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segunda-feira, junho 02, 2014

Waly Salomão fazia da vida uma atividade poética


Luciano Trigo

Quem teve a chance de conhecer pessoalmente Waly Salomão sabe que, mais que escrever poesia, ele fazia da própria vida uma atividade poética. Nesse sentido, o título “Poesia total”, dado à reunião de seus livros (Companhia das Letras, 520 pgs. R$ 49) é mais que adequado. Mas serve também para lembrar que o volume que o leitor tem em mãos corresponde apenas a uma fração de um projeto estético e existencial que, para ser plenamente entendido, exige um olhar em perspectiva e uma consciência do contexto em que sua obra foi produzida.

Baiano de Jequié, filho de pai sírio e mãe sertaneja, Waly formou-se em direito, mas nunca exerceu a profissão. Cedo ele descobriu sua vocação de agitador cultural, que fazia da palavra trincheira. Portador de uma "brava alegria" e uma "felicidade guerreira", nele se combinavam o entusiasmo e a força criativa, a erudição e a irreverência, mas também, quando necessário, a revolta e a raiva, que o levaram a comparar o Brasil a um “buraco de cárie”.

“Poesia total” reúne todos os livros de Waly, de “Me segura qu'eu vou dar um troço” (1972) a “Pescados Vivos”, publicado postumamente em 2004 (Waly morreu em 2003, aos 59 anos, meses após assumir a Secretaria do Livro e da Leitura a convite do então ministro Gilberto Gil. Na área pública, foi também diretor da Fundação Gregório de Matos e coordenador do carnaval da Bahia, quando apoiou blocos afro como Ilê Ayê e Olodum).

Capa de Além das obras publicadas de forma avulsa, o volume inclui letras de canções inéditas e um apêndice com uma fortuna crítica do poeta, incluindo textos de Antonio Cícero, Francisco Alvim, Paulo Leminski (também recentemente reeditado pela Companhia das Letras), Armando Freitas Filho, Caetano Veloso, Davi Arrigucci Jr e Heloísa Buarque de Hollanda.

Waly começou a ganhar projeção em 1972, em Salvador, quando publicou no jornal alternativo “Verbo Encantado” textos em que anunciava seu projeto de um "alargamento não-ficcional da escritura". No mesmo ano lançou seu primeiro livro, “Me segura qu'eu vou dar um troço”, que, em parte escrito na prisão, pode ser entendido como um inventário de aventuras underground escrito no fio da navalha da linguagem.

Mas Waly não gostava de ser identificado como um poeta da geração 70, marcada pela resistência à censura e à ditadura, ou com os tropicalista, embora tivesse laços profundos com o grupo: "Eu não sou um fóssil, sou um míssil". Permanentemente inquieto, já em “Gigolô de Bibelôs”, seu segundo livro, afirmou: “tenho fome de me tornar em tudo que não sou”. Movido pelo impulso de romper limites – entre a vida e a poesia, inclusive – e subverter convenções formais, Waly foi, nas décadas seguinte, letrista de canções famosas (como Mel, Memória da Pele, Fábrica do Poema, Vapor Barato e Mal Secreto, entre muitas outras), produtor de discos hoje cultuados e diretor de espetáculos musicais antológicos. Foi, ainda, Interlocutor de Hélio Oiticica e Lina Bo Bardi e criador dos poemas visuais “Babilaques”.

Ainda que Waly sempre pensasse a produção literária a partir de sua articulação com as outras artes, sua ambição maior era mesmo a poesia, "a menos culpada de todas as ocupações". Assim, ele continuou se reinventando como poeta até o fim da vida, em livros como “Lábia”, “Armarinho de miudezas”, “Tarifa de embarque” e “Algaravias”.

Alguns poemas de Waly Salomão

A memória é uma ilha de edição – um qualquer
passante diz, em um estilo nonchalant,
e imediatamente apaga a tecla e também
o sentido do que queria dizer.
Esgotado o eu, resta o espanto do mundo não ser
levado junto de roldão.
Onde e como armazenar a cor de cada instante?
Que traço reter da translúcida aurora?
Incinerar o lenho seco das amizades esturricadas?
O perfume, acaso, daquela rosa desbotada?


ANTI-VIAGEM

Toda viagem é inútil,
medito à beira do poço vedado.
Para que abandonar seu albergue,
largar sua carapaça de cágado
e ser impelido corredeira rio abaixo?
Para que essa suspensão do leito
da vida corriqueira, se logo depois
o balão desinfla velozmente e tudo
soa ainda pior que antes pois entra
agora em comparação e desdoiro?
Nenhum habeas corpus
é reconhecido no Tribunal do Júri do Cosmos.
O ir e vir livremente
não consta de nenhum Bill of Rights cósmico.
Ao contrário, a espada de Dâmocles
para sempre paira sobre a esfera do mapa-múndi.
O Atlas é um compasso de ferro
demarcando longitudes e latitudes.
Quem viaja arrisca
uma taxa elevada de lassitudes.
Meu aconchego é o perto,
o conhecido e reconhecido,
o que é despido de espanto
pois está sempre em minha volta,
o que prescinde de consulta
ao arquivo cartográfico.
O familiar é uma camada viscosa,
protetiva e morna
que envolve minha vida
como um pára-choque.
Nunca mais praias nem ilhas inacessíveis,
não me atraem mais
os jardins dos bancos de corais.
Medito é beira da cacimba estanque
logo eu que me supunha amante
ardoroso e fiel
do distante
e cria no provérbio de Blake que diz:
EXPECT POISON FROM THE STANDING WATER.
Ou seja:
AGUARDE VENENO DA ÁGUA PARADA.
ÁGUA ESTAGNADA SECRETA VENENO.


POESIA

Barroco
Mundo e ego: palcos geminados.
Quero crer que creio
E finjo que creio
Que o mundo e ego
Ambos
São teatros
Díspares
E antípodas.
Absolutos que se refratam/difratam…
Espelhos estilhaçados que não se colam.
Entanto são
Ecos de ecos que se interpenetram
Partículas de ecos ocos, partículas, partículas de ecos plenos que se conectam
Aí cosmos são cagados, cuspidos e escarrados pelo opíparo caos
E o uso do adjetivo está correto
Pois que o caos é um banquete.
Fantasmas de óperas.
Ratos de coxias.
Atos truncados.
Há uma lasca de palco
em cada gota de sangue

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