...”


Minha tia Maria Bandeira, irmã da mamãe, havia morrido alguns anos antes, de ataque cardíaco. Pela primeira vez na vida, abracei minha avó com uma imensa ternura e pedi pra ela ficar calma. Ela ficou. Nós dois ficamos em silêncio dentro do quarto, ruminando nossa dor. Nesses momentos, desconfio, não é de bom tom falar que a morte é inevitável, que a gente nasce pra morrer, que morreu, acabou, que morrer é como dormir e nunca mais acordar, essas coisas. É melhor ficar calado. As pessoas acreditam em eternidade, acreditam na ressurreição dos mortos, acreditam nas promessas de padres e pastores de que irão para o céu, acreditam no Juízo Final. Melhor não estragar tudo com filosofia existencialista barata.

Algumas horas depois, a minha prima Raquel entrou no quarto e mandou um papo reto:

– Simãozinho, a titia já vai embora. Vai lá, te despedir dela...


Tia Maria Pessoa, irmã do papai, e  minha prima Raquel

Esposa do advogado Lourenço Braga, Raquel tinha sido uma das minhas tutoras quando eu era criança. Amparado por ela, fui dar um beijo naquele quadradinho de vidro do esquife que separa o defunto de seus entes queridos. Minha mãe estava serena como alguém que está dormindo em paz.

Alguns minutos depois, Pai Simão fechou a tampinha de madeira sobre o tampo de vidro e eles começaram a levar o esquife para o carro funerário parado em frente de casa. Voltei pra minha rede no quarto do Simas e fiquei observando a minha avó Rosa uivando de dor como uma loba ferida. Aqueles uivos eram assustadores. Foi só aí que tive a percepção exata de que nunca mais voltaria a ver a dona Celeste.

Não posso descrever a dor da perda até hoje, mas devo ter uivado mais do que a avó Rosa. Ela estava perdendo mais uma filha. Eu estava perdendo todas as minhas referências afetivas, toda a muralha que me protegia e me impulsionava a ir em frente, contra tudo e contra todos, com apenas uma frase mágica: “Você é capaz, meu filho, vai lá que você consegue!”


Comecei a lembrar da mamãe me dando “banhos de cabeça”, feitos de infusão de ervas milagrosas receitadas por rezadeiras da melhor competência, quando eu era um moleque de oito anos. Até aquela idade, quando alguém me repreendia, com ou sem razão, eu ficava tão nervoso que não respondia às agressões. Simplesmente me desfazia em lágrimas. Mamãe achava que aquilo não era bom e fez o possível e o impossível para me livrar do problema. As ervas milagrosas me ajudaram a fechar o coração.

Lembrei quando me formei no Colégio Batista Ida Nelson, aos 14 anos, e lhe entreguei, orgulhoso, o meu canudo de papel. Ela beijou a minha cabeça e avisou ternamente:

– Hummmm. Você não lavou a cabeça hoje, meu filho!...

Quer dizer, em vez de vibrar com a minha colação de grau, ela ainda se preocupava primeiro com minha higiene pessoal.

Lembrei quando eu e Mário Adolfo ficávamos na mesa da cozinha desenhando HQs, enquanto ela preparava sua inesquecível maionese de camarão. A casa estava no maior silêncio e, dali a pouco, as meninas começavam a fazer uma algazarra dos diabos no quarto delas, cuja parede dava pra cozinha. Mamãe largava tudo que estivesse fazendo, se aproximava da porta do quarto e avisava:

– O Simaozinho e o Mário Adolfo estão desenhando ali na cozinha e precisam de um pouco de silêncio...

O barulho da algazarra desaparecia como por mágica. Minha mãe era mágica.


Minha lembrança mais remota da infância é em companhia dela. Eu devia ter uns quatro anos e mamãe estava me dando banho de cuia em um banheiro de madeira de algum quintal frondoso, provavelmente na casa da tia Maria, irmã do papai.

