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quarta-feira, abril 08, 2015

Os bares morrem numa quarta-feira


Paulo Mendes Campos

Um amigo de Kafka conta que este arquitetava o seguinte: um homem desejando criar uma reunião em que as pessoas aparecessem sem ser convidadas.

As pessoas poderiam se ver ou conversar sem se conhecerem. Cada uma faria o que lhe aprouvesse sem chatear o próximo.

Ninguém se oporia à entrada ou à saída de ninguém.

Não havendo propriamente convidados, não se criariam obrigações especiais para com o anfitrião. E o espinho da solidão doeria mais ou menos.

É possível que Kafka não haja escrito esta alegoria por ter percebido que a mesma já existia corporificada sob a forma de cafés, restaurantes e bares.

Mas o episódio pode levar-nos a considerar com súbita estranheza o mil vezes conhecido: os bares já eram kafkianos quando surgiram no mundo.

Ou este, o mundo, é que foi o primeiro bar, quando se encontraram num jardim duas criaturas desconhecidas, e à mulher, buscando comunicação, ofereceu ao homem uma fruta.

Naquele Garden Bar principiaram os equívocos. Foi o primeiro ponto de encontro. E não durou muito.

Pois os bares nascem, vivem, parecem eternos a um determinado momento, e morrem. Morrem numa quarta-feira, como dizia Mário de Andrade.

O obituário dessas casas fica registrado nos livros de memórias.

Recordá-los, os bares mortos, é contar a história de uma cidade. Melhor, é fazer o levantamento das cidades que passaram por dentro de uma única Idade.

Mesmo num lugar como Paris, que apesar dos pesares procura preservar a imagem histórica, os cafés de Léon-Paul Fargue não foram os cafés de Alphonse Daudet, e este não respirou atmosfera dos cafés de Stendhal.

O curioso é que os bares do presente, por seus serviços e por sua frequência, podem merecer até o nosso entusiasmo, mas não recebem jamais o nosso amor.

O bom freguês só ama o bar que se foi. Só na lembrança os bares perdem suas arestas e se sublimam.

João do Rio tinha sete anos e se batia contra um enorme sorvete na Confeitaria Paschoal quando ouvia a Baronesa de Mamanguape exclamar encantada: “Oh! Senhor Olavo Bilac!”

Esta cena não se passou conosco, mas é como se tivesse sido. Seu conteúdo emocional repetiu-se na existência de todas as pessoas que frequentaram bares e confeitarias. E repetiu-se para o próprio João do Rio, que num livro de 1912 já escreve sobre a decadência das casas de chopes; ou simplesmente chopes, como eram chamadas.

Conta como esses chopes surgiram e morreram, partindo a invenção da Rua da Assembleia, nas mesas de mármore do Jacó, onde estetas, imitando Montmarte, inauguraram o prazer de discutir literatura e falar mal do próximo. Por esse tempo, uma mulher com a voz de barítono, chamada Ivone, montou um cabaré satânico na Rua do Lavradio, com tudo o que havia de mais rive gauche, inclusive recitativos macabros de Baudelaire. Era o Chat Noir, que perdeu o fôlego por falta de verba.

Outros chopes apareceram nas ruas da Assembleia e Carioca, esmerando-se os proprietários na invenção promocional; seus chamarizes são inventariados nessa ordem cronológica de João do Rio: tenores gringos de colarinho sujo e luva na mão, acompanhados ao piano; grandes orquestras tocando trechos de óperas e valsas perturbadoras; depois, árias italianas servidas com sanduíches de caviar, um chope chegou a apresentar uma harpista capenga mas formosa.

Foi aí que um empresário genial estreou um cantor de modinhas. Foi de endoidar: “A modinha absorveu o público. Antes para ouvir uma modinha tinha a gente de arriscar a pele em baiúcas equívocas e acompanhar serestas ainda mais equívocas. No chope tomava logo um fartão sem se comprometer. E era de ver os mulatos de beiço grosso, berrando tristemente: 'Eu canto em minha viola ternuras de amor, mas de muito amor...' E os pretos barítonos, os Bruants de nanquín, maxixando cateretês apopléticos”.

Na Rua da Assembleia, à meia-noite, Catulo da Paixão Cearense erguia um triste copo de cerveja para soluçar dorme que velo, sedutora imagem.

