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terça-feira, dezembro 29, 2015

A vida secreta de William Burroughs (05/FEV/1914 – 02/AGO/1997)


Não foi por falta de bons antecedentes no “sistema” estabelecido que William Burroughs se tornou um dos mais celebrados rebeldes do mundo da literatura. Seu avô paterno, William Seward Burroughs I, foi o inventor da calculadora. Sua mãe, Laura Harmon Lee Burroughs, afirmava ser descendente do general confederado Robert E. Lee e tinha um irmão que trabalhou como relações públicas para John D. Rockfeller (sem mencionar Adolf Hitler).

O próprio Burroughs frequentou a Universidade de Harvard, embora não conservasse nenhuma simpatia pelo lugar. “Eu odiava a universidade e odiava a cidade onde ela ficava”, ele disse a respeito da sua alma mater. “Tudo ali era morto. A universidade era um falso cenário inglês ocupado por estudantes saídos de imitações de escolas públicas inglesas”.

Burroughs também serviu no Exército dos Estados Unidos, algo que provavelmente essa instituição jamais quis deixar em destaque nos seus registros de recrutamento. Os fãs do “rebelde” Burroughs podem se consolar com o fato de que ele foi dispensado por um motivo bastante “burroughesco”: foi considerado mentalmente incapaz para o serviço militar depois de ter cortado a ponta do dedo mínimo do pé para impressionar um homem por quem estava apaixonado.

Bravura não lhe faltava. Durante a Segunda Guerra Mundial, ele uniu-se a Ilse Klapper, uma judia alemã, num casamento por conveniência para ajudá-la a fugir da Áustria ocupada pelos nazistas. Mais tarde casou-se com Joan Vollmer, a quem matou durante uma pesada “brincadeira” com armas (mais detalhes a respeito adiante). Nenhuma dessas esposas desconhecia as verdadeiras preferências sexuais de Burroughs. Ele era assumido, orgulhoso e não “esquentava a cabeça” com isso.

Muitos acadêmicos estabelecem a data de nascimento da Geração Beat como o dia em que Burroughs, Allen Ginsberg e Jack Kerouac se reuniram na Universidade de Colúmbia, em 1943. Antes disso, Burroughs já havia trabalhado como exterminado, receptador de objetos roubados e traficante de drogas para ganhar a vida. Depois disso ele escrevia, vendia drogas e consumia drogas para impedir-se de morrer.

Verdade seja dita, ele nunca precisou trabalhar de verdade. Durante toda sua vida recebeu mesada da sua abastada família – não os milhões de Burroughs, que alguns criadores de mitos literários gostam de afirmar, mas o suficiente para pagar o aluguel e se manter bem abastecido de narcóticos, que era só o que ele queria.

As drogas foram uma constante na vida de Burroughs. Elas perpassam a sua biografia como, bem, uma dose de heroína através das veias de um viciado. As substâncias proibidas o atraíram desde a juventude. Quando adolescente, foi expulso de um conceituado colégio interno no Novo México por ingerir hidrato de cloro, um sedativo usado para anestesiar ratos de laboratórios.

Nos anos 1950, ele passou vários meses perambulando pela América do Sul em busca de uma poção psicodélica chamada yage, que, supostamente, proporcionava poderes telepáticos. (a beberagem atualmente é conhecida como Santo daime, ayhuasca ou vegetal)

Burroughs chegou a usar os três mil dólares que recebeu de adiantamento pela sua obra-prima, Almoço nu, para comprar heroína. Além das “picadas”, ele apreciava também cogumelos mágicos, maconha, haxixe e morfina – o que quer que estivesse disponível na temporada. Tentou inúmeras curas para ajudá-lo a abandonar o “hábito”, incluindo o famoso tratamento com apomorfina criado pelo dr. Jonh Yerbury Dent, mas nada durou muito tempo. No final, Burroughs resignou-se a viver em lugares onde pudesse obter drogas de maneira barata e/ou legal, e escreveu sobre a experiência com o vício em suas obras.

O ultraje causado pelo consumo de drogas e pelo estilo de vida abertamente homossexual o transformou em um alvo fácil para censores e repressores de todos os tipos. Em 1962, Almoço nu esteve no centro de um dos maiores julgamentos por obscenidade nos Estados Unidos e o livro foi considerado indecente pelo Commonwealth de Massachusetts. A decisão seguiu-se a um julgamento sensacionalista durante o qual Allen Ginsberg, Norman Mailer e outros testemunharam em defesa da obra. Mais tarde, a decisão foi anulada pela apelação.