De repente, ela avistou um gigantesco sapo cururu nos observando e começou a gritar pelo papai, assustadíssima, quase em pânico, enquanto tentava me proteger com seu corpo, se interpondo entre eu e o assustador cururu. Pai Simão veio correndo ver o que estava acontecendo e, com um potente chute de peito de pé, isolou o cururu no meio do matagal. Nunca mais esqueci aquela cena.

Quando a doença começou a lhe tirar o sossego, mamãe jamais se fez de vítima ou amaldiçoou seu destino. Enfrentou a doença como sempre enfrentou tudo na vida: com estoicismo, coragem e resignação. Foi aos médicos, tomou as injeções, se submeteu a tratamentos alternativos (chás de todos os tipos, operações astrais, etc.) e, em vez de ser internada em um hospital, convenceu Pai Simão a deixá-la aguardar a morte na casa que tanto amava.


Eudes, meu filho Marcel e mamãe

Mamãe só tinha concluído o curso primário, mas era uma leitora compulsiva e nos incentivava a fazer o mesmo. Graças a ela, Pai Simão adquiriu as principais enciclopédias disponíveis no mercado: Lello Universal, Barsa, Delta Larouse, Enciclopédia Britânica, Tesouros da Juventude, etc. 

Ela também colecionou, fascículo por fascículo, semana por semana, os 20 volumes da Enciclopédia Conhecer, da editora Abril, que eu li de cabo a rabo não sei quantas vezes. Se hoje sou um especialista em generalidades, os créditos são exclusivamente de minha mãe.

Dona Celeste tinha sensibilidade, inteligência e um bom humor apurado, que acabei herdando e transformando em ironia permanente ou sarcasmo corrosivo, para desespero de meus detratores. Ela nunca foi vaidosa – apesar de tão bonita! – e demonstrava muito orgulho pelo progresso educacional dos filhos.


Mamãe gostava de juntar os familiares em datas festivas, de reunir todos os filhos à mesa nos almoços de domingo, e ficou visivelmente entristecida quando sai de casa para morar com Jaques Castro e César Abu, no bairro da Glória, no final de minha adolescência. 

Ainda assim, quase todos os domingos, ela fazia questão de que a Selane fosse ao nosso apartamento levando uma pequena marmita com sua inesquecível maionese de camarão ou com picadinho de bobó, que ela sabia ser meu prato favorito.

Agora, não mais sua maionese de camarão, não mais seu picadinho de bobó, não mais seus conselhos, não mais sua força, não mais sua coragem arrebatadora – apenas estes guardados na memória e o exemplo que eles vão sempre evocar.

Continue ao lado de Deus e velando por nós, minha querida mãe. 

E muito obrigado por tudo.

3 comentários:

Izabel Macedo disse...

Bonita homenagem Simão, eu tenho orgulho de ter participado dessa historia familiar, afinal fomos vizinho na rua Walpes, lembras? (antigo,rsr)e nossa amizade perdura ate hj,,,bjs grande....

Simão Pessoa disse...

Izalbezinha, minha fada rainha, você foi a primeira grande paixão arrebatadora dos meus dez anos. Como esquecer uma coisa dessas? Se puderes me enviar fotos antigas da família via e-mail (simaopessoa@gmail.com) prometo te fazer uma surpresa inesquecível. Beijos.

Anônimo disse...

Oi Simão, li toda a Estoria de sua Familia e o que mais chamou-me atencao giram os relatos sobre D. CELESTE sua Genitora, que aliás tive o prazer de conhece-la como tambem, seu Pai.
Nao esqueco de um Automovel Aero-Willys que o mesmo possuia... na época, eramos Criancas.
Falando de Av. Walpes... muitas saudades
da epoca.
Para recordar>> Sou filho da D. NELY - CABELEIREIRA.
Um forte e fraterno abraço.

ADEMIR OLIVEIRA SOUZA