Tudo isso é narrado ainda no comecinho do século já em afinação de nostalgia; pois os chopes tinham morrido no início da segunda década. Uns poucos anos antes, só na Rua da Carioca eram uns dez; na Rua do Lavradio ficavam de um lado e do outro; alastraram-se pela Riachuelo, pela Cidade Nova, Catumbi, Estácio, Praça Onze. Num relampejar brilharam e sumiram as estrelas daquelas noites, esquecidas pela cidade, “a mais infiel das amantes”.

Mas o chope deu um jeito e conseguiu sobreviver; só mudou de cara e personalidade. Quando cheguei ao Rio, era chope o que se tomava em muitos bares famosos, hoje mortos: Túnel da Lapa, 49, Nacional, Brahma...

Aí se misturavam pequenos empregados do comércio, a gente de boa roupa e até os derradeiros malandros. No antigo Vermelhinho as mesas eram ocupadas por escritores, jornalistas, pintores, gente do palco e estudantes da Escola de Belas-Artes.

Suas figuras mais constantes eram Santa Rosa, com o cigarro pendurado na boca, Vinícius de Moraes, Rubem Braga, Lúcio Rangel, João Cabral de Melo Neto costumava chegar, conversar um pouco e, já alegando dor de cabeça, dar um pulo à Farmácia Normal.

Os artistas pretos – Heitor dos Prazeres, Ismael Silva, Solano Trindade, Abdias Nascimento – sentiam-se em casa nas cadeiras de palhinha do Vermelhinho, assim como os estrangeiros trazidos pela guerra.

Carlos Drummond de Andrade, deixando o Ministério da Educação, só passava de fininho pela Rua Araújo Porto Alegre.

Depois uma parte da turma atravessou a rua, pegou o elevador e se instalou no ajardinado terraço da ABI, passando a tomar uísque de fato escocês, porém milimetricamente dosado pelo garçom suíço Stuckert – o Estuca.

O que não se dava nas mercearias enxertadas de uisquerias. Nessas – Pardellas, Lidador. Grande Ponto, Casa Carvalho, Vilariño – o uísque era generoso, apesar de amplamente discutível sua autenticidade.

Grande animador desses bares foi o médico pernambucano Eustáquio Duarte, criador do gabarito fosfórico: pleiteou e conseguiu que a dose chegasse à altura de uma caixa de fósforos colocada em pé ao lado do copo.

Eustáquio (Totó Borum para os íntimos) intitulava-se o proletário e era autor de elaborada classificação psicofísica das mulheres (a pebologia); essa teoria era o enlevo de todos os frequentadores, notadamente do poeta Vinícius. Era ainda o médico (mas atribuía a paternidade a um tal de Fernando C. Pessoa, gerente de hotel na Bahia) autor de sonetos pornográficos da mais pura linhagem bocagiana.

Andou por esses bares ilustres – falo apenas dos que melhor conheci no centro da cidade – toda uma geração de vários sotaques.

Eneida (que, antes do Baile dos Pierrots, criou no Vermelhinho um forró carnavalesco de portas cerradas) era vista a todo momento, com seus balangandãs tilintantes, entrando no Instituto Nacional do Livro ou dele saindo.

Rosário Fusco era onipresente, deixando à porta de todos os bares um táxi à espera. Hoje esse dom da ubiquidade pertence ao corretor Luís Antônio Pontual.

Zé Lins do Rego era detectado à distância por sua gargalhada.

Com ar de menino levado e lavado, Lamartine Babo já entrava trauteando uma canção amena.

Ari Barroso, pelo contrário, turbilhonava para dentro do bar com gestos e gritos homéricos: parecia que a guerra fora declarada ou que um ônibus passara por cima dele; mas não era nada.

Por ali, entre Presidente Wilson e Almirante Barroso, circulou o Rio artístico, do fim da guerra à guerra fria, mas a verdade histórica manda dizer que a falta de transporte no fim da tarde foi também uma determinante desse comportamento boêmio.

Em dezembro de 1949 foi inaugurado o Juca's Bar, na Rua Senador Dantas: era o alívio do ar refrigerado que chegava.

Lá se instalaram rapidamente assessores do Presidente Juscelino, os irmãos Conde com o Jornal de Letras, os irmãos Chaves, que atraíam os nordestinos itinerantes.

Olívio Montenegro era contumaz e Gilberto Freyre costumava dar as caras.

