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sexta-feira, junho 30, 2017

Poeira de estrelas 36: Ponte Aérea I Rio de Janeiro-São Paulo


Por Luiz Carlos Miele

“Atenção, passageiros da ponte aérea com destino a São Paulo.” Não sei há quantos anos escuto essa frase dita pela voz maravilhosa de Íris Letieri, com quem, aliás, trabalhei na TV Continental, quando, acho, nem eu, nem ela, tínhamos verba para as passagens aéreas.

As primeiras viagens entre Rio e São Paulo foram feitas mesmo nos ônibus da Cometa ou Brasileiro Viação Ltda. Depois, quando as passagens passaram a ser emitidas pelas emissoras de TV ou pelos clientes dos primeiros shows é que vieram as mordomias do Electra.

Muitos anos atrás (antes do Tom Jobim ensinar que “todos os anos são atrás”), fui convidado a escrever um depoimento sobre a ponte aérea, como um dos mais assíduos usuários. É, que durante uns dez anos, trabalhei no Rio e em São Paulo, o que obrigava a necessidade de duas e às vezes três viagens semanais.

O que não fazia de mim um Mauro Salles, com quem fiquei muito impressionado. Era uma grande vocação de Ícaro, com a diferença de que Mauro não caiu, graças a Deus. Só que, enquanto eu ficava nos vôs regionais, acrescentado vez por outra um Belo Horizonte-Porto Alegre, os roteiros semanais do Mauro assinalavam Rio-São Paulo-Nova York-Brasília-Frankfurt-Ribeirão Preto-Bangcoc. Parecido com a agenda do Roberto Carlos, que em dez dias fez Rio-Nova York-Patos de Minas-Bogotá.

Os meus vôos, bem mais modestos, ficavam por conta dos programas da TV Record e, depois, pela minha participação na Mikson Tecnologia de Comunicações, que foi a maior empresa de audiovisual do Brasil e a terceira do mundo, segundo o ranking feito pelo norte-americano que tinham as duas produtoras dos primeiros lugares. Mas a Mikson chegou a uma perfeição impressionante no multivisão, conseguindo resultados formidáveis.

Tinham clientes como a GM, Fiat, Kibon, Johnson & Johnson, Kaiser, Gessy-Lever e inúmeros outros, para quem produzimos convenções memoráveis. A maioria dos clientes exigia os espetáculos dos grandes cartazes como Roberto Carlos, Simone, Gal Costa, Jorge Ben, Gilberto Gil etc, mas muitas vezes criamos temas e roteiros especiais que foram muito gratificantes para nós. Acabamos por produzir shows especiais nos Estados Unidos, Espanha, na Alemanha etc.

Na Miksom fiquei mais de 15 anos como uma espécie de diretor de criação dos eventos especiais. Os Ortalli, família dos proprietários e diretores, foram muito especiais na minha trajetória profissional. Enquanto a tecnologia avançava, eles mantinham as tradições de amizade dos italianos. O presidente continuou a se chamar seu Zeca, os filhos Carlos Augusto e Zé Francisco iam transitando pelos computadores cada vez mais sofisticados, e ele continuava como se estivéssemos nas mesmas pequenas instalações do início da empresa.

Certa ocasião, numa tarde na qual íamos receber o presidente da Ford do Brasil para uma apresentação, eu sugeri que talvez fosse providencial remover o papagaio de estimação que ficava na sala de pós-produção, proposta imediatamente rebatida por seu Zeca:

– O papagaio é do tio Nero e está conosco desde o começo. A Ford tem o seu presidente, e eu não dou nenhum palpite lá nas instalações deles.

E, assim, papagaios e computadores viveram felizes para sempre na mesma sala. Depois, a Miksom cresceu muito, e era impossível para mim continuar lá, pois a minha função exigia um profissional full-time, diariamente e desde as primeiras horas da manhã, para atender à grande demanda de produções. Mas ainda estivemos juntos no Moinho Santo Antônio, espetacular centro de entretenimento com quatro restaurantes, discoteca, sorveteria, arena de rodeios e um bar com música ao vivo (by Miele). Ficou uma grande amizade.

As amizades paulistas são muitas. Como a que tenho por muitos anos com Abelardo Figueiredo, grande produtor de espetáculos. Abelardo tem uma história que não cabe neste livro, e, por isso, o dele também já está pronto, ou quase. Vai falar de suas produções na TV, do Beco, tradicional casa de espetáculos de São Paulo, em que, durante muitos anos, os paulistas aplaudiram grandes shows. Abelardo foi a primeira pessoa que quis me colocar no palco num espetáculo que produziu no Rio de Janeiro chamado 12 Bikinis. Ele acreditava que eu podia ser um showman, mas eu não me convenci e preferi continuar apenas como assistente dele.

Na noite que antecedia a estréia, naquele nervosismo da véspera do show, fui chamado por alguém que, embora à paisana, parecia bem acostumado a dar ordens.

– Vem cá, meu amigo, você é que é responsável pelo elenco?

– Exatamente. Fala rápido que nós estamos no meio do ensaio.

– É o seguinte. Eu estou aqui para buscar a Srta. Mariela Maldonado (codinome de uma uruguaia que era a moça mais bonita do elenco). Ela tem um compromisso em Brasília e estará de volta amanhã ao meio-dia.

Sem entender, a princípio, aquele “texto” do compromisso em Brasília, eu recusei veementemente.

– Nem pensar. A estréia é amanhã. Não dá para liberá-la de jeito nenhum.

Com a mesma firmeza militar da primeira vez, ele continuou:

– Você não está entendendo, garoto. Eu tenho um jato esperando por ela na base de Santa Cruz e estou lhe informando que ela estará aqui amanhã ao meio-dia. E não há como dizer não a quem fez o convite, pois a tranquilidade da nação depende também de certos momentos de privacidade e paz. Paz e amor, naturalmente.

Informado da patente dele e da urgência do compromisso, acedi gentilmente. Realmente, no dia seguinte, ao meio-dia, lá estava ela no ensaio. Naturalmente, todos os outros 11 biquínis queriam saber dos detalhes daquela noite e eu fiquei imaginando qual teria sido o cerimonial: um primeiro drinque para relaxar, abaixar um pouco as luzes, deixando apenas a luz do abajur lilás, colocar no toca-discos uma música romântica e, então, parabadaram, parabadaram, invadem a sala os primeiros acordes do Hino Nacional Brasileiro.

Com Abelardo fiz ainda, já no palco, o espetáculo Sampa-Rio-Samba, que era exatamente essa ponte aérea. Ficamos nove meses em cartaz ao lado de Rosemary e de grande elenco. Depois fizemos também Spot Light com Miele, Ângela Maria e Lucinha Lins. Estranha mistura, não é mesmo? Mas deu certo. Grande Abelardo.


O grande pianista Pedrinho Mattar

Mais recentemente fui contratado para inaugurar uma casa chamada Café Cancun. Deveria fazer o show ao lado de Pedrinho Mattar, o mais conhecido pianista da noite de São Paulo. Mas não fomos avisados de que teríamos que disputar a atenção dos clientes com alegres e divertidas garotas da Paulicéia. Naturalmente elas tinham atributos bem mais atraentes que nossas piadas e canções, pois eu trabalhava de pé, ao microfone, Pedrinho sentado ao piano e as garotas nas mais variadas posições.

Lembro de muitas histórias de Pedrinho. Duas são particularmente elegantes. Ambas aconteceram na Baiuca, restaurante-bar que durante muitos anos foi a casa mais elegante de São Paulo.

Na primeira delas, Carmem Mayrink Veiga, então ainda Carmem Terezinha Solbiati, adentrou o bar com uma pantera negra na coleira. Carmem usava um daqueles colares maravilhosos e a outra pantera, a negra, uma coleira de pedras, espero que falsas. Carmem sentou-se elegantemente, como sempre, e a pantera ficou embaixo do piano do Pedrinho. Deve ter adorado o repertório, já que Pedrinho está entre nós até hoje.

Numa outra noite, já madrugada, apenas um cliente no bar, Pedrinho ia encerrar os trabalhos quando, para sua surpresa e emoção, entra Vivian Leigh, acompanhada por um inglês de capa de livro, ou seja, chapéu coco, bengala, colete, bigodes com as pontas reviradas etc.

Pedrinho tinha aquela lembrança dela levando o fora de Clark Gable no fim do filme famoso e atacou imediatamente o tema do filme. Mas o tal último cliente já estava para lá de Marrakesh e também de Londres. De maneira que ignorou completamente o inglês, sentou-se ao lado da estrela, botou a mão no ombro e mandou um cordial e íntimo:

– Fala, Vivian Leigh.

Em face das reclamações do acompanhante, cobriu Vivian de elogios e propostas e cobriu o inglês de porrada. Com a intervenção do leão-de-chácara, os garçons tentaram controlar a pancadaria, enquanto nossa estrela tirou os sapatos e saiu correndo pela chuva, descalça, de madrugada, pela praça Roosevelt, em São Paulo. Nunca mais se soube dela. O vento levou.

