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quarta-feira, junho 11, 2014

Lester Bangs, o santo beatnik da crítica


Crítico norte-americano é arquétipo a ser perseguido pelo jornalismo cultural — há tempos relegado aos rodapés dos periódicos e pálido em suas econômicas observações

Leandro Reis

Bangs. O sonoro quinteto heterogêneo, na língua inglesa, sugere uma série de acepções. Em substantivo, pouco diz: franja de cabelo — exceto se impelíssemos ao sentido a pecha de visual rock. Não é preciso. Quando verbo (ou quando aspira a sê-lo), o termo vai longe, sem barras forçadas ou caminhos nebulosos.

Foder, a princípio, é um dos significados mais notórios. Basta árida navegada pela web, balizada em dialetos de inclinações sexuais, que a palavra aparece harmonizada a corpos nus — ou em vias de —, devidamente curvados em parábolas sintomáticas, em comitivas ou não. Geralmente, “bangs” escora-se em “violar”, ou algo semelhante — é certo, em suma, dizer que não estamos falando de romantismo.

Bang! Eis outro caminho: o disparo de arma de fogo, comum como onomatopéia de conversas ou recurso narrativo em histórias em quadrinhos, filmes, livros. Seus irmãos, todos calcados no ímpeto, na violência, no aqui-agora, são o estrondo, a pancada, o pontapé. Há outros, mas estaríamos afogados na redundância se continuássemos a elencar sentidos.

Bangs. A palavra de origem inglesa guarda mais ramificações que um idioma pode aguentar sem soar arbitrário — na verdade, qual linguagem não é, em seu âmago, despótica? Roland Barthes, na “Aula” (Cultrix, 2013), disse que “esquecemos que toda língua é uma classificação, e que toda classificação é opressiva”. Então é necessário que um nome, égide do indivíduo, carregue-a: Lester.

Lester Bangs, santo beatnik. Morreu em 1982, aos 33, idade de Cristo. Não foi crucificado, mas certamente alçado à cruz do jornalismo, no subgênero gonzo, de qualidade extremamente contestada, ainda que tenha saído do ventre do new journalism (Tom Wolfe, Gay Talese, Truman Capote). A exemplo de Hunter S. Thompson, escreveu motivado por substâncias psicotrópicas, em fluxo vertiginoso, e pôs-se, muitas vezes, à frente do próprio objeto do texto — e quem não está, prisioneiro de sua própria subjetividade, em posição soberana ao alvo da análise?

Palavra não é propriedade privada, embora herdada, a filigranas, pelas bocas da posteridade. Bangs comungou da hóstia libertária norte-americana. Seu ethos discursivo — e por que não comportamental, espiritual — nasceu do choque juvenil contra a ordem vigente: a contracultura, construída de modo explosivo nos Estados Unidos sessentista. Antes ainda: Lester é fruto de Kerouac, Burroughs, Ginsberg, estes sim genitores do que viria a ser o movimento hippie, a constestação diante do injustificável Vietnã e demais necessidades de ruptura.

Saiu da geração beat, ainda na década de 1950, o apego pelas experiências, o desbunde psicotrópico, a sonoridade da língua em prosa, o antiformalismo, enfim: tudo o que foi datilografado pelo crítico norte-americano no seio da contracultura, na sujeira do rock’n’roll. Estão, em seus textos, a sonoridade proposital do vernáculo, o encadeamento rítmico, o olhar humano acerca do marginal. Linguagem perfeita é linguagem morta, disse Carriere. Lester Bangs foi feito dos excessos: bruxuleava no parapeito escorregadio do jornalismo musical, bailando sua pena suja diante dos dinossauros do show business e do mundo estático das letras.

O humanista do vinil


Cabe breve histórico. O crítico chegou ao público pouco depois de completar duas décadas de errática existência. Em 1969, publicou seu primeiro artigo pela “Rolling Stone”, no qual já se via o espírito afeito à doutrina, ao convencimento das retinas que o leem, particularidade que, segundo o próprio autor, vinha de sua incursão juvenil obrigatória pelo âmago das Testemunhas de Jeová — a vocação de “querer que as pessoas gostem da mesma coisa que eu”.

Demitido da revista por cultivar rusgas com músicos, vai para “Creem”, publicação mais anárquica e disponível para seus textos transgressores. Ali, emprega, pela primeira vez, os termos “punk” e “heavy metal”. Expõe, de maneira tórrida e textualmente espetacular, sua relação dúbia com Lou Reed, pilar do ideal roqueiro construído com a ajuda de Bangs e sua máquina de esculpir ídolos. Ainda publicaria, vez ou outra, na “NME” e no underground “Village Voice”, antes de sucumbir a uma overdose de medicamentos, já desgostoso com os rumos do rock’n’roll.

Escreveu sobre discos, e só. Mas ali havia muito mais do que música. Ele escreveu rock, “que não é simplesmente o escrever sobre rock”, como lembrou Wu Ming. Dedos frenéticos na máquina de escrever, ele militou pela honestidade da música e perpetrou, entre as engrenagens das máquinas do estúdio, o elemento humano que ali necessitava sobreviver. Certa feita, costurou os tecidos de “Astral Weeks”, de Van Morrison, com observações de humanidade extrema (se é que isso existe): “Oras, só estando afundado nas perversões mais tépidas um ser humano poderia amar um outro por qualquer coisa que não a sua humanidade: amá-lo por suas fraquezas, seus defeitos, e, por fim, talvez, sua deteriorização.” Não é dispensável lembrar de Deleuze, quando diz que “se não captar a pequena marca de loucura de alguém, não pode gostar deste alguém”.