Era uma mistura sensacional, estimulante. Ali todos os setores tinham suas embaixadas. Dou uns poucos exemplos:

Rubem Braga representava a prosa e Vinícius de Moraes o verso; Stanislaw Ponte Preta, o humorismo; Carlos Leão representava a arquitetura renovadora, passando a noite a desenhar mulheres mais em bom papel que um bom mineiro comprava na papelaria ao lado; o Coronel Amílcar Dutra de Menezes representava o Estado Novo em geral e o DIP em particular, mas soube tornar-se amigo de velhos inimigos; Antiógenes Chaves falava em nome das classes empresariais; Zé Lins, em nome do Flamengo; o Comandante João Milton Prates representava com classe a Presidência da República; às vezes aparecia Agildo Barata ou outro rebelde histórico; Luís Jardim, chupitando seu uísque com o relógio em cima da mesa, era o próprio secretário da UDN; a jornalista Jane Braga vinha em nome do Texas; Di Cavalcanti era o ponto alto das artes visuais, embora só admitisse, por tema de conversa, literatura e mulheres bonitas; estas, por sua vez, estavam muito bem representadas na pessoa de Tônia Carrero, enquanto Araci de Almeida era o samba em pessoa.

Mas algumas brechas iam se abrindo no trânsito compacto do crepúsculo e os boêmios começaram a deixar a cidade mais cedo e a criar alma nova na Zona Sul. Em bares que iam igualmente brilhando, apagando-se e morrendo. Ou pelo menos morriam para eles.

É o caso do Alcazar e do Maxim's, em Copacabana; do Jangadeiro e do Zeppelin, em Ipanema; do Clipper, no Leblon.

No Alcazar (em cima morava o poeta Augusto Frederico Schmidt) ia o pessoal que não perdia o cinema das dez e muito menos o chope da meia-noite às duas da manhã; o Maxim's, com Sílvio Caldas e Araci à frente, absorveu todos os musicais do Vilariño; no Jangadeiro aparecia Lúcio Cardoso; ao Zeppelin afluía aos domingos uma boa torrente das reuniões da casa de Aníbal Machado; no Clipper imperavam Antônio Maria (fragorosamente) e Dorival Caimmy (de mansinho).

Mas estes bares morreram ou mudaram de personalidade como do uísque para a água, o que é mais antipático que a morte. Como morreram muitos outros que conheci no breve espaço de um entardecer que durou vinte anos.

O bar do Hotel Central, por exemplo, na Praia do Flamengo, que servia rosbife de tira-gosto e era um encanto; a Brasileira, na Cinelândia, que era mais uma confeitaria, mas onde encontrei uma tarde o vigoroso romancista católico Georges Bernanos fazendo um escarcéu de mil diabos porque não podia escrever com o escarcéu que os garçons faziam; o Segunda Frente, em Copacabana, que morreu logo depois que os sócios (um deles era o pintor Raimundo Nogueira) e seus amigos beberam a última gota do estoque antes de entrar dinheiro na caixa.

São muitos outros, mas a História dos Bares do Rio, que deveria ser escrita, precisaria ser contratada por um editor.

Por fim, ultimamente, morreu o famosíssimo Lamas, no Catete. Foi devidamente chorado na imprensa e continuará sendo lacrimejado nas centenas de bares em que se espalham hoje os remanescentes de todos esses antros de perdição.

Pois agora, quando desaparece também o Bon Marché (Avenida Copacabana, esquina de Siqueira Campos), os boêmios do Rio, tangidos pela demolição imobiliária, vivem pelos descaminhos da diáspora. Aguentou 73 anos de existência.

Aquela esquina estava predestinada a libações: em 1892, ao ser inaugurada ali defronte a estação de bondes houve um lauto lunch, com brindes de champagne ao Marechal Floriano Peixoto... à Guarda Nacional... à Armada... ao Exército... à Intendência Municipal... e à diretoria da Companhia do Jardim Botânico.

Não, houve mais um, o de honra, erguido pelo Presidente do Senado ao Marechal Floriano Peixoto e ao engrandecimento da República.

No Bon Marché, Pixinguinha animou bailes de carnaval.

Por ali passaram generais, almirantes, escritores, desembargadores, artistas, jogadores de futebol, milionários, políticos, delegados, sambistas e o sempiterno Gasolina, que aliás não passou e nunca fez nada e não saberá aonde ir quando for removido o último tijolo do prédio.

Viveram no Bon Marché algumas gerações de bêbados ilustres, de gente que bebia e se entendia e que continuará se entendendo.

Pois uma lei rege a harmonia das esferas humanas: Cristo nos convidou a amar o próximo como a nós mesmos; mas a verdade é que só os bêbados aturam os bêbados; e só os sóbrios aturam os sóbrios.