Poeira de estrelas 37: Ponte Aérea II São Paulo-Rio de Janeiro


Por Luiz Carlos Miele

“Atenção, passageiros da ponte aérea com destino ao Rio de Janeiro.” Eu sou paulista, mas, por conta das produções de O fino da bossa e do Show em Simonal, tive que ficar mais em São Paulo que no Rio de Janeiro, pois os programas eram semanais.

Durante muito tempo, os artistas que ficavam em hotel em São Paulo se hospedavam no Normandie, no início da avenida Ipiranga. Não era um hotel de cinco estrelas, muito embora hospedasse dezenas delas. Os hotéis de luxo e demais mordomias aconteceram na geração que veio imediatamente a seguir. Muitos artistas participaram dessa mutação, como Caetano, Gil, Gal etc.

Elis morava num quarto-e-sala pertinho do hotel, cheio de bonecas, as que cabiam no pequeno apartamento. E já era líder do programa mais famoso de música brasileira. Os artistas brasileiros ainda não conheciam as listas que determinavam as dezenas de itens que hoje provêm os camarins.

As listas foram copiadas dos contratos dos artistas americanos e fizeram o maior sucesso. Eu participei da geração anterior e, no início do culto dos superstars, ficava muito surpreso ao me deparar com aqueles pedidos.

Hoje apenas me divirto, mas lembro como eram os pedidos para os camarins de Tom Jobim, Elizete Cardoso ou Dorival Caymmi, por exemplo: algumas doses de uísque, café, biscoito cream-cracker, água, um cinzeiro.

Relação do camarim de qualquer estrela atual (Pop-Sertaneja-Pagodeira-do Samba ou do Axé): duas garrafas de uísque (Black Label ou Old Rarety), três garrafas de vinho Maison de la Frescure-Safra 1996 tinto (resfriado), três garrafas de vinho branco no balde de gelo (já abertos), oito toalhas (quatro brancas e quatro pretas), sabonetes (um Dove e um Soapex-medicinal), papel higiênico (menos o Neve), uma garrafa térmica com café sem açúcar, uma garrafa térmica com café previamente adoçado, uma garrafa térmica com chá (aliás duas, sem açúcar e adoçado), uma TV em cores (com canais de TV a cabo), três linhas telefônicas (uma delas bloqueada, não podendo receber ligações), uma mesa de massagens (só a mesa, o personal massage é “personal”), duas garrafas de champagne Don Perignon (fechadas), biscoitos (integrais), frutas (da estação), salgados e frios (relação à parte, sujeita a alteração dependendo de uma ou mais apresentações). E, caso se trate de uma dupla, a produção providenciará duas listas diferentes.

De qualquer maneira, a ponte aérea me transportou de uma geração para outra. Ida e volta. Logo que cheguei ao Rio, depois de uma temporada difícil no Catete e em Laranjeiras, fui finalmente levado a Ipanema e ao bar Jangadeiro. Foi como se eu houvesse entrado num filme em que todos os figurantes eram famosos.

Nas mesas, como quaisquer mortais, estavam Vinicius de Moraes, Tom Jobim, Luiz Bonfá, Rubem Braga, Glauber Rocha, Tonia Carreiro, Cesar Thedin, Marcos Vaconcelos, Jaguar, Ziraldo, Sergio Ricardo, Ronaldo Bôscoli, Albino Pinheiro, Sergio Bernardes, Caio Mourão e talvez mais umas dez ou quinze pessoas que não tinham saído (ainda) em fotos na primeira página dos jornais.

Isso foi numa terça-feira, pensei que era aniversário de alguém, mas a moça que tinha me levado garantiu que era toda tarde assim. E a noite mais ainda, é lógico. Fiquei fascinado com essa democrática aproximação com a “inteligência” carioca. Em São Paulo, você não encontrava o equivalente cultural paulista tão disponível no bar da esquina.

Como eu tinha vindo para a TV Continental, que não tinha uma grade completa de programação, passei a produzir um programa chamado Documentários de Arte. A cada semana levava alguém dessa “turma do bar”. Isso fez com que eu fosse imediatamente “adotado” por aqueles que eram os meus ídolos.

Marcos Vasconcelos, que citei no início, foi o mais importante deles. Excelente arquiteto, desenhista de humor do primeiro time, eventual compositor – escreveu para João Gilberto e Elis a letra de Samba da pergunta (“Ela agora, mora só no firmamento ou então no pensamento”) e, com seu parceiro Pingarilho, compôs ainda Samba de Rei e outras músicas – escritor de fino e raro humor (publicou Brasil, a marca da Zorra), era uma das figuras mais queridas e respeitadas pelos seus pares. Mas, de maneira estranha, foi o único deles cujo talento não ultrapassou os limites de Ipanema e do Rio de Janeiro.

Marcos ficava honestamente preocupado com minha ansiedade em tentar realizar o meu show, ou produzir em espetáculo de teatro ou dirigir um grande programa de televisão ou tentar o cinema, sem, na verdade, conseguir naquela época nenhum resultado. Sua tentativa de fazer com que eu me decidisse e me dedicasse efetivamente a uma dessas atividades se traduziu numa crônica que ele publicou no Caderno B, depois de me avisar pela manhã, pelo telefone:

“Olha aí, ô Miele, compra o Jornal do Brasil e presta atenção no recado”.

A crônica tinha o seguinte título, “A D’Ugo Miele – Um Bicho Tem Sete Cabeças” e contava a história de um empresário que procurava o dono do circo:

– O senhor é o dono do circo? Pois eu tenho uma atração especial.

– Todo dia me oferecem uma atração especial. Qual é a sua?

– Eu tenho um bicho que tem sete cabeças.

– Sei. E daí?

– Como, e daí? É um bicho com sete cabeças. Todas vivas.

– OK, tudo bem. Mas o seu bicho anda no arame?

– Não. Já disse, meu bicho é espetacular porque tem sete cabeças.

– Isso eu já entendi. Mas seu bicho é um palhaço, diverte as crianças, salta no trapézio, doma os leões?

– Não, não faz nada disso, mas tem sete cabeças. Isso não faz dele uma atração especial?

– Não. E não me interessa. Seu bicho tem muito talento, mas não tem aptidão.


O cineasta Paulo Cesar Saraceni, ícone do cinema marginal

Ainda sob o impacto do texto do Marcos, recebi um convite surpreendente do Paulo Cesar Saraceni para ser diretor de produção do filme Porto das Caixas, que se tornou um dos marcos do Cinema Novo.

Sarra tinha voltado da Europa premiadíssimo com seu documentário Arraial do Cabo, que havia realizado junto com Mario Carneiro, que seria também o diretor de fotografia de Porto das Caixas. Quando respondi que nunca havia feito cinema, além de algumas dublagens, o Sarra respondeu: “É isso que eu quero. Gente nova, com vontade de fazer.”

E foi com esse tesão, e talento é claro, que com pouquíssimas e precárias condições, ele realizou esse e outros filmes muito importantes.

Certa vez, recebi no Rio de Janeiro um diretor americano do qual não lembro o nome. Fui o cicerone para aqueles programas tipo ensaio da Mangueira. O americano havia dirigido Tai Pan e Pássaros feridos e havia sido diretor da segunda parte de Funny girl.

Mostrei o filme do Sarra para ele, que gostou muito, ficou impressionado com o material (nenhum) que o Mario Carneiro havia utilizado para algumas cenas de interiores. Perguntou quanto o filme havia custado e, quando eu disse, ele contou que com aquela verba, que era a verba total do filme, havia rodado uma cena de exatamente quatro minutos com a Barbara Streisand e o Omar Shariff.

“Atenção, passageiros da ponte aérea com destino ao Rio de Janeiro. Informando que, a partir dessa página, as histórias de Luiz Carlos Miele não obedecerão a nenhuma ordem cronológica.”

Pois bem, depois dessa aventura junto à turma do Cinema Novo, veio afinal o encontro com Ronaldo Bôscoli e o Beco das Garrafas, o que narrei em outro momento do livro. Lembro de alguns detalhes do apartamento na rua Otaviano Hudson.

Houve um tempo em que Ronaldo abrigava, além de Chico Feitosa, um rapaz chamado Luiz Carlos Dragão, pois soltava fogo pelas ventas, e este locutor que vos fala. Chico era um dos titulares da cama de casal. Mas não havia nada entre eles. Eram apenas bons parceiros. Como na canção famosa, É fim de noite, que deu ao Chico um dos mais charmosos e boêmios apelidos do Rio de Janeiro, “Chico Fim de Noite”. Charmoso e mentiroso, pois ele dormia antes da meia-noite, só ganhou o apelido por causa da canção.

Só havia a tal cama de casal. E um sofá. Acredito que foi nesse sofá que João Gilberto dormiu durante algum tempo. Usava o sofá e também algumas peças de roupa do Ronaldo. A suéter da foto da capa do seu primeiro disco era do Ronaldo. Tem também a história dele cantando O pato para Ronaldo, às quatro da manhã, que o Ruy Castro conta em seu livro Chega de saudade. Para mim, sobrou a história do sofá.

