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sexta-feira, julho 14, 2017

Palmério Dória 19: Se colar, colou


No templo desses bailes, o Bancrévea, dois conjuntos musicais dividiam Belém: o do Alberto Motta e o do Lélio. Aliás, em Belém é tudo assim: Paysandu ou Remo. Quem não é Remo ou Paysandu diz que torce pela Tuna, da colônia portuguesa. A Tuna dos bailecos era o Orlando Pereira.

O Alberto Motta mandava no solovox, Lélio no violino e Orlando Pereira na guitarra. Todos mimetizavam dois sucessos cariocas e, portanto, nacionais: Waldir Calmon, da boate Arpége, e Djalma Ferreira, da boate Drink.

Arnaldo Henriques, crooner do Alberto Motta, por exemplo, era papel-carbono do Miltinho, do Djalma Ferreira. Mas inúmeros casais se formaram ouvindo Arnaldo Henriques:

Era aquele cheiro de saudade
Que me traz você a cada instante,
Folhas de saudade soltas pelo chão,
É o outono enfim no coração,