Apesar de ter adquirido o status de cult nos anos 1970 – em parte pelo seu esmerado gosto por chapéus – Burroughs nunca foi totalmente aceito nos meios literários. Foi empossado na Academia Americana de Artes e Letras somente em 1983, após uma intensa campanha de Iobby encabeçada por Ginsberg. Burroughs parecia preferir a companhia de estrelas do rock, e pode-se incluir Lou Reed, David Bowie e Patti Smith entre os seus muitos admiradores.

Depois de passar a maior parte da década de 1970 festejando com a turma do Studio 54, em 1983 ele mudou-se para Lawrence, Kansas, para passar os seus últimos quatorze anos num completo torpor induzido pelas drogas. Quando morreu de parada cardíaca em 1997, com a incrível idade de oitenta e três anos, havia sobrevivido aos seus companheiros da Geração Beat, mais jovens e menos quimicamente dependentes, Kerouac e Ginsberg, por vinte e oito anos e quatro meses, respectivamente.

O estrago da agulha


O vício de Burroughs em heroína era poderoso e devastador. Certa vez ele vendeu a máquina de escrever para comprar uma dose, reduzindo consideravelmente a sua produção literária devido ao esforço que tinha de fazer para escrever à mão. Em outra ocasião, ele confessou ter se privado de tomar banho e trocar de roupas durante um ano, uma opção de estilo de vida que deve ter agradado muito aos seus amigos e vizinhos. Entre uma dose e outra, Burroughs ficava sentado olhando para o espaço por dias seguidos. “Eu podia ficar olhando a ponta do meu sapato por oito horas”, ele certa vez relatou.

Síndrome de Guilherme Tell

Matar a própria esposa poderia ser um deslize capaz de encerrar a carreira de qulquer autor – e da maioria das pessoas, na verdade –, mas parece que não atrapalhou muito o avanço de Burroughs. Em 1951, durante uma festa em sua casa no México, Burroughs e a esposa, Joan, decidiram regalar os convidados com a sua primorosa imitação de “Guilherme Tell”.

Joan equilibrou um copo na cabeça, enquanto Burroughs fazia a mira com a sua pistola de calibre 38 mm. (Aparentemente, a questionável sensatez de um viciado em heroína completamente “chapado” estar praticando tiro ao alvo com uma viciada em benzedrina não ocorreu a nenhum dos presentes.) Burroughs errou o alvo, explodindo os miolos de Joan e matando-a instantaneamente. Fim da festa. Após um intrincado procedimento legal no México, que envolveu alguns subornos para as pessoas certas, Burroughs teve permissão para sair do país e foi condenado por homicídio in absentia. Recebeu dois anos de suspensão da sentença.

Quando qualquer outro homem poderia ter ficado arrasado pela culpa, Burroughs preferiu encarar as coisas pelo lado positivo: “Sou forçado à terrível conclusão de que jamais teria me tornado um escritor se não fosse pela morte de Joan”, ele escreveu mais tarde. “A morte de Joan me fez entrar em contato com o invasor, o Espírito Horrível, e direcionou-me para uma luta que irá perdurar por toda a minha vida, na qual não tenho outra escolha exceto escrever para me libertar”.

Obrigado pelo almoço, Jack

A mais memorável obra de Burroughs ostenta um dos títulos mais intrigantes da história literária: Almoço nu. A isso devemos agradecer Jack Kerouac. Burroughs inicialmente planejava intitular o romance de Interzone, numa referência à “zona internacional” em Tânger, onde ele escrevera a maior parte dos seus fragmentos. Mais tarde ele escolheu um título mais sensacionalista, Naked lust (luxúria nua). Certo dia, Kerouac estava visitando Burroughs em seu refúgio marroquino quando pôs os olhos no manuscrito que estava no outro lado da sala, e leu o título erroneamente como Naked lunch. Burroughs achou tão engraçado que manteve o título daquela maneira – e assim nasceu um clássico literário.

Você não gosta de mim?

Apesar da diferença de idade de doze anos, Burroughs e Allen Ginsberg tiveram um caso breve e torridamente sensual no início dos anos 1950. A união acabou em chamas, contudo, quando Burroughs se apaixonou pelo seu protégé. “Bill queria um relacionamento no qual não houvesse barreiras”, Ginsberg escreveu tempos depois, “para alcançar a extrema união telepática entre as almas”. Mas quando chegou a hora do rompimento com Burroughs, Ginsberg foi um pouco menos eloquente na sua escolha de palavras: “Não quero mais esse seu pau velho e feio”, ele lhe disse. Muitos anos se passaram antes que os dois homens retomassem a amizade rompida.

Faz de conta que sou Xenu

Para um escritor tão obcecado com o controle da mente, Burroughs parecia ser a pessoa menos provável de se converter à Cientologia. Porém, no final dos anos 1960, ele se tornou um seguidor entusiasmado do sistema de crença baseado em alienígenas criado pelo autor de ficção científica L. Ron Hubbard.