Quem chegasse mais cedo, eu ou Dragão, dormia na estrutura do sofá. O retardatário, nas três almofadas do mesmo, que a gente colocava no chão. Agora, tentem dormir em três almofadas. Cada parte do corpo fica numa delas, de maneira que, durante a noite, a bunda vai para um lado, a cabeça para outro e as pernas para uma terceira posição. Assim que a Debora Colker experimentar, teremos uma nova e maravilhosa coreografia.

O mais excitante do quarto-e-sala era o fato de que o banheiro ficava dentro do quarto do Ronaldo. Quer dizer, quando ele tinha alguma cliente no lugar do Chico, que, providencialmente, havia sido expulso para a casa dos pais, pintava o problema da ocupação do banheiro, por mim e pelo Dragão. Mas Ronaldo adorava a molecagem de embaraçar a namorada daquela noite:

– Ô Miele, pode passar para o banheiro que ela não vai reparar. Lembra dela, não lembra? Você conheceu lá no show do Tito Madi.

Era muito divertido e também muito embaraçoso. Ainda mais porque o único cobertor era todo queimado de ferro que usávamos para passar nossas camisas e que, invariavelmente, esquecíamos ligado. Ficava todo esburacado, de modo que se tornava difícil para a moça cobrir todas as partes. Muitas futuras capas de revistas encararam aquele cobertor.


As socialites Diana Vianna e Anna Maria Tornaghi

Um pouquinho depois dessa fase... bem, a aeromoça já avisou que a cronologia dançou, não foi? Houve época do Jovem Flu. Eu, Ronaldo, Nelsinho Motta, Carvana, João Albuquerque, Leonam, Paulo Cesar de Oliveira e Otavio Afonseca frequentávamos o bar das cadeiras sociais do Maracanã, vendo inclusive o jogo. Otavinho já se foi, seu falso mau humor faz uma falta danada. Ele casou com Anna Maria Tornaghi, viramos compadres e amigos para sempre.

Num dos meus aniversários, Anna preparou em sua casa uma verdadeira festa de arromba para mim. Eu levei o conjunto que fazia o show, liderado pelo Aécio Flávio. A lista de convidados da Anna Maria foi a mais divertida que eu já vi. Artistas, a turma da sociedade, jogadores de futebol, modelos, maus exemplos, tinha de tudo, como convém a uma festa bem produzida. É claro que surgem “diálogos impossíveis”, como o de Nélson Cavaquinho e o ministro Severo Gomes.

– Nélson Cavaquinho, meu querido. Eu sou um grande fã de suas músicas e de seu talento. E me preocupo com a batalha de vocês. Sei como é difícil e sacrificada a vida do artista em nosso país.

– Pois olha, doutor Severo, o senhor vai me desculpar, mas eu já acho que, no Brasil, ser ministro é que é foda.

Ninguém sabe organizar uma festa como a Anna Maria. No Brasil, ou lá fora. E ninguém sabe como ela estar em vários lugares ao mesmo tempo. Uma vez, em Nova York, um brasileiro deslumbrado começou a pegar no pé dela, que não aguentou e sugeriu:

– Meu amigo, não chateia. Vai ver se eu tô na esquina.

O chato foi, ela estava na esquina.

Mas é campeã. Lá em Nova York, ela me ofereceu outra festa de aniversário.

– Obrigado Anna. Mas nós estamos em agosto, meu aniversário foi em maio.

– Mas aqui ninguém sabe, Miele. Pode convidar umas vinte pessoas para jantar, que eu garanto uma boca-livre.

A tal boca-livre foi simplesmente no Plaza, que eu já achava caro para um jantar, eu e Anita, quanto mais para vinte convidados.

– Miele, não esquenta, dá cem dólares para o maître e deixa comigo.

Quem tem amigos como Anna Maria não morre pagão. E janta no Plaza.

De NY pego de volta uma ponte para o Rio e caio nos braços de Cesar Thedin. Um abraço ao mestre com carinho. Cesar namorou algumas das mulheres mais interessantes do Brasil. Casar, achou que só casou com Tonia Carreiro. Segundo ela, melhor amante e pior marido do Brasil.

Viveu grandes romances, um deles com Leila Diniz. Ela, maravilhosa, fazia no Rio um show cujo título era Tem Banana na Banda, no Teatro Aurimar Rocha. Depois de um dos espetáculos, lá pela meia-noite, pegou o seu fusquinha e foi sozinha, guiando até Cabo Frio, só para dormir com o César.

Naquele tempo, a estrada era péssima e foi uma aventura para chegar até lá, ainda mais para quem tinha que voltar no dia seguinte para o show. Chegou finalmente e, graças a Deus, encontrou o Cesar dormindo sozinho. A chegada dela foi uma festa, é claro. Emocionado com o rali que ela havia feito, ele não quis ficar por baixo, já que daqui a pouco iria ficar por cima.

A casa era na beira do canal de Cabo Frio, Cesar mergulhou às quatro da manhã, pescou uma lagosta com o arpão, preparou e  serviu com champagne etc. Foi o filme, ou não foi? As opiniões da turma se dividiram.

– Que mulher, heim. Guiar daqui até Cabro Frio de madrugada. Só a Leila mesmo.

– Tá certo – comentavam as outras garotas, invejosas. – Mas, e ele? Mergulhar àquela hora e preparar a lagosta...

Tempos depois, Cesar me confessou:

– Rapaz, a história da lagosta deu tanto ibope que eu passei a manter um viveiro em baixo d’água com três ou quatro de plantão. Cada mergulho, um flash.

Amigos, amigos. Negócios à parte? Nem sempre. Já trabalhei mais que uma vez com Ricardo Amaral e, mais do que amigo, eu virei seu fã. Chegamos a pensar em escrever um livro juntos, mas se eu consegui reunir algumas histórias, calculem o Ricardo.


O Rei da Noite Ricardo Amaral com sua inseparável Gisela

Fiz vários shows na pioneira Sucata, no Hippopotamus, no Metropolitan. Certa ocasião, ele me chamou a Paris, pois estava estudando a possibilidade de abrir no Rio o Crazy Horse e eu iria dirigir os shows. Fui sozinho, era trabalho, Anita ficou no Rio. Quando cheguei, o prestígio do Ricardo e do seu Clube 78 podia ser medido por uma foto do Regine, até então rainha da noite parisiense. Na foto, ela estava muito abatida, a cabeça entre as mãos e os pés dentro de dois baldes de gelo. E a legenda era a seguinte:

– Regine está desolada, Monsieur Amaral chegou a Paris.

A despeito de todas as notas que comentavam o sucesso de Ricardo por lá, fiquei boquiaberto com a verdade, “ao vivo”. A mesa dele (no La cage d’or) ficava cercada como uma espécie de tenda até ele chegar no clube. Então, com seu tradicional “alô, alô”, ele ia recebendo Liza Minelli, Soraya, Pierre Cardin, Andy Warhol e Luiz Carlos Miele. Como, além de tudo, ele colocou uma Mercedes com motorista à minha disposição, no segundo dia, lembrei que o pecado mora ao lado e, antes que batesse a meia-noite e eu virasse abóbora, liguei correndo para Anita:

– Meu bem, vem logo que eu estou morrendo de saudade.

Gisela já estava lá, é claro. Ave, Gisela. Tão generosa, amada, mas amada pra valer. Gisela adora seus amigos, suas obras sociais etc. Antes da abertura do Metropolitan, Ricardo me avisou:

– Miele, capricha na produção da missa, que dona Gisela mandou benzer a casa.

Peter Gasper, cenógrafo e iluminador, premiado, fez uma cruz linda de acrílico, efeitos especiais, fumaça etc... e a missa foi no palco, ainda em fase de acabamento. Acho que, empolgado com a cenografia, o padre, depois de uma emocionante pregação, agradeceu a Deus e a outros seus superiores, como o empresário Ricardo Amaral, que criava ali mais um campo de trabalho para várias pessoas e agradeceu também a Fiat, à companhia de cigarros Souza e ao uísque JB. Amém.

Mestre também na arte de fazer amigos, outra grande figura da noite é Flavio Ramos. Uma de suas mais famosas foi o Au Bon Gourmet, onde se realizou o memorável encontro de Tom, Vinicius, João Gilberto e Os Cariocas.

– Tom, e se você fizesse agora uma canção para celebrar a nossa união?

– Olha, ô Joãozinho, eu não poderia sem Vinicius para fazer a poesia.

– Para essa canção se realizar só com o João para cantar.

– Ah, mas quem sou eu, eu sou mais vocês.

– Que tal se nós cantássemos os três?

– Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça...

Flavio realizou outros shows memoráveis e tinha também a boate Jirau. Da madrugada, perto da hora de fechar, avisava aos poucos retardatários:

– Daqui para frente é todo mundo meu convidado, mas, em compensação, só vou colocar as músicas que eu quiser.

O que representava um grande lucro para os fregueses, pois ele possui uma das maiores discotecas de música americana que eu conheço. Sócio durante algum tempo de um restaurante em Los Angeles, foi íntimo do Sinatra, Sammy Davies e outros cantores sertanejos.