Lester Bangs era crítico — na acepção comum dada ao termo — quando via algo fora do lugar. Aí, talvez, de seu deboche sofisticado, esteja a fonte maior do prazer de seu texto, da “fruição”, como quis Barthes. Desse lado impetuoso padeceram um sem-número de músicos em atividade entre o final dos anos 1960 e começo dos anos 1980, época de sua produção. O Jethro Tull, ou o que sobrou dele, ainda gira na própria órbita, carente de corrimão que ampare o golpe desferido pela pena veloz de Lester Bangs. Seu problema era, de maneira recorrente, lidar com o ascetismo do puro entretenimento. A banda de Ian Anderson, a bordo do sucesso progressivo e megalomaníaco “Aqualung”, representava a parte falha do rock: a automação, os penduricalhos como fins em si mesmos. No texto sobre o show do Jethro, houve quem escutasse o direto na ponta do queixo de Anderson: “Tudo o que importa é dar às pessoas um pouco de cor e de movimento para assistir de modo que eles não fiquem irrequietos enquanto escutam a música”. Bang!

Paralelo seguro e recente da pureza que Bangs pretende elevar no rock é o grunge, derivado de uma espécie de reação à cafonice oitentista de Bon Jovi, Motley Crue e demais cabelos cuidadosamente espichados, prontos a entregar um ensaiado espetáculo de entretenimento, baseado em adornos de figurino e recursos de palco — tudo em favor das imagens, das câmeras, do sorriso voluptoso da garota afogada nos hormônios. Bandas sujas de Seattle (Melvins, Soundgarden), por sua vez, chafurdavam na lama sonora, jogavam-se sem armaduras na plateia, produziam catarse no altar do rock. Lester Bangs aprovaria, certamente a bebericar líquido imoral.

Jornalismo que “frui” (culpe Barthes)


A escritura de Lester Bangs deixa espaços, é um núcleo de correspondências entre leitor e autor, ainda que a relação seja desigual — ainda bem, visto que nossos olhos carecem da acuidade das mãos do roqueiro das linhas. Com o tempero agressivo e a alma de franco atirador, ele devolveu ao jornalismo os alicerces da crítica musical combativa, fundamental para músicos e fãs até há pouco tempo. Impressa na superlativa frase de Greil Marcus, escrita para introduzir uma coletânea de Bangs: “Talvez o que este livro exija do leitor seja a disposição em aceitar que o maior escritor norte-americano tenha escrito apenas análises de discos”.

Não se trata disso tudo, é claro. Faulkner, Hemingway, Burroughs (desse Bangs é orgulhoso inquilino) e tantos outros guardam o Olimpo da literatura norte-americana. Mas Lester Bangs é importante porque transformou jornalismo em literatura e crítica musical em antropologia errante. Sua figura ficou cravada no imaginário popular através da face do seminal Philip Seymour Hoffman, ator-pele do crítico em “Quase Famosos”, de Cameron Crowe, jornalista musical influenciado, a exemplo de Nick Tosches e Greil Marcus, pelo estilo de Lester Bangs. Mais: Ramones e R.E.M. o lembraram em canções — respectivamente “It’s Not My Place” e “It’s The End Of The World As We Know It (And I Feel Fine)”.

Na língua inglesa, Bangs tem uma biografia escrita por Jim DeRogatis (“Let It Blurt”, 2000) e algumas coletâneas de artigos, publicadas após sua morte. No Brasil, há apenas “Reações Psicóticas” (Conrad, 2005), com alguns textos extraídos da edição norte-americana, que tem mais que o dobro de páginas. O volume em português é praticamente um panfleto, embora especialmente precioso, visto que a tradução não suprime o sabor da estética, das gírias, dos termos quase fora de lugar. A edição está esgotada, entretanto.

É preciso voltar a Lester Bangs. Embora suas páginas em língua portuguesa estejam no cemitério, é possível espelhar no beatnik da música o arquétipo libertário da crítica a ser perseguido. A presença árida da crítica cultural nos veículos de comunicação é desesperadora, uma vez que, face à enorme oferta de produtos culturais — muitos deles gratuitos, à deriva na internet —, a mediação empreendida pelo crítico torna-se de assaz importância. Relegada a espaços ínfimos ou à condição de “resenha”, a crítica perdeu, em grande parte, seu conteúdo reflexivo e contestador. Basta lembrar que, em 2013, o jornalismo brasileiro renunciou a duas publicações especializadas em crítica cultural, a saber: o suplemento “Sabático”, publicado no jornal “O Estado de S. Paulo”, e a revista “Bravo!”.

A solidão de sites de cultura pop que fazem, de fato, uma crítica cultural reflexiva é aviltante. Hoje, escrever no sentido de expandir a apreensão estética, discutir questões humanas por meio da música, enterrar quem merece os sete palmos é tortuoso — não cabe nos escaninhos das editorias. As resenhas de hoje não arrastam o leitor para um alhures funcional ou substancial, ao contrário, fixam-se, de certa maneira, no instantâneo do lançamento, quando não calham de pender para a agenda cultural; não mostram o seu discurso, a nós só é possível fotografar o dorso das ideias que a produziram, como se a ideologia só fosse possível disfarçada, entranhada como contrabando nas bagagens dos resenhistas.

Criticar, mais do que nunca, é sinônimo de resistência. Tótem dessa postura é Lester Bangs, alguém que tinha os culhões para verter ideologias na máquina de escrever. De modo que é fundamental voltar a seus textos, não só no sentido de analisar a constituição de seu discurso, mas também de relembrar as possibilidades de uma crítica musical importante, sem as amarras do mercado da empresa jornalística. Trinta e dois anos após sua morte, a contribuição de Bangs para o jornalismo — e por que não para a literatura — ainda está situada aquém de seu lugar de direito.

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