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terça-feira, agosto 30, 2016

'A morte é tudo', diz Jorge Mautner um mês após infarto


Mautner, em casa, com seu inseparável violino - Leo Martins / Agência O Globo
  
Por Arnaldo Bloch

RIO — Não faz muito tempo, Jorge Mautner desceu do seu mítico apartamento térreo no Alto Leblon (que parece uma casa maluca por estar na curva de uma ladeira) e passou a morar num local mais próximo de Amora, sua filha. A proximidade o salvou: no fim de julho, teve um infarto e foi resgatado com extrema rapidez por ela. Alguns minutos a mais seriam fatais. O episódio provocou reflexões no compositor e escritor, demiurgo-mor da herança tropicalista, autor de “Deus da chuva e da morte”. Nesta entrevista, ele descreve a experiência e fala do “livro-bomba”, em dez volumes, sobre sua militância nos anos de chumbo, no qual está trabalhando.

Você quase foi, mas não foi, e voltou. Descreva a experiência.

Eu estava aqui. Fiz sete horas de ginástica e deitei. Acordei com uma dor. Apertei aqui (mostra o peito). Apertei, apertei. Aí passou. Não é nada, pensei. Meia hora depois, veio a segunda, dez vezes mais violenta. Telefonei. Amora, minha filha, me salvou. Em cinco minutos estava lá embaixo o Alvim, motorista, amigo da casa. O médico, doutor Mansur, ficou pasmo de me ver: contou que no caminho para o hospital estava ouvindo “Maracatu atômico”, uma coincidência maravilhosa. Puseram os eletrodos. Parecia tudo bem. Aí veio o terceiro ataque, fulminante. Olha a isquemia!, gritaram. E já fui para a cirurgia. Foram três, para limpar as artérias e botar os stents.

A dor do infarto é quase um mito. As pessoas descrevem de várias maneiras. Qual a sua?

Pontiaguda e estilhaçante. Como uma bomba que explode no centro e vai te quebrando por dentro. Oito meses atrás fiz um exame, disseram que eu estava 100%, ia viver mais 40 anos. Mas eu sentia dores pelo corpo todo, e um cansaço. Acho que foi o cigarro. Comecei aos 69 anos. É como diz o samba de Noel: “Joguei meu cigarro no chão e pisei/Sem mais nenhum, aquele mesmo apanhei e fumei/Através da fumaça neguei minha raça chorando, a repetir:/Ela é o veneno que eu escolhi pra morrer sem sentir”. O que o samba não diz é que morrer sentindo dores horrorosas... Foi uma experiência fatal...

Quase fatal... você não morreu.

Fatal. Infarto é sempre fatal. Já capotei de carro com uma turma que se estraçalhou, voei pela porta e me recolheram, algum anjo de carro. Tive também úlcera perfurada e, há 8 anos, uma septicemia aguda. Mas essa, agora, foi fatal.

Como se sente agora?

A energia voltou assim que desentupiram as artérias e puseram os stents. É impressionante. Estou melhor do que nunca. Acabaram a dor e o cansaço. Tenho muito fôlego. Faço esportes desde os 7. Em 1958 comecei o tai chi. Até hoje fico nas bases, o tigre, a cegonha, o cavalo, a águia. Posso ficar horas vendo televisão fazendo bases. Graças a Lao-Tse, pai do taoismo. Mas tem também o Sun-tzu. Ele dizia que o ser humano já nasce malvado. Cresce, e fica pior. Os bons se nutrem do que os malvados produzem. Isso o Thomas Hobbes pegou e pôs no Leviatã e levou para Adam Smith: quanto mais egoísta, mais propiciador. A ambição e o egoísmo, tão achincalhados, seriam as qualidades mais nobres se olharmos por este ângulo.

Você está em qual categoria? Ambicioso e egoísta ou nem tanto?

Estou em todas as categorias. Eu sou o Messias.


Mautner: após o infarto e a inserção de três stents, peito aberto para o que der e vier - Leo Martins / Agência O Globo

Qual foi, e é, seu diálogo com a morte?

Nasci um mês depois que meus pais chegaram (no Brasil). Minha mãe estava abalada com as mortes dos seus parentes na guerra. Meu pai, que era da resistência, desde pequeno me iniciou nas coisas do Holocausto. Nunca mais! Tenho os selos antinazistas guardados. Fiquei com a babá que era filha de santo e me levava ao candomblé depois da missa. Ela entrava num quarto e voltava como uma rainha, me pegava no colo, e os tambores ribombavam. Eu brincava com soldadinhos de chumbo e fazia as formações das falanges macedônias. Em São Paulo eu saía do Dante Alighieri, descia a Itapeva e ia num necrotério que tinha no fundo do hospital Matarazzo. Ficava olhando, para ver como era a morte.