Uma noite apareceu lá no Beco, com Jimmy Van Hoisen, letrista do Sinatra e proprietário de um clube chamado Vila Capri, em Los Angeles. Queria levar a Bossa Nova para lá e foi ver e comprar o show de Simonal, Marly Tavares e Bossa 3. Mas, segundo ele, só havia um problema:

– É o seguinte: eu tenho um sócio muito chato, que vai querer empurrar a esposa dele para participar do show. Tem que dar um jeito dela dançar um inúmero.


A estrela hollywoodiana Cyd Charisse

O sócio era um cantor-canastrão chamado Tony Martin e a esposa, Cyd Charisse, dona das pernas mais talentosas e bonitas de toda a história do cinema americano, que dividiu musicais com Fred Astaire e Gene Kelly.

É claro que prometi a ele que ia tentar quebrar esse galho, mas o show não saiu. Parece que a Cyd Charisse estava disponível, mas o Bossa 3 tinha compromissos em Teresina e não deu para conciliar.

Será que essa história aconteceu assim? Bem que eu avisei no começo do livro que, com o passar do tempo, a gente vai colocando um champignon em cada história, a cada vez que conta. Na segunda edição dessas memórias, provavelmente já vou estar dançando e transando com Cyd Charisse.

Numa noite especial, a Jirau promoveu o lançamento de um compacto com Irene Singery. A música era These boots are make for walking, que havia sido gravada anteriormente por Nancy Sinatra, filha do homem. Foi um grande sucesso, mas as cópias que vieram ao Brasil se esgotaram e naquele tempo era difícil a reposição. João Araújo, presidente da Som Livre, tinha ouvido Irene cantar em uma festa e convidou-a para gravar. Foi no coquetel de lançamento que eu a conheci. Ela se apresentou:

– Você que é Miele da dupla Miele & Bôscoli? Pois vocês têm que me contratar imediatamente. Eu canto, danço. Sei que sou bonita e gostosa, divina e maravilhosa.

E era mesmo. Impressionado com aquele charme e descontração, falei dela para o Ronaldo e no dia seguinte fomos procurá-la para fazer um show ao lado do Lennie Dale, que era a grande sensação da noite carioca.

Ela concordou:

– Está bem, eu faço o show, mas quero ganhar a mesma coisa que ele.

– Mas o Lennie é uma estrela. Você vai começar agora.

– Pode ser. Mas quem vai lotar a casa sou eu. Todo o Rio de Janeiro elegante vai querer me ver.

E foi assim mesmo. Todo mundo queria ver a condessa descalça. Descalça, mas com os pés no chão. Irene fez vários programas de televisão, gravou um disco nos Estados Unidos com produção do Aloysio de Oliveira e arranjos do Oscar Neves. Depois, casou e mudou. Mudou para a ilha da Piedade, que ela transformou pessoalmente num centro de lazer maravilhoso. Tanto que foi durante algum tempo a Ilha de Caras. Quando a Irene achou que a ilha estava ficando com mais cada da revista, em vez de “ilha da Irene”, acabou com a festa. Quer dizer, com “aquela festa”, pois onde Irena estiver, ali é a festa.

Ela me convidou para fazer com ela a festa do cinquentenário do Country Clube, onde é figura queridíssima, e me abriu a porta da frente da sociedade carioca, na qual fiz amizades maravilhosas.

Poeira de estrelas 38: E vai rolar a festa


Por Luiz Carlos Miele

Na verdade, o que eu gostaria mesmo era terminar essas lembranças com uma grande festa. Em que os convidados fossem todos aqueles que fizeram essa Poeira de estrelas. Os que ainda estão conosco e aqueles que já foram para o infinito. Que já viraram estrelas, como no texto de Elis: “Agora, eu sou uma estrela.” É isso aí. Estão todos convidados.

Vejam só em que festa de arromba de repente eu fui parar. Roberto e Erasmo, que raramente são vistos juntos em qualquer outra festa, vieram prestigiar a minha. Estão compondo juntos novamente, para felicidade geral da nação. Eu mudei um pouco a letra da Festa de arromba:

Vejam quem chegou de repente
Erasmo Carlos em seu novo carrão
Roberto tira um sarro guiando um caminhão
Levando na boléia a Fafá e a Wanderléa
Eu também tô nessa, nessa festa não vou só
Pego uma carona com Chitãozinho e Xororó.
Eh, eh, que onda que festa de arromba.

Os convidados continuam a chegar. Elis passa às gargalhadas, cantando que “tá cada vez mais down no high-society”. Várias biografias da Elis ignoraram sua fase “Miele & Bôscoli”. Achavam que era politicamente incorreto uma cantora do porte da Elis ficar dançando e sapateando comigo, fazendo graça, cantar vestida de Carlitos etc. Eu adorei. E como Gonzaguinha, que está tomando uma batida de limão ali no bar, fico com a pureza do sorriso das crianças, e com a manchete do Jornal do Brasil, no dia seguinte da estréia do show com Elis: “Elis deu o salto.”

Fagner chegou que eu já vi
Tá dançando com a Rita Lee
Até Lulu Santos faz parte da patota
Saiu o Ed Wilson, mas entrou o Ed Motta
Marina diz que a festa só acaba de manhã
Emílio Santiago vai cantar com Djavan
Eh, eh, que onda, que festa de arromba


O lendário Roberto Menescal, um dos papas da Bossa Nova

E atenção, a Adeg informa: entra Roberto Menescal na festa e na minha vida. Vem com ele, é claro, Wanda Sá. Durante um show dos dois, eu comecei a fazer umas graças da platéia, até que eles me chamaram para o palco. Ficamos improvisando durante uns 40 minutos, até que o dono da casa nos convidou para fazermos juntos o próximo show.

Fizemos Uma Mistura Fina. Depois, em face do estrondoso sucesso do CD que gravamos (minha mãe comprou o outro), fizemos novo show, Apenas Bons Amigos. Daí pra frente, Menescal me convenceu de que, além de contar piadas, eu podia também cantar. O que fez com que um crítico tenha dito para ele: “Ah, então foi você.”

A festa continua animadíssima. Minha irmã Eliana está muito emocionada com a presença de tantos artistas famosos, alguns deles seus ídolo. Ela é muito emotiva e chora facilmente quando encontra um deles. Principalmente os que já morreram. Silvio Caldas pergunta para Billy Eckstine porque é que ele não senta durante uma hora antes de começar o show:

– É para não amassar o vinco da calça do smoking.

Igual ao pessoal do Rappa, não é mesmo?

Paulinho da Viola cantava na piscina
Simone no terraço, Alcione no salão
Tim Maia não vem mesmo, eu quero meu ingresso
Acabaram de chegar os Paralamas do Sucesso

Num canto da sala, Tim Maia é entrevistado pelo Otávio Mesquita, que ele insiste em chamar de Amaury Jr. Só de sacanagem, é claro:

– Ô Amaury/Otávio, já sei que você vai me perguntar sobre o negócio de drogas. Seguinte: vou declarar aqui de uma vez por todas para seus milhões de telespectadores. Eu não bebo, não cheiro e não fumo. Só tenho um defeito na vida. Minto pra cacete.

Durante toda a carreira, Tim nunca faltou a um compromisso profissional comigo. Aproveito e convido ele para fazer um show numa convenção.
– Tudo bem, Mielão. O show é só comigo?

– Não, o cliente quer três artistas bem diferentes. Você, o João Gilberto e o Baden.

– Tá legal. Então, também não vou.

É festa, é festa, é festa, é festa. Até o sol raiar. Simone chega de braços com o Ivan Lins e o Paulinho Cesar Pinheiro, autores do seu novo sucesso. Vieram juntos com o Manoel Poladian, empresário competente e muito vivo, que veio ver de perto o conjunto que tem a Cris Delano e o filho do Menesca no grupo. É o Bossacucanova, que fez um tremendo sucesso na entrega do Grammy.

Quando o livro da festa for publicado, eles já devem estar também fazendo um grande sucesso no Brasil. Se não, azar do sucesso. Eles cantam os grandes sucessos da Bossa Nova, incrementados com uma batida atual, participação do DJ Marcelinho da Lua etc. Quer dizer que o meu sobrinho, Quico, adora. Meu sobrinho mesmo. Filho da minha irmã. Tem que explicar direto se não fica aquela coisa das bichas que apresentam seu garotões:

– Oi, querido (a). Conhece meu sobrinho?

– Claro que conheço. Ele foi meu sobrinho na semana passada.

E a zoeira continua. Que vai rolar a festa, canta Ivete Sangalo, junto com a Daniela Mercury, que eu apresentei no início da carreira, no programa Coquettel, que eu fazia no SBT e que o Jô anunciava assim:

– Não percam, a seguir: Coquetetas.

Grandes Jô Soares. Ele está numa roda formidável. Não dá pra saber quem está rindo de quem. Estão todos juntos lá: os maiores humoristas do mundo. Jô, Agildo, Chico Anísio, Cantinflas, Danny Kay, Jerry Lewis, Paulo Silvino, Oscarito & Grande Otelo, Fernandel, Totó, Tom Cavalcante e todo o elenco maravilhoso da Escolinha do Barulho da TV Record, do qual adorei ter participado. Como adorei ter participado da Praça da Alegria nos domingos antigos da Globo. Eu tinha um certo preconceito idiota quanto ao humor “popular”. Aprendi com o Ronaldo Golias que só existem dois tipos de humor no mundo: engraçado e sem graça.

