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terça-feira, setembro 30, 2014

O mundo anda muito gourmet pro meu gosto



Ricardo Coiro

Antigamente, irmão, o proprietário da barraca de dogão sonhava em um dia ter um restaurante pomposo, com ar-condicionado potente e inacessível às pombas oportunistas da megalópole.

Hoje o cenário mudou: o dono do restaurante cheio de pompa inveja a vida nômade e “ótima pra virar coluna em bloghipster” dos que possuem um food truck (modelo de estabelecimento que, em muitos casos – NÃO EM TODOS! , não passa de uma barraquinha à paisana – e sobre rodas – geralmente idealizada por algum publicitário de bigode na cara, blazer jogado no carro e Vans nos pés).

E saiba que os food trucks vieram para ficar e conquistaram o coração da galera descolada.

Por quê? Porque eles têm o mágico poder de agregar despojamento ao ser que faz um ‘check-in’ neles, em qualquer rede social.

Ainda não reparou? Não existe nada mais cool do que postar uma selfie ao lado de um food truck.

Nem uma selfie com o Al Pacino trajando uma camiseta com a sua cara seria tão valiosa à sua moral virtual.

Pedir para o garçom tirar uma foto sua dentro do Terraço Itália agora é brega, estou avisando! Saiu de moda.

E se está pensando em fazer uma selfie para retratar a sua visita suada e dispendiosa a um food truck qualquer, aí vai o meu conselho: não se esqueça de expor os dedos sujos de óleo.

Óleo gourmet, claro.

Aliás, sinto que o mundo dos alimentos acabou dividido, grosso modo, em três tipos: os que têm “gourmet” no sobrenome, aqueles que são Friboi e os que ajudam a promover o ganho de massa magra.

Não acredita? Quando se deparar com um alimento não identificado, comece fazendo a seguinte indagação: “É Friboi?”.

Se não for, pergunte se possui whey protein na composição.

Se a resposta for “não”, você tem grandes chances de estar diante de uma coxinha gourmet, bolo gourmet, brigadeiro gourmet ou PF gourmet.

Ou ainda, na pior das hipóteses, estarão lhe oferecendo a imperdível chance de pagar por um café gourmet feito com grãos defecados por uma espécie de mamífero conhecido como “civeta”, que, muito provavelmente, curte mandar um Activia logo cedo.

Tudo anda tão gourmet que – se pá – qualquer dia você ouvirá a seguinte afirmação de uma mina na balada: “Não dá. Eu sou muito gourmet para você!”.

Malditos – e geniais – são os publicitários que resolveram chamar a tilápia vermelha de Saint Peter, para cobrar o dobro, óbvio.

Não sei se é verdade, mas ouvi dizer que um renomado publicitário, para vender a própria mãe, arrancou o sobrenome “Silva” da coroa; e meteu logo um “Châteaubriant” no RG da veia.

Não duvido.

E pipoca gourmet então, já ouviu falar?

Se antes, para comprar um balde de pipoca no cinema, era preciso doar sêmen até os testículos ficarem com aspecto de ameixa seca, imagina agora que a pipoca virou gourmet!

Ouvi dizer que um rim não é suficiente para adquirir um balde pequeno de pipocas cobertas com azeite trufado e com um toque de flor de sal.

E pior: o sabor das pipocas gourmets nunca vai superar o gostinho das pipocas que eram vendidas em portas de colégio – delícias produzidas pelos mesmos carroceiros que, segundo as nossas mães, também ofereciam balas recheadas de cocaína. Pura lenda.



Mas sabe o que mais me incomoda nessa coisa toda?

Algumas pessoas estão virando gourmets em tempo integral.

O que, se quer mesmo saber a minha opinião, é chato pra caralho.

Outro dia chamei um brother para tomar uma.

E o cara, que antes vivia em botecos sujos, sugeriu que fôssemos a um bar com carta de cerveja.

Não o contrariei. “Uma Original, por favor”, pedi ao garçom.

O meu amigo-gourmet-ostentação quase teve um surto.

Só faltou dizer: “Você está louco! Vai mesmo beber urina de mendigo com infecção na uretra?”. Sério.

O cara ficou inconformado com a minha escolha, e, de tanto me encher, conseguiu me convencer a pedir outra cerveja.

Eu ali, morrendo de vontade de beber, e o cara falando do conjunto malteado e da densidade do creme. Fiquei puto.

Mas beleza, pedi a tal da cerveja feita por monges belgas e alclatras. Até curti, mas, a meu ver (ver de quem não é gourmet), é muito cara.

Aí bateu aquela fome. Sugeri que pedíssemos uma porção de mandioca frita.

Sabe o que o cara respondeu? Não harmoniza!

Como assim não harmoniza? “Harmoniza melhor com carnes de caça e mariscos!”, ele disse como se eu estivesse prestes a fazer uma heresia gastronômica.

E como eu não caço e não sou gourmet, naquele momento, percebi que não harmonizava mais com o amigo mudado.

Não dá pra harmonizar com um cara que acha que a existência só é boa se for vivida em ritmo de degustação.

Como chamar um cidadão desses para almoçar na casa da minha mãe, por exemplo?

Não quero correr o risco de ouvi-lo dizer, à minha coroa: “Mas bife à milanesa não harmoniza com creme de milho!”. Ou pior: “Nossa, vocês não têm azeite trufado por aqui?”. Não dá.

Entendo que saber harmonizar as coisas é interessante, e que, em muitos casos, deve promover um belo agrado ao paladar. Não sou louco de contestar isso.

Mas os tais homens-gourmet, aqueles que encaram a necessidade de harmonização de maneira extremista e necessária em todas as situações, parecem ter perdido o controle – e a noção!

E, em muitos casos, andam por aí obstinados a encontrar harmonização perfeita para tudo.

Tenho certeza que eles não compram carro flex porque creem que álcool não harmoniza legal com gasolina.

E imagino que eles, quando encontram uma perereca ruiva, dizem: “Não vai rolar, seus pelos vermelhos não harmonizam com os meus negros!”.

Porra, aí fode a vida. Só a vida, né? Pois qual mulher quer passar o dia todo ao lado de um cara que tem o TOC da harmonização?

Não quero que pensem que sou contra os food trucks, coisas gourmets e harmonizações.

Já fui feliz em food trucks, confesso. Já experimentei – e gostei! – de quitutes gourmets, e, acredite, em uma harmonização de queijos& vinhos, eu realmente consegui perceber a magia que acontece quando harmonizamos vinhos com a incontrolável vontade de beber.

Só acho que, em todos os itens que acabei de citar, estão exagerando na dose.

Em alguns casos para justificar preços abusivos e fazer com que nos sintamos menos trouxas por pagar mais de cinco reais em algo que, há três anos, no máximo custava dois.

Noutros para fazer o consumidor acreditar na existência de diferenciais que, na verdade, não passam de disfarces. Ou qualquer gota de algo trufado. Saca?

Agora peço licença, pois preciso harmonizar uma Coca-Coca com um misto feito naquela chapa que, no final do dia, contém notáveis resquícios do tempero de todos os lanches que passaram por lá desde que a padoca abriu, em 1984.

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