Chamando a Cientologia de “verdadeira ciência da comunicação”, Burroughs começou a pregar seu evangelho por toda Londres, onde morava na época. Até se submeteu ao chamado Joburg, uma exaustiva “checagem de segurança” sexual e criminal aplicada aos adeptos da Cientologia.

Depois de alguns meses, Burroughs optou por sair, declarando: “A Cientologia foi útil para mim até que se tornou uma religião, e para mim a religião não tem utilidade alguma. Trata-se apenas de mais uma dessas ‘viagens’ de viciados em controle e podemos muito bem passar sem eles”.

Membro da banda

Com sua personalidade rebelde e sua técnica estética radical, Burroughs tinha uma afinidade natural com o mundo do rock. Como muitas pessoas hoje sabem, a banda Steely Dan extraiu seu nome do Steely Dan lll from Yokohama, um enorme pênis de borracha descrito em Almoço nu. O termo heavy metal também foi criado por Burroughs. Este aparece em seus romances The soft machine e Nova express como metáfora para as drogas pesadas.

Já mais tarde em sua vida Burroughs desenvolveu íntimo relacionamento de colaboração com vários artistas do rock, incluindo Tom Waits, Nick Cave e Genesis P-Orridga do Throbbing gristle. Seu bom amigo Kurt Cobain até mesmo lhe pediu para que aparecesse como Jesus Cristo no “clipe” para a música do Nirvana Heart-shaped box, mas Burroughs recusou o convite. Em 1992 ele de fato participou de um clipe com Cobain, intitulado The priest they called him.

Um dos colaboradores cujas idéias mais se assemelhavam às de Burroughs foi Al Jougensen, o vocalista da banda metaleira “industrial” Ministry, de Chicargo. Burroughs e Jougensen compartilhavam a mesma paixão por heroína, à qual se entregaram juntos em pelo menos uma ocasião.

“Burroughs não vive nesse planeta”, Jougensen comentou após a memorável sessão de picadas. “Basicamente, nós falamos sobre como erradicar os raccoons do seu jardim de petúnias. Finalmente decidimos que deveríamos dar-lhes uma dose de metadona. Isso os deixaria lentos o suficiente para que Bill pegasse a sua 38 e desse uns tiros para assustá-los”.

Uma vez que solucionaram o problema das pragas, foram capazes de tratar de negócios, Burroughs aparece como convidado especial na gravação da música Just one fix, do Ministry, numa participação em que declama os versos da letra.

Ao vivo de Nova York... William Burroughs!

A primeira e única aparição de Burroughs num programa de tevê foi também um dos mais bizarros encontros de convidados nos anais das comédias de fim de noite. O fato ocorreu no dia 7 de novembro de 1981, quando o ícone literário de sessenta e sete anos “deu uma passadinha” nos estúdios do programa Saturday Night Live, aceitando o convite do roteirista Michael O’Donoghue.

Sendo fã incondicional da obra de Burroughs, O’Donoghue conseguiu convencer Dick Ebersol, produtor do SNL, a permitir que o autor fizesse uma leitura ao vivo no programa daquela noite. No ensaio geral – durante o qual Burroughs balbuciou trechos de Almoço nu e Nova express tendo ao fundo os acordes de Star spangled banner – o desempenho provou ser tão bizarro que Ebersol ordenou a O’Donoghue que cortasse os seis minutos originais para apenas três.

Um conturbado O’Dunoghue ignorou completamente as instruções do produtor e Burroughs obteve permissão para arengar durante seis minutos inteiros. Sua lenga-lenga surrealista a respeito das explosões nucleares e sobre cirurgias para extração de apêndice realizadas por médicos embriagados deixaram a platéia atônica, remexendo-se nervosamente, sem saber se aquilo se tratava ou não de um número humorístico. Mas tudo entrou nos eixos rapidamente quando o convidado musical “super freak” Rick James e o elenco liderado por Eddie Murphy e Joe Piscopo reassumiram o controle do programa.

Lâmina por encomenda

Os espectadores mais atentos do filme clássico de ficção científica noir de Ridley Scott, Blade runner (O caçador de androides), lançado em 1982, talvez tenham reparado no nome Burroughs nos créditos. O título do filme foi um cumprimento ao autor de Almoço nu que, por volta daquela época, estava fazendo circular um roteiro chamado Blade runner, mas que nada tinha que ver com o filme de Scott ou com o romance O caçador de androides, no qual o filme foi baseado.
Apenas a título de curiosidade: o roteiro de Burroughs era sobre um grupo de contrabandistas adolescentes chamado “Blade runners” que fornecia instrumentos cirúrgicos proibidos a médicos, num futuro fascista onde os Estados Unidos eram comandados pela polícia secreta.

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