Falando nisso, Dercy Gonçalves aproveita para mandar tudo pra puta que pariu, principalmente a idade.



Lembro que, para a Praça da Alegria, foi o Boni que insistiu para que eu fosse escalado. O diretor de humorismo da Globo era o Lucio Mauro, que estranhou:

– Mas Boni, Miele não tem nada a ver com aqueles humoristas. O Miele está sempre de smoking nas boates, imitando aqueles musicais da Metro.

Mas Boni bateu o pé e eu fiquei durante um ano, sentado no banco da praça, onde está hoje Carlos Alberto de Nóbrega, com a maior autoridade. Que lhe foi legada por seu pai, o grande Manoel de Nóbrega, de quem eu fui assistente de estúdio, no começo da carreira. As voltas que o mundo deu, até chegar nessa festa. Aproveito para dar um abraço no Lucio Mauro e vamos rindo dessa história e de nossas próprias piadas, pois dela é que os humoristas gostam mais.

De repente, vou ficando com muita saudade dos programas dos quais falei.

Aliás, vou ficando com saudade de qualquer programa, pois estou fora da televisão há algum tempo. É difícil me acostumar com isso, pois estive na TV desde a inauguração da primeira emissora: a PRF3-TV Tupi de São Paulo. Não faz mal. Daqui a pouco alguma outra emissora convence o Boni a voltar, e a TV brasileira volta a ser uma das melhores do mundo. Acho que o Boni é insubstituível. Para mim, ele deixou a Globo num fim de semana e na segunda-feira toda a televisão brasileira piorou.


O grande mestre Astor Piazzola

Enquanto isso, ele está batendo um papo com o Astor Piazzola, como ele, um transformador. No caso do Piazzola, do tango. Por conta de uma grande amizade, Carlos Valenzuela, advogado argentino, me mandou há muitos anos vinte LPs de Piazzola, por cuja música eu havia me apaixonado. Era o primeiro disco dele, chamava-se Tango em Hi-Fi. Os vinte LPs eram iguais e andei distribuindo para os músicos e compositores brasileiros que ainda não conheciam o novo tango. Vários deles, quando iam a Buenos Aires, comentavam isso com o próprio Piazzola e, assim, ficamos íntimos sem nos conhecermos.

Quando ele veio pela primeira vez ao Brasil, para tocar numa festa da embaixada da Argentina, descobriu meu telefone e pediu para que eu apresentasse o show, lembrando que eu devia explicar o que era o novo tango, temendo que os tradicionais convidados do embaixador fossem odiar as ousadas harmonias e andamentos que ele introduziu. Não deu outra. Somente quando ele tocou Uno é que a platéia aplaudiu com entusiasmo.

Depois do show, ele perguntou quanto me devia pela apresentação e eu respondi que não devia nada, é claro, que era uma honra e tal. Mas ele queria pagar de qualquer maneira e eu disse que ficaria já muito feliz se ele fosse assistir ao show que Miele & Bôscoli orgulhosamente apresentavam como sua primeira produção no Teatro Santa Rosa, Quem tem bossa vai à Rosa, com Simonal, Marly Tavares e o Bossa Três.

Ele não só foi, como levou o quinteto com os instrumentos e pediu para tocar no intervalo, como forma de, finalmente, me pagar. A platéia, fascinada com o suingue, o talento e a pilantragem do Simonal, quase me bateu, quando eu anunciei que antes do segundo ato ia apresentar o quinteto de tangos de um amigo argentino. Pois para tirar o homem do palco, depois do primeiro número, foi um sufoco, tal o sucesso.

O próprio Simonal foi para platéia e só reiniciou o show quase uma hora depois. Eles mesmos, Simonal e Piazzola, podem confirmar isso, pois estão ali, num canto da festa, conversando com o Luiz Carlos Vinhas sobre como o Rio de Janeiro era mais divertido. Mas vem chegando mais gente pra nossa festa.

O ministro Gil, que legal
Eu já tô a mil, pinta a Gal
E Milton Nascimento, legal prazer em vê-lo
Bethânia traz Caetano e o caracol dos seus cabelos
Chega mais um craque pra cantar com nossa banda
Chico “paratodos” de Buarque de Holanda
Eh, eh, que onda, que festa de arromba.

Como todas as mulheres da festa, Chiara, minha sobrinha, fica entusiasmada com a chegada do Chico. Ela é jornalista do bloco inteligente, portanto não vai pedir uma entrevista com ele durante a festa. A jornalista fica frustrada, mas a mulher vai fantasiando uma das letras maravilhosas:

“E, na solidão do armário embutido,
Meu paletó enlaça o teu vestido
E o teu sapato ainda pisa no meu.”

Rita Lee, que não usa mais a saia justa, lembra que já arrombou a festa: “Ai, ai, meu Deus, o que foi que aconteceu, com a música popular brasileira?” Rita continua acontecendo. Cantando e compondo. E na sala ao lado, explica para Maria Rita por que nem toda feiticeira é corcunda, nem toda brasileira é bunda. Falando nisso, passa uma ótima, e eu mais o Rito Luiz vamos atrás dela. Pra ver a bunda passar.

Rito foi meu secretário-amigo-empresário durante mais de 20 anos. Quando ele se foi, prematuramente, fez muita falta, principalmente o amigo. Lembro de uma sacada genial dele. Quando chegamos em Macapá, no trajeto do aeroporto para o clube, ele me disse:

– Miele, não é por nada não, mas acho melhor você tirar aquelas frescuras sofisticadas do teu show, como a canção do Cole Porter e a Balada para um Louco. Inclusive, nem acho bom usar o smoking inglês, porque acho que seu show não vai dar pé por aqui.

– Mas não vai dar pé por quê, Rito?

– É que eu reparei que todos os hotéis são térreos.

Bem, nossa festa é numa casa maravilhosa. Nosso anfitrião é o Lula Freire e a gente lembra que, nos tempos do início da Bossa Nova, a turma da música ficava numa sala, enquanto na outra, seu pai, o senador Vitorino Freire, recebia sempre o presidente Juscelino. Conviviam todos muito bem. Eles não davam palpite nas nossas músicas e nós nunca interferimos nos destinos do país (a não ser, talvez, musicalmente). De qualquer maneira, Juscelino era o presidente bossa-nova, segundo Juca Chaves, que não era da Bossa Nova.

Vinicius chega na nossa rodinha pra confirmar essa história. Ele e Baden estavam sempre lá, sendo que o poetinha chegava a qualquer hora do dia ou da noite. Mesmo que não houvesse ninguém nem dono da casa, nem senhor ou presidente, a empregada servia um uisquinho e ficava ouvindo em primeira mão que a lua que no céu surgiu não foi a mesma que se viu brilhar nos olhos teus. Não conheci a empregada, não sei se era bonita, nem se foi inspiração para uma das frases mais surpreendentes que já ouvi do poeta:

– E então Mielinho, o cara estava com um tesão extraordinário, sabe? (risos) Um tesão insuportável, daquele tesão que a gente sentia pelas empregadas.

Vai ver que foi por isso que o Lula escreveu pra ele:

“Que seja na medida e nada mais
Feitinha pro Vinicius de Moraes.”

Minha outra irmã, Regina, vem avisar que o Eduardo Dusek não vai poder ir à gravação do meu DVD. Que pena. Não vai assistir ao número em que eu vou dançar com o Carlinhos de Jesus. Que peito, hein? Mas o Carlinhos vai fazer o número comigo só de farra. Só para mostrar que eu já me recuperei da fratura da rótula. Até quebrar, eu nem lembrava para que é que existia a rótula. Mas é incrível o que você NÃO pode fazer com a rótula fraturada.

Nesse período da cadeira de rodas-andador-muleta-bengala, Regina foi o meu anjo da guarda. Ela me lembra que, além do Carlinhos de Jesus, Simoninha, Menescal, Wanda e Guta Menezes, que toca pistom e gaita, a turma que participou do DVD, acabou de chegar. Essa foi uma maneira sutil como uma revoada de búfalos para lembrar a você, caro leitores, que, quando do fim dessa festa, o DVD também estará à venda. Assim, ao assisti-lo, você talvez possa dizer: “Gostei mais do livro.”

A turma toda já está indo embora, é quase de manhã. A festa acabou. E agora, José? Carlinhos Lyra avisa á rapaziada:

“Vamos, carioca, é hora da gente trabalhar.”

Vou apagando as luzes e na rua pego no bolso aquela garrafinha de metal para uísque, presente de uma fã. Quando tiro a tampinha, sai um gênio completamente de porre, cantando:

O show já terminou...

Mas o gênio está por fora. Meu show ainda vai continuar.

Poeira de estrelas 39: Mulheres (The End)


Por Luiz Carlos Miele

Este livro é dedicado a Irma, Eliana, Regina, Chiara e Anita, respectivamente mãe, irmãs, sobrinha e esposa. Foram, é claro, as mulheres mais importantes da minha vida. Mas o livro não é autobiográfico-familiar e fala somente das lembranças da minha vida artística. Por isso, tenho que lembrar de várias outras mulheres, ao lado das quais participei em shows e programas de TV.