As namoradinhas do prof. Thimpor


Luiz Antonio Solda

Ana

Viciada em naftalina. Quando descobri, ela havia enchido todas as minhas gavetas com aquelas bolinhas ridículas. Fui ao cinema com Ana três vezes e em todas elas o filme estava fora de foco, o lanterninha nos retirou do recinto e roubaram nosso pacote de pipocas.

Nosso romance terminou quando ela se entregou para um vendedor das Casas Pernambucanas. Atormentada pela traição, Ana fugiu para Alagoas três meses depois. Minha paixão por Ana durou até ela tentar vender minha coleção de figurinhas carimbadas para o dono da bomboniére do cinema. Ana foi a única capaz de pagar as contas do hospital quando nossas brigas descambavam para a pancadaria e ela descia a lenha pra valer.


Beatriz.

Beatriz conquistou meu coração e meu colesterol quando amarrou os cadarços do meu sapato no rabo de gato da nossa família, um felino infeliz que acabou se suicidando num sábado chuvoso, depois de passar semanas internado numa clínica veterinária da cidade.

Nossos encontros, a maioria escondidos, se davam sempre na curva do rio, debaixo do pé de eucalipto, quando ambos torcíamos para que o jipe do prefeito não surgisse na estradinha lamacenta e nos desse um flagrante inevitável.

Num desses encontros Beatriz disse que desconfiava do meu amor, que eu não demonstrava uma ponta sequer de paixão, mas eu fiz que não ouvi, peguei minhas roupas e fui embora, sem olhar para trás, tornando as coisas mais difíceis ainda.

Assim, Beatriz passou pela minha vida, balançando o meu coreto e devorando todos os sanduíches de nossos piqueniques.


Clara.

A única dificuldade do nosso namoro foi uma irmã gêmea de Clara, Abigail, com a mesma cara, a mesma persistência e a mesma pinta na coxa esquerda. Quando eu pensava que estava com Clara, estava com Abigail, e vice-versa. Durante todo o tempo eu ficava tentando descobrir com quem estava saindo e nem podia prestar atenção no filme.

Acabei descobrindo que Clara era a voz fanhosa por acaso, ao ser esmurrado violentamente pelo amante de Abigail, um alemão parrudo, com um trinta-e-oito deste tamanho. Desiludido, pedi mais um conhaque e me apaixonei por Diana.


Diana.

Conheci Diana na Churrascaria do Julião, ao ser atingido por um cupim mal assado, arremessado por um bêbado atrevido. Diana foi quem segurou o bêbado, pagou a conta e me tornou um vegetariano incontido. Hoje passo ao largo quando ouço falar em bife a cavalo.

Tudo o que restou do nosso romance foi uma samambaia mal cuidada que enfeita a sala de costura de titia.


Gilda.

Era a única disponível na festa, estava alucinada e não sabia dançar. Mas o sábado foi magnífico e se não fosse um tango mal acabado o fim de semana teria sido perfeito.


Hortênsia.

Ela se recusou a dizer seu nome durante semanas e foi nesse período que gastei todas as minhas economias em pescarias insossas e pacotes de algodão doce, sem falar nos pés-de-moleque. Uma paixão passageira, mas gratificante.


Lúcia.

Apaixonou-se subitamente pelo Caubi Peixoto, arrumou as malas e viajou para Minas, levando parte da minha vida e o dinheiro do aluguel da quitinete.


Maria.

Argentina. Maria Ornitorrinco sumiu quando voltei com os ingressos para o teatro. Quem souber do seu paradeiro é favor avisar que a peça estava ótima.

Um parlamentar mudo


Félix Valois

Pensei que já havia visto de tudo nesta vida. Nos festivais, os bois voam; na República, os ladrões são senhores; no mundo, o terrorismo bota banca. O quê, então, haveria de me faltar à contemplação?

Assim pensando, eis que sou tomado de monumental surpresa, que veio acabar com essa minha tola pretensão de onisciência, digo melhor, de onivisão, porque de conhecimento mesmo, bem sei das minhas limitações e carências.

E qual teria sido o fato causador de tamanha perplexidade, capaz de abalar a serena placidez da minha velhice?

É simples: li nos jornais que, na Câmara Municipal de Manacapuru, os ilustres edis aprovaram uma resolução (não sei o termo técnico é exatamente esse), por via da qual proibiram um de seus pares de usar da palavra por noventa dias.

O homem pode até comparecer às sessões do augusto parlamento, desde que mantenha a boca rigorosamente fechada, sem nem ao menos piar, sob pena, suponho, de que lhe cassem a palavra, ou, talvez, o mandato.