E como ela é?

Lembra do “deus da chuva e da morte”? A morte é tudo. O ser humano, que é 90% chimpanzé e 10% bonobo, começa a cultura dele pelas urnas funerárias. Nenhum outro animal faz isso. Ok, os elefantes de vez em quando vão ver os ossos dos ancestrais, levantam com a tromba, ficam lá meia hora e vão embora. Mas o homem cultiva. Tudo é ligado à pulsão de vida e da morte que somos nós, e que é a natureza. Uma estrela bate na outra, explode e nasce mais uma. A morte é o fundamento da vida e está sempre ligada à criação. Meu pai está morto e sempre converso com ele. O que importa? Como dizia o Nelson Jacobina, tudo que se imagina está em algum lugar. Ele trabalhou 40 anos comigo, teve uma metástase e nem a pílula mais cara, nem a metadona, melhoravam as dores. Só quando ele tocava. Em Jacareí insistiu num bis de uma hora. Drauzio Varela não entendia como. O que acha disso? Um milagre? É que os neurônios, como sempre insisto, são pura emoção.

Foi o que você pensou no hospital?

Depois do terceiro ataque me deram uma substância que a partir daí amenizou tudo e foi só felicidade... e continua. No hospital eu não pensava na morte. Ao contrário: fui imbuído de uma imensa alegria por estar com a Amora e os médicos e as enfermeiras, fazendo piadas sobre judaísmo.

Conte uma.

Bóris encontra Jacó chorando nas docas de Nova York e diz: “Sei por que você está triste. É que você está aqui na América e a família ficou na Lituânia. Aí Jacó responde: “Não, Bóris. Eu estou triste porque o navio com a família chega amanhã”. (Muitos risos). É isso: o deboche do próximo é proto-pré-nazista. A ironia salvadora é consigo próprio.

Diga mais sobre a amálgama chimpanzé-bonobo.

Nossa espécie foi a mais sanguinária. Tinham que lutar com outros chimpanzés e gorilas. A organização deles é como uma paranoia militar: cada um tem um posto e quer passar a perna no outro, exatamente como nós fazemos. Então não só trucidamos outras tribos, como, em períodos nos quais está tudo bem, tem comida para três meses, todo mundo feliz, o chefe como quem não quer nada pega um bebê, gira e quebra o crânio dele no tronco de uma árvore, para dar sinais ao outro lado do rio, onde os bonobos, uma sociedade matriarcal, os desafia e atrai. Tudo acaba em sexo e aí se forma a nova espécie. Essa guerra continuou. Quando nasci, o führer estava vivo. Quatro anos depois, eu saudava a volta da Força Expedicionária. Sou um homem de estado.

Falando em homem do estado, você está escrevendo um livro que mexe com sua experiência nos anos de chumbo.

É o livro-bomba. Fala da minha militância, durante 14 anos, no PCB. Um ano e meio antes do golpe já sabíamos. E vai até o período em que Gil e Caetano foram chamados de volta para dar alento ao povo brasileiro, que, em profunda melancolia e depressão, não acreditava na redemocratização. Mas eles não sabiam que era por isso. Era uma exigência do governo militar. Violeta Arraes tentou me demover, impedir, para dramatizar a luta armada. Eu era o velho comissário. Tem revelações incríveis. Meu papel nisso tudo. Serão dez volumes em flashback. O primeiro já está na editora.

E o impeachment?

Respondo de minha maneira diagonal. Não há abismo em que o Brasil caiba. É tudo artificial. A seca é artificial. Temos os maiores aquíferos do planeta. Não existe satélite nem foguete nem celular nem internet sem um minério chamado nióbio. Sem ele o mundo acaba. O Brasil tem 95% das reservas. Com estrada de ferro os preços cairiam 60%. Se navegássemos nos rios, 85%. Não vamos sair dessa enquanto não destinarmos 25% de tudo para educação, cultura e saúde. O resto é tudo blefe. Nunca tivemos lei nem governo. Foi o povo que fez tudo. Durante a escravidão, meses eram feriado para a Senzala ensinar tudo para a Casa Grande, inclusive como governar.

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