Com Leila Richers, fiz o Ela & Ele na TV Manchete. A Leila é uma jornalista formidável, âncora competente de telejornais, e o Nilton Travesso, na época diretor da emissora, sugeriu a escalação de uma figura feminina, bonita e talentosa. Estava falando com ela. Infelizmente, a Manchete tinha uma audiência muito baixa no Rio e nenhuma em São Paulo. Mas foi uma grande alegria trabalhar com ela. 

Na época, ela estava terminando uma grande paixão pelo Raul Mascarenhas, o “sax-simbol” que namorou mulheres maravilhosas. A própria Leila, Fafá de Belém, Lilibeth Monteiro de Carvalho, uma seleção feminina medalha de ouro.

Certa vez, precisei de um favor para um amigo, e a Cissa Guimarães era a garota propaganda de um plano de saúde. Liguei para ela, para pedir uma indicação junto à diretoria do tal plano.

– Alô, de onde falam?

– É 3322-3834 (voz do homem).

– É da residência de Cissa Guimarães?

– Perfeitamente.

– Ela está?

– Depende. Quem quer falar com ela?

– É o Miele.

– Oi, Miele, tudo certo? Aqui é o Raul Mascarenhas.

– Porra, Raul. Toda vez que eu ligo para casa de uma mulher bonita, você é que atende...?


Raul Mascarenhas e Fafá de Belém

Houve uma época em que a dupla Miele & Bôscoli foi contratada para trabalhar ao lado das mulheres mais bonitas do Brasil. As famosas manequins da Rhodia. Chegamos lá com uma tremenda responsabilidade. Na Fenit, a Rhodia realizava shows com elenco milionário. Rita Lee, Juca Chaves, Jorge Ben, apresentação de Raul Cortez, textos de Alceu Pena. Um luxo.

Nosso contrato era maravilhoso. Morávamos numa suíte de luxo no Hotel São Paulo, jantávamos no Casserole, restaurante francês insuperável, com direito a retirar vales em dinheiro na caixa. Nunca havíamos usufruído tamanha mordomia.

Esse fausto se refletia também na produção dos shows e fizemos um trabalho muito bonito chamado Rio de 400 anos, com as modelos, Simonal, a bailarina Marly Tavares e um tremendo conjunto, formado por Luiz Carlos Vinhas, Raul de Souza, Otavio Baylli, Ruben Bassini, Jorginho Arena e Edson Machado.

Tinha um momento delicioso em que as modelos entravam de perucas Black-power com uns leques que representavam máscaras de mulheres negras. O show tinha uma luxuosa cenografia, guarda-roupa sofisticadíssimo. Mas nada disso representa a coisa mais bonita do show.


A modelo, sex-symbol e atriz Mila Moreira

A coisa mais bonita do show era Mila Moreira. Todo mundo era apaixonado por ela, mas infelizmente Lívio Rangan também. Lívio era o homem mais importante da Rhodia e tudo dependia da aprovação dele. Os cenários, o texto, a música, o elenco, as fotos, toda a campanha de lançamento dos produtos. Todo o show.

Era muito competente e um homem de extremo bom gosto, bom gosto que se traduzia também na paixão pela Mila. Os dois faziam um lindo casal. Depois dos ensaios, eles nos convidavam invariavelmente para jantar, mas eu estava mais preocupado em rever a turma da música de São Paulo, muitos dos quais tocavam em ambientes pouco recomendáveis para jantares elegantes. Assim, Ronaldo é que usufruía dos convites e os cardápios sofisticados.

Numa fatídica manhã, fui acordado às 7 horas da manhã pela secretária do Lívio.

– Bom dia, seu Miele. Seu Lívio mandou chamar o senhor imediatamente para uma reunião. O carro já vai estar na portaria do hotel.

Espantado com aquele chamado tão urgente àquela hora, abri a porta de comunicação da magnífica suíte para acordar Ronaldo. Não estava lá o meu sócio. A cama feita, onde será que o malandro se meteu? Deixei um recado e fui para a tal reunião.

Chego no escritório, encontro Lívio perigosa e italianamente dramático:

– Mas como vocês puderam fazer isso comigo? Me apunhalar pelas costas dessa maneira? (Favor ler essas frases acrescentando o sotaque italiano, indispensável para esta narrativa.)

– Que história é essa, Lívio? De que é que você está falando? (Enquanto eu respondia, uma negra suspeita começava a toldar minha mente.)

– Não finja que não sabe de nada. Não deboche da minha inteligência.

– Lívio, garanto a você que não sei do que você está falando.” (Suspeitas aumentando vertiginosamente.)

– Jura pelo nome de sua mãe italiana (descendente) que você não sabia de nada do que estava acontecendo toda noite, bem na minha cara?

– Juro (Suspeitas absolutamente confirmadas.)

– Ronaldo e Mila fugiram para o Rio de Janeiro.

Meu mundo caiu. E com ele, o salário, a posição de diretor dos shows que tinham na época uma estrutura inexistente no Brasil, as suítes de luxo, os carros com motorista, o direito aos vales em dinheiro na caixa do Casserole.

Ronaldo e Mila haviam se apaixonado, mas ele não era louco de contar para mim, pois sabia o que estava em jogo e achava que eu iria desencorajá-lo. De qualquer maneira, fui incumbido de viajar para o Rio e saber se aquela tinha sido uma atitude apenas irresponsável de dois jovens, ou se a coisa era mais séria. Peguei o avião pensando se devia usar faca ou revólver contra o Ronaldo, ou se devia partir para torturas mais lentas e dolorosas.

Cheguei no apartamento do Ronaldo, uma cobertura quarto-e-sala em Ipanema, ele e Mila estavam de roupa de banho, tomando sol no terraço, deitados em volta de um estranho drinque que ele havia inventado. Você pega a melancia, tira uma tampa, cava um pouco a polpa, enche de vodca, coloca a tampa de volta e bebe através de uns canudinhos. Esqueci por uns momentos a faca e o revólver, tal a expressão de felicidade dos dois.

– Ô Miele desculpe, mas não teve jeito. Nós estamos realmente apaixonados, e, afinal, é você mesmo quem vive falando do filme Do mundo nada se leva.

Chorei, chorei, até ficar com dó de mim, mas apenas por dez segundos:

– Então tá, Ronaldo. Me arruma um short e um canudinho, e seja o que Deus quiser.

Outro show do qual participei ao lado de mulheres formidáveis foi Regina Mon Amour, direção do Vanucci, lá no Canecão. A estrela, claro, era a Regina Duarte. No chamado “elenco de apoio” Wanderley Cardoso, José Augusto Branco, eu, Vera Fischer e Sandra Bréa. Eu e Sandra fazíamos o Money, Money, imitando a Liza Minelli e o Joel Gray, pois o show lembrava vários números dos grandes musicais americanos.

Nossa dupla fez um grande sucesso, que resultou em um novo show chamado O caso Water-Closed, infeliz trocadilho que fazia uma paródia ao caso Watergate. Depois, ampliamos nossa parceria, fazendo na Rede Globo o Sandra & Miele – programa que durou mais ou menos um ano. Era um musical bastante pretensioso, que teve erros e acertos. 

Depois disso, ela foi acometida pelo mal terrível que a levou. Mas durante seu calvário, foi uma corajosa batalhadora, enfrentado a doença com incrível coragem, participando de palestras, numa cruzada impressionante.


Sandra Bréa clicada pelo ex-namorado Antonio Guerreiro

Andy Warhol disse que a glória, hoje, dura 15 minutos. Deve ser. No enterro da atriz, que teve 19 capas de revistas num mesmo ano, estávamos eu e o Lucio Mauro. Ney Latorraca havia passado pelo velório durante a noite.

Bendito o show entre as mulheres. Já falei de Elis, é claro, e da Tuca, ao lado de quem iniciei minha carreira na noite. Na noite, porque no palco, foi no jardim da infância do Externato Irmã Catarina, onde participei de um minueto com toda aquela roupinha de Luís XIV. Na coreografia, meninos para um lado, meninas para outros. Mas eu fui para o lado das meninas, provocando uma grande gargalhada na platéia. Naquele momento pensaram que eu errei. Eu também. Mas depois de mais velho, cheguei à conclusão que foi um ato falho, que premeditava atrás de quem eu iria correr pelo resto da vida.

E sempre tive companhias maravilhosas no palco. Incluindo a Rogéria, num show esporádico, e a Valéria, ao lado de quem fiz um show muito elegante no Pujol. Eu de smoking, Valéria vestida por Azarrô. O elegante do show é que em nenhum momento ele era tratada como um travesti, mas sim como cantora. E ela é muito boa cantora.

Agora, minha companheira mais constante é Wanda Sá, mas aí, já somos três. Eu, ela e nosso guru, Menescal. Já fizemos dois shows, Uma mistura fina e Apenas bons amigos. Mas tenho recebido várias cantoras na Casa de Cultura da Universidade Estácio de Sá, onde se realiza uma programação maravilhosa, com teatro adulto e infantil, balé clássico e moderno, exposições de artes plásticas, centro gastronômico, palestras etc.