Meu caro leitor, eu lhe pergunto: onde é que já se viu uma coisa destas? Um parlamentar que não pode discursar é tão escasso quanto um trevo de quatro folhas, sendo que estes parece que surgem por simples deformação genética no reino vegetal, enquanto a outra espécie decorre de deliberada decisão de seres supostamente pensantes.

Cícero, que empolgava o senado romano com sua oratória fulgurante, há de estar repetindo no túmulo sua tradicional advertência: “Até quando, Catilina, abusarás da nossa paciência?”

Claro que nunca deve ter passado pela cabeça do tribuno amordaçar o encrenqueiro Catilina.

Admitamos que a verificação de presença, lá na Câmara de Manacapuru, seja feita pela chamada nominal de seus eméritos componentes.

Quando chegar a vez de o mudo responder “presente”, cuido que só lhe restam algumas alternativas, todas elas bizarras: levantar-se e orgulhosamente bater com a mão no peito, para indicar que está cumprindo sua obrigação elementar; ou levantar uma placa, onde se leia “estou aqui”, agitando-a freneticamente para que o secretário realize a devida anotação.

Pode ele, ainda, se dispuser do artefato, enviar mensagem por código Morse, valendo-se do tradicional telégrafo, que ainda deve ser usado por quem conseguiu realizar a proeza de que se cuida.

Na remota hipótese de que a modernidade cibernética já tenha batido às portas daquele parlamento, poderá então o sem língua usar um celular ou um computador, enviando a tal mensagem de presença por via de uma dessas invenções, úteis mas chatas, a que os aficionados do ramo chamam SMS, e-mail, ou, no amazonês mais puro, simplesmente zapzap.

Essa pândega me fez recordar outras situações folclóricas que a tradição popular incorporou.

Conta-se que, em certo tribunal brasileiro, o acúmulo de papéis estava adquirindo proporções alarmantes. Centenários autos de processo se amontoavam em depósitos insalubres, colocando em risco a saúde do infeliz funcionário que com eles tivesse que lidar.

Foi instituído o clássico “grupo de trabalho” para diagnosticar a situação e sugerir medidas que pudessem resolver o problema. Pagaram-se jetons e diárias, houve reuniões extraordinárias e peritos de alta especialização foram ouvidos. Ao cabo de mais de seis meses de ingentes esforços, o chefe do grupo orgulhosamente assinou o relatório final, recomendando de maneira singela que os papéis que já não tivessem utilidade (o que era praticamente a totalidade) fossem incinerados.

Foram-no? Acredito que sim, pois foi do seguinte teor o despacho final, com a deliberação do presidente da Corte de Justiça: “Tendo em vista que no bojo do material a ser destruído, podem existir documentos que sejam de interesse histórico, autorizo a incineração, desde que todos os papéis sejam devidamente fotocopiados e arquivadas as fotocópias correspondentes. Cumpra-se”.

As cópias, por serem novas, não haveriam de estar mofadas, de forma que Sua Excelência matou dois coelhos com uma só cajadada.

Por essas e outras é que não me provocou espanto a leitura de um texto engenhosamente elaborado por um poeta de língua portuguesa.

Dado à contemplação dos fenômenos naturais, o vate sempre se extasiava com os crepúsculos matutino e vespertino, admirando-lhes a fulgurância das cores e restando empolgado com o processo repetitivo do nascer e do pôr do sol.

Mas era um filósofo o nosso bom poeta. E a dúvida, essa fazedora de sapiências, foi crescendo em seu íntimo, acutilando-lhe a curiosidade.

Resolveu traduzi-la na forma em que era mestre, legando à humanidade estas preciosas reflexões: “Uma coisa neste mundo/ Que não posso compreender/ É o sol nascer de dia e de noite se esconder/ Dia é dia, ora essa/ Que vem cá o sol fazer?/ De noite, sim, que é escuro/ É que devia aparecer”.

Temos, pois, que o episódio de Manacapuru, coloca a terra de Ajuricaba na vanguarda do parlamentarismo moderno.

Acabamos de criar o primeiro parlamento do mundo em que é proibido discursar.

Se tomarmos como exemplo o que acontece no Congresso Nacional, a partir de algumas legislaturas e tendo como parâmetro certos pais da pátria, seremos forçados a convir em que a medida não é de todo descabida.

Antidemocrática, inusitada e inexplicável, mas… da maneira como discursam alguns parlamentares…

Convenhamos mesmo.