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sábado, maio 07, 2016

Uma pequena história da Ciranda


Conheci a advogada Débora Sávia na “Casa do Veraneio”, da Gracionei Medeiros, em meados dos anos 90, e, depois de alguns minutos de conversa, soube que ela era uma das filhas do saudoso professor, pesquisador, escritor e folclorista José Silvestre do Nascimento e Souza, o responsável por ter trazido a ciranda de Tefé para Manaus. A advogada me apresentou ao seu pai.

Em uma das inúmeras conversas que tive com ele, Silvestre me contou a seguinte história:

Março de 1963. Professor de Português do Colégio Comercial Sólon de Lucena, em Manaus, Silvestre era um guapo de pouco mais de 30 anos oriundo de Tefé. Ele havia deixado o torrão natal para continuar seus estudos superiores na capital como era prática comum entre muitos jovens nascidos no interior.

Um dia, ele foi chamado na sala da diretoria pelo diretor Bartolomeu Dias de Vasconcelos.

– Silvestre, você conhece algum cordão folclórico desses que se apresentam ao público por ocasião das festas juninas? – indagou o diretor.

– Conheço vários deles, inclusive alguns que ainda não se apresentaram aqui em Manaus, como o Papagaio Verde, a Ciranda, o Barqueiro, a Pomba e o Bem-te-vi – respondeu Silvestre. – Todas essas brincadeiras eram apresentadas pelos meus familiares na cidade de Tefé, onde nasci!

– Que bom, meu amigo, que bom! Me diz uma coisa: você quer cooperar com o nosso colégio, montando um desses cordões folclóricos da sua terra natal, que você deve conhecer de cor e salteado? – insistiu o diretor.

– Quero sim, mas desde que possa contar com o seu apoio total e sua irrestrita colaboração! – devolveu Silvestre.

– Está certo, podes contar comigo e com os demais professores do colégio! – encerrou Bartolomeu, dispensando o professor.

Silvestre recrutou os músicos, escolheu os alunos e começou a ensaiar um cordão folclórico na quadra da escola.

Dois meses depois, ele foi chamado às pressas na sala da diretoria do colégio, onde se deparou com uma senhora quase discutindo com o diretor.

– Este aqui é o professor Silvestre, madame! – disse Bartolomeu.

Sem perda de tempo, a mulher soltou logo os cachorros:

– Foi ele que faltou com o respeito com a minha filha! Foi ele! Foi ele!

Silvestre quase caiu para trás. Apesar de jovem e boa-pinta, ele era decente e íntegro até a medula. Não havia nenhuma hipótese de o professor se envolver com alguma Lolita do colégio.

Como não tinha a menor ideia do que diabos estava acontecendo, ele pediu para falar com a suposta “vítima”. Bartolomeu mandou alguém chamar a garota.

Daí a pouco entrou na sala uma menina loura, de aproximadamente 11 anos, que era uma das melhores alunas do professor.

– Minha filha, eu lhe faltei com o respeito em algum momento? – questionou Silvestre.

– Não, professor, acho que foi a mamãe que não entendeu direito! – explicou a garota. – Na semana passada, nós estávamos almoçando em família, eu, papai, mamãe e meus irmãos. Aí, ao terminar o almoço, eu me dirigi à mamãe e fiz um pedido: “Mamãe, a senhora deixa eu dançar na Pomba do professor Silvestre?...” A mamãe arregalou os olhos, ficou branca como uma defunta, quase teve um troço e, na mesma hora, me colocou de castigo!

– A sua filha tinha razão de lhe fazer aquele pedido, minha senhora! – esclareceu Silvestre. – A Pomba é um cordão folclórico que estou ensaiando no colégio a pedido do diretor, mas os brincantes têm de pedir autorização de seus responsáveis para participar da brincadeira. Se a senhora quiser pode aguardar alguns minutos até a hora do recreio, quando realizarei o ensaio com as crianças, para a senhora ver pessoalmente que não tem nada de extraordinário na dança... É apenas uma brincadeira do folclore de Tefé, como a Dança do Corrupião e a Dança do Papagaio Verde!

Ainda contrariada, a mulher questionou:

– Por que, então, o senhor não muda o nome do cordão para Dança do Pombo? Fica menos escandaloso... Dançar na Pomba, convenhamos, soa meio pornográfico...

– Vou pensar seriamente no seu caso, minha senhora! – avisou o professor, se despedindo e indo cuidar de seus afazeres.

Depois do terceiro ensaio, para evitar novas aporrinhações, Silvestre resolveu parar de ensaiar a Dança da Pomba e começou a ensaiar a Dança da Ciranda (que se tornou conhecida como “Ciranda de Tefé”), contando com a colaboração de dois conterrâneos tefeenses, Ambrósio Ramos Correa e Gaudêncio Gil.

O resultado foi a criação de um dos mais bonitos e aplaudidos cordões folclóricos de todos os tempos, que ganhou o Festival Folclórico de Manaus daquele mesmo ano.

A  segunda ciranda criada em Manaus foi a da escola Senador Lopes Gonçalves, que participou do Festival Folclórico de 1965.

Nos anos 70, foi criada a Ciranda do Ruy Araújo, na Cachoeirinha, que se tornou a maior campeã da história do Festival Folclórico do Amazonas de todos os tempos.

Para se ter uma pálida ideia, somente sob a presidência de Adelson Cavalcante, o “Adelson da Ciranda”, a Ciranda do Ruy Araújo conquistou 12 títulos consecutivos e é até hoje a única Supercampeã do Festival por ter obtido, em uma das edições, mais pontos do que todos os demais conjuntos campeões das diversas categorias.

A Ciranda do Ruy Araújo continua em plena atividade até os dias de hoje e costuma realizar seus ensaios na quadra do GRES Andanças de Ciganos.

No início dos anos 80, sob a orientação do próprio Silvestre, a professora Perpétuo Socorro de Oliveira levou a brincadeira para Manacapuru, montando a ciranda Flor Matizada na Escola Estadual Nossa Senhora de Nazaré.

O sucesso foi imediato e, rapidamente, duas outras escolas entraram na brincadeira: a Escola Estadual José Mota, que criou a ciranda Guerreiros Muras, e a Escola Estadual José Seffair, com a sua Ciranda Tradicional.

Em 1997, o prefeito de Manacapuru, Angelus Figueira, organizou o 1.º Festival de Cirandas do município, dando um caráter competitivo às apresentações, o que proporcionou um verdadeiro salto de qualidade na brincadeira.

O resto, conforme se diz, é história.

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