Ali já realizamos temporadas como Um brasileiro chamado Jobim, Uma Bahia chamada Caymmi, festivais de blues com músicos brasileiros e americanos, uma atividade ininterrupta durante os sete dias da semana. E agora, Quartas com Miele, em que, a cada semana, recebo uma atração musical para um talk-show.

Na entrada da Casa de Cultura, numa exagerada homenagem, existe uma estátua minha. É claro que isso não faz de mim um ídolo, porque a estátua é feita de argila e, portanto, os pés são de barro.

Babado forte no estilo ebony e ivory


O colunista Gil e o jornalista Umberto Calderaro

Maio de 1986.  O franzino colunista Gil Barbosa foi receber uma homenagem na Câmara Municipal de Manaus e ficou perdidamente apaixonado pelo musculoso Ronaldo Redman, irmão mais velho de Didi Redman, um dos diretores do GRES Vitória Régia. Ronaldo era um dos motoristas da CMM.

Conversa vai, conversa vem, o colunista convenceu o garanhão negro a visitá-lo em seu bonito apartamento, localizado na entrada do bairro de São Francisco.

Renomado abatedor de lebres, potrancas e cabritos, sem distinção, Ronaldo Redman não se fez de rogado e, na primeira oportunidade, estava acionando o interfone do apartamento do colunista Gil.

O negão levou um susto quando a envidraçada porta de correr do apartamento começou a abrir sozinha. Ele só tinha visto aquilo acontecer antes em porta de elevadores. Na casa de alguém, era a primeira vez.

Deitado numa cama king size, trajando somente um resplandecente roupão de seda indiana, Gil estava manuseando uma série de controles remotos. Um para fechar a porta, outro para ligar o ar condicionado, outro para diminuir a intensidade da luz ambiente, outro para fazer as cortinas se fecharem sobre a janela, outro para ligar a televisão e assim por diante. O negão ficou pasmo com tanta tecnologia.

– Aí nesta mesinha de centro tem uma garrafa de uísque Passport e dentro do frigobar tem bastante cerveja gelada, meu amor, sirva-se do que quiser! – avisou o colunista.

Ronaldo Redman tomou dois copos grandes cheios até a boca de “uísque à moda cowboy” e tirou gosto com seis latinhas de cervejas estupidamente geladas. A operação não durou cinco minutos.

– Se quiser, você pode colocar um filme no videocassete, meu amor! – explicou o colunista.

O negão foi até a estante, escolheu “Rambo 1 – Programado Para Matar”, colocou a fita no videocassete e começou a assistir.

Para quem não se lembra mais do enredo, John Rambo é um desorientado veterano do Vietnam. Ele está indo de cidade em cidade para reencontrar seus amigos de guerra e tentar reconstruir sua vida. Um xerife tenta fazer com que ele deixe uma cidade, mas ele se recusa e é preso. Enquanto está na cadeia, um deputado mostra prazer em torturá-lo.

Rambo foge da cadeia mostrando suas velhas habilidades de guerra e se prepara para detonar seus algozes. Mas antes que John Rambo iniciasse a carnificina propriamente dita, Ronaldo Redman já havia detonado completamente a garrafa de Passport e 24 latinhas de cerveja.


Luiz Lobão e Ronaldo Redman no Bar da Kátia

Sem dizer uma palavra, ele foi ao banheiro urinar e já voltou completamente pelado, de arma em punho. O colunista soltou um involuntário “oh!” de espanto, medo ou nervosismo. Ele nunca tinha visto uma ferramenta daquele tamanho. Nem daquela grossura.

Quase em estado de choque, Gil indicou timidamente o pote de vaselina no criado-mudo da cama. Ronaldo Redman começou a besuntar sua espada sarracena sem desgrudar o olho da televisão, onde Rambo estava matando o primeiro dos 243 mortos do filme incluindo o xerife Will Teasle.

Depois, se encaixou em cima do colunista e mandou bala, sem tirar os olhos da televisão. Os gritos do colunista sendo empalado pelo negão eram abafados pelos gritos dos sujeitos sendo mortos pelo veterano de guerra do Vietnã.

Meia hora depois, Ronaldo Redman deu os trâmites por findos. Gil estava desfalecido.

O negão abriu uma nova garrafa de uísque Passport e começou a beber diretamente do gargalo. Uns 15 minutos depois, Gil recobrou os sentidos e se dirigiu ao banheiro, lentamente, com as duas mãos apertando a cintura e se contorcendo como se quisesse desentortar a espinha.

Pra completar, o colunista tinha um defeito físico de nascença: jogava uma das pernas, o que lhe deixava com um andar mais desmantelado do que galope de vaca parida. Vendo aquela presepada, Ronaldo Redman, que não sabia que ele tinha aquele defeito físico, entrou em pânico:

– Puta que pariu, aleijei o homem! – pensou com seus botões. – Agora é bem capaz de ele não querer me dar um tostão pelo serviço...

Uns dez minutos depois, o colunista Gil Barbosa, ainda andando lentamente, ainda caminhando todo desmantelado, colocou nas mãos do negão uma pacoteira de dinheiro e desabou na cama.

Era quase cinco vezes o valor do salário que Ronaldo Redman recebia mensalmente como motorista da CMM.

O garanhão vestiu-se apressadamente, colocou a grana no bolso e se mandou, antes que o colunista começasse a sofrer uma hemorragia interna na sua frente.

Uma semana depois, Gil encontrou casualmente a socialite Lídia Redman, irmã de Ronaldo, durante uma boca livre no Parque Aquático do Rio Negro.

– Maninha, aquele teu irmão Ronaldo acabou comigo... – queixou-se.

– Foi? Por que? – quis saber a socialite.

– Ah, eu tive um babado forte com ele e no dia seguinte visitei meu proctologista. Ele me examinou e falou: “É, Gil, o negócio foi feio. No mínimo, eu vou precisar dar uns dezoito pontos internos...”

– Jura? – espantou-se Lídia.

– Juro por Deus, maninha, juro por Deus! Mas aí, eu falei: “Dê apenas dez pontos, doutor, porque, de repente, eu posso encontrar aquele negão de novo...” – arrematou Gil, se acabando de rir. Ele tinha muito senso de humor.

O lovely colunista Gil Barbosa morreu em março de 1996, de causas desconhecidas. O garanhão Ronaldo Redman jura que os dois nunca mais se encontraram. Há controvérsias.

quinta-feira, junho 29, 2017

Poeira de estrelas 31: Sarah Vaughan


Por Luiz Carlos Miele

No auge da sua carreira, Wilson Simonal era a estrela dos comerciais da Shell. A companhia resolveu colocar mais um aditivo na campanha e contratou Sarah Vaughan, uma das mais famosas cantoras norte-americanas, para fazer um show em São Paulo, ao lado do Simonal.

O show foi realizado no teatro do Tuca, e eu e Ronaldo contratados para dirigi-lo. A cantora faria uma participação especial. Além do seu repertório, cantaria duas músicas com ele.

Ela chegou como uma grande estrela e eu fui procurá-la no hotel para combinar sua participação. Durante os três dias que anteciparam a gravação, ela não me recebeu. Tudo o que eu conseguia era ligar da portaria.

Segunda-feira: – Ah, o senhor desculpe, mas hoje ela está muito fatigada com a viagem.

Terça-feira: – Oh, infelizmente, Ms. Sarah hoje tem cabelereiro e entrevista coletiva.

Quarta-feira: – Ah, como é o seu nome mesmo?

– Eu sou o Miele.

– Excuse me?

– Miele, como honey, mel em inglês, mel em italiano e francês. Miele. Eu vou dirigir o show.

– OK. Ela pediu para o senhor deixar o roteiro na portaria.

Botou uma banca tremenda. Era a sua primeira visita ao Brasil e, embora não tivesse encontrado cobras nas ruas, não levava a menor fé na produção brasileira, nem em seus músicos e cantores.

Mandou avisar que o trio que a acompanhava devia estar na abertura do show, com a orquestra brasileira. Deu azar. O arranjador era Erlon Chaves, o trio que acompanhava Simonal era o Som Três, com o magnífico Cesar Camargo Mariano no piano, Toninho na bateria e Sabá no contrabaixo.

Eu fiz o maior veneno com a turma, ficou todo mundo mordido e resolvemos salvar a honra nacional. Chamamos músico por músico. Os melhores quatro trombones, os melhores quatro pistons, os melhores cinco saxofones. Ficou uma banda superstar, é claro.

Uma abertura supercomplicada foi escrita a quatro mãos pelo César e o Erlon. Três dias de ensaio para dificultar mesmo. O primeiro encontro com a Diva foi no palco, na própria tarde do show. Discretos cumprimentos, a orquestra superensaiada, a gente fingindo que era o primeiro encontro, todo mundo se apresentando etc.

Distribuídas as partes, o trio dela a postos, acontece o milagre. Sarah Vaughan tinha trazido com ela um dos poucos bateristas americanos que era péssimo leitor. Quando ele viu a partitura, deu um olhar de tal maneira angustiada para o pianista que nos deixou radiantes. Além do mais, o arranjo tinha vários andamentos, num samba rasgado, e até aquela época, os americanos ainda não tinham pego o pulo do gato da percussão brasileira.

Tentamos duas vezes. Não deu pé. Eu, respeitosamente, dirigi-me à nossa estrela:

– A senhora vai me desculpar, mas nós temos pouco tempo, a gravação é logo mais à noite. É melhor nossos músicos assumirem.

E assim, o Toninho-Calça-Justa, do bairro da Casa Verde em São Paulo, sentou-se à bateria para substituir o Albert Henck Jr., que quebrou a cara com o nosso suingue.

Sarah Vaughan percebeu que tinha sido uma armação, mas, para nossa surpresa, achou a maior graça e ficou supersimpática. Pediu um drinque horrível para dar um clima ao ensaio. Conhaque com coca-cola. Só perdia para cerveja com ginger-ale, que eu tive que mandar buscar para a Dionne Warwick noutra ocasião.


Como não havia conseguido encontrá-la antes do ensaio, eu e Ronaldo preparamos um quadro em que ela só tinha que dizer “Yes” e, em seguida, “No” a cada pergunta do Simonal.

– Boa noite, Sarah Vaughan. Bem-vinda. É a sua primeira vez no Brasil?

– Yes.

– Já conhecia aqui a rapaziada da música brasileira?

– No.

– Quer conhecer?

– Yes.

– Então, vamos lá no meu apartamento logo mais, que eu te mostro as últimas novidades.

– No.

E assim, entre as molecagens do Simonal e as respostas dela, foi estabelecido um divertido diálogo entre os dois. Que melhorou muito, é claro, quando passou para o diálogo musical. Cantaram juntos três músicas, ela dividiu os improvisos com ele, ficou muito bom.

No momento do espetáculo, ela apareceu com uma peruca estranhíssima e o Ronaldo não perdoou:

– Está a cara da mãe do Simonal.

No dia seguinte ao espetáculo, no aeroporto de Congonhas, ela mandou me chamar para dizer que tinha sido a melhor coisa que ela havia feito fora dos Estados Unidos.

Daí pra frente, gravou um disco só com músicas brasileiras, produzido pelo Aloysio de Oliveira, com arranjos do Edson Frederico.

Daí pra frente, ficou íntima da rapaziada, trocou aquele conhaque-com-coca-cola pela caipirinha e, não faz muito tempo, foi descoberta de alpargatas Roda, comprando chuchu e abóbora-moranga na feira de Petrópolis.

Poeira de estrelas 32: Gene Kelly


Por Luiz Carlos Miele

Cantando na chuva é até hoje um dos filmes favoritos de todo mundo. Eu vi dezenas de vezes e ainda vejo. Sei de cor cada canção e vivo brincando com as pessoas sobre os nomes dos personagens:

– Como era o nome do personagem do Gene Kelly?

Ninguém lembra, claro, então eu mostro a minha impressionante erudição cinematográfica:

– Há, há... Não sabe, hein? Pois era Don Lockwood.

E assim vou levando a brincadeira em frente, perguntando sobre a Debby Reynolds (Cathy Shelden) e Donald O’Connor (Roscoe Brown). Donald O’Connor fez nesse filme aquele que é o mais divertido solo de todos os musicais, na canção em que dança com um boneco e “sobe” na parede. Sobe mesmo, dá três passos e uma cambalhota, sem truque. Sei de umas curiosidades interessantes, como a que me ensinou o pianista Zé Maria, maior cultura que conheço em termos de música de filmes norte-americanos.

Fizemos uma temporada juntos no bar do Hippopotamus, no Rio, e quando eu descobri o quanto ele sabia passei a desafiar a platéia:

– Se alguém pedir alguma música de cinema que a gente não saiba, não paga a conta. – (A gente, ele, é claro.) Nunca alguém ganhou a aposta. Lembram da história? A estrela do filme-dentro-do-filme tinha uma voz horrível, era dublada pela personagem da Debbie Reynolds. Pois na vida real, foi justamente o contrário. A Debbie Reynolds é que foi dublada pela atriz que fazia a personagem dublada por ela. Entenderam? Caso ainda tenha ficado alguma dúvida, cartas para Rubens Ewald Filho.

Uma noite, antes de um show em Fortaleza, fomos jantar na casa de Fernanda Quinderé, mãe do Maneco Quinderé, iluminador mais premiado do teatro brasileiro. Fernanda foi casada com Luizinho Eça, maravilhoso pianista e arranjador, fundador do inesquecível Trio Tamba, com Hélcio e Bebeto.

Fernanda tem uma filha maravilhosa, que me mostrou sua coleção de vídeos com os grandes musicais americanos. Quando eu comecei a botar a minha banca, com aquela baboseira do nome dos personagens, ela acabou com a brincadeira, pois sabia tudo. Todos os nomes, de todos os musicais. Derrotado na minha vaidade, eu apelei covardemente e disse que tinha uma foto ao lado do Gene Kelly e que ia mandar fazer uma cópia para ela. Fernanda interveio preocupada:

– Não promete não, que ela vai ficar me cobrando até a foto chegar.

Mandei a cópia assim que cheguei no Rio de Janeiro, depois de ter contado, de quebra, a origem da própria.

Gene Kelly foi o produtor do filme That’s entertainement, que foi exibido no Brasil com o título Era uma vez em Hollywood. No filme, aparece a cena em que ele e Fred Astaire dançam juntos, o que aconteceu apenas uma vez, enquanto os dois foram a maior expressão dos filmes musicais americanos. E Mr. Kelly veio ao Brasil para fazer o lançamento do filme. Fechou um contrato com a Rede Globo, onde faria uma entrevista para o Fantástico, falando de sua carreira, em troca de vários comerciais do seu filme. Para minha alegria, fui encarregado da entrevista. O Boni me mandou para o Copacabana Palace.

– Vai pra lá que ele já está te esperando para combinar a entrevista. E vê se consegue que ele entre no palco dançando alguns compassos do Singing in the rain.

Lá fui eu, emocionado. Na portaria do Copa, ligo para a suíte, esperando que seu agente atendesse. Acostumado com as exigência às vezes absurdas dos queridos colegas brasileiros, fiquei surpreso quando ele mesmo atendeu o telefone e gentilmente avisou que já estava me esperando.

Quando abriu a porta do apartamento quase comecei a dançar de alegria: ele estava “vestido” de Um americano em Paris. Aquele mocassim, o par de meias brancas, a calça meio curta e a camisa tipo pólo. Na maior simpatia, logo me ofereceu uma vodca-tônica e começamos a conversar sobre a entrevista.

Além de me sugerir algumas perguntas, ele fez questão de mandar escrever a ordem das mesmas num quadro-negro (não havia o teleprompter, ainda). Tudo ensaiadinho, que eles não brincam em serviço. (Depois o Daniel Filho me contou que, na transmissão do Oscar, durante os ensaios, o Fred Astaire, com setenta e tantos anos, e um dos homenageados da noite, contou quantos passos tinha que dar do fundo do palco até o microfone e ensaiou essa caminhada duas vezes.)

Terminada a reunião, fui para casa e deixei meu telefone com o Gene (atenção para a intimidade). Algum tempo depois, ele ligou, dizendo que havia esquecido a gravata do smoking, as lojas já haviam fechado (não existiam os shoppings, ainda, eu acho), se a TV se encarregava de conseguir uma. É claro que eu levei uma das minhas.

Com a autorização dele, ainda convidamos alguns amigos para a gravação e, no fim, quando ele foi me devolver a gravata, é claro que eu disse que era um presente. Então ele me deu um cartão, para que eu fosse buscá-la em Los Angeles e tomar outra vodca com ele. A turma do Pasquim publicou depois que o Gene Kelly não passava de um ladrão de gravatas.

Ah, quanto à minha pergunta a respeito da possibilidade de ele entrar dançando alguns compassos do Singing in the rain, ele riu e respondeu que podíamos conversar, mas que ia custar uma graninha. Achei melhor não perguntar quanto era e ficou por isso mesmo.

Perdi o cartão com endereço e telefone e nunca mais o vi. Quer dizer, vi nas telas, no filme Demoiselles de Rochefort. Um filme do francês Jacques Demy, que já havia feito Os guardas-chuvas do amor. Os dois filmes tiveram a música maravilhosa de Michel Legrand, mas no segundo filme, Demy quis contar a história de duas irmãs, protagonizadas por Françoise Dorleac e Catherine Deneuve, aliás, irmãs na vida real, sendo que Françoise Dorleac faleceu num acidente trágico.

Gene Kelly fez o que pôde, ou talvez não quisesse fazer nada. Foi constrangedor para ele, que, além de Um americano em Paris e Cantando na chuva, dirigiu, por exemplo, Alô, Dolly. Foi, portanto, um mestre dos musicais, e caiu na armadilha do musical francês.

De Cyd Charisse para Catherine Deneuve vai uma distância tremenda. Não porque ela fosse francesa. A Leslie Caron também era e foi ótima em Um americano em Paris, Lili e Gigi.

Mas ela era do ramo, o que absolutamente Catherine Deneuve não era. E no musical, como no humor, não dá para enganar. Ficou um “sotaque” danado. Mais ou menos como se um sueco viesse dirigir a bateria do Salgueiro.