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quarta-feira, maio 14, 2014

Senna e Science na República dos Bananas


Ronaldo Bressane

Aí o Senna chegou no céu perdidão e a primeira pessoa que encontrou foi o Dener. “To ligado, acidente de carro é uma merda”, disse o Dener. “O negócio é esquecer isso e se ligar nas gatinhas daqui, mano.” Senna apontou uma morena: “E aquela princesa, conhece?” O Dener: “Ih, mano, mas aquela é a Daniella Perez… Deixa quieto, essa mina é mó furada.”

Esse tipo de piada infame, juntando três defuntos frescos — Senna havia morrido no dia anterior, o jogador de futebol Dener duas semanas antes (em um acidente na Lagoa Rodrigo de Freitas) e a atriz Daniella Perez, assassinada a facadas — já circulava na agência de propaganda em que eu trabalhava assim que cheguei, às 11h. Numa era pré-internet, em um estranho fenômeno, as piadas com o ilustre cadáver haviam se proliferado loucamente menos de um dia após a tragédia de Tamburello.

Airbag emocional tipicamente brasileiro esse, o de fazer piadas com pessoas que amamos e idolatramos. Um jeito infantil de nos distanciar do medo comum da morte, ou forma de retirar os ídolos do pedestal da eternidade e então trazê-los de volta, perto de nós, a ponto de virarem personagens de piadas? É um tópico que retornará, aposto, quando Silvio Santos, Pelé, Lula ou Roberto Carlos dobrarem a curva.

Só não espero mortes tão trágicas quanto a daquele domingo cinzento. Eu comia um sanduíche na cozinha vendo a corrida distraído. Em 1994 já não era tão fã de Senna quanto em 1991, quando tinha me juntado às dezenas que invadiram a pista de Interlagos para ovacionar o sujeito que tinha ganho a corrida de modo tão épico, segurando o carro só no acelerador e no freio, uma vez que todas as marchas haviam quebrado, menos a primeira e a sexta — feito impensável hoje, quando os pilotos de F-1 são pouco mais do que robôs teleguiados sem o mínimo carisma. Mesmo assim, no momento em que Senna bateu eu soube imediatamente que havia morrido — e o sanduíche parou numa curva da garganta.

Foi um dos domingos mais tristes; tristeza igual, ou pior, só dali a três anos, com a morte de outro ídolo, e este próximo, pois era amigo de amigos: Chico Science. O líder do manguebeat foi a última esperança da nossa geração em limar o abismo que tornava inimigos o popular e a vanguarda. Suas ideias influenciaram toda a MpopB que veio depois; no entanto, jamais surgiu outra figura que condensasse tantos talentos quanto Chico — e perdemos aquela batalha. Ambos, Senna e Science, aceleravam demais, e ambos foram mortos pela mesma cultura do automóvel — a diferença é que, enquanto o paulista era devoto da velocidade das McLaren, o pernambucano desfilava lento em um psicodélico Galaxie, a nave favorita para viajar na música (se guiasse o Landau e não um Uno naquele domingo talvez ainda estivesse entre nós).

Também nunca mais surgiu um carismático herói nacional como Senna, que encarnava a audácia e esperteza macunaímicas frente aos desafios da alta tecnologia dominada pelo “primeiro mundo”, expressão largamente usada na época. Senna livrou os brasileiros do complexo de viralatas que vivíamos nos hiperinflacionários anos pré-Plano Real. Science lidou com os complexos de uma nação em especial — Pernambuco, cuja capital havia sido eleita a 4a pior cidade do planeta —, só que transformou-os em resistência política, em arte sofisticada, em orgulho e, por que não, em humor, ao criar a dança em que se metamorfoseava em caranguejo, o meio de vida do lúmpen que vive enfiado na lama.

Não vamos nos iludir: vinte anos depois da morte de Senna, ainda vivemos enfiados na lama do “primeiro mundo” que nos atira bananas tão logo nossas cabeças emergem do barro. E nem todos engolem o recalque com a sagacidade do Dani Alves. As piadas daquela segunda após a morte do herói eram um exemplo típico do retorno do recalcado: morto, Senna tinha perdido sua guerra particular contra os gringos, e era legítimo ridicularizá-lo, como se assim ele retornasse à origem — a lama da cova Silva que nos pariu. Estou curioso em saber como lidaremos com nossos próximos lutos e recalques — que podem aparecer numa derrota nesta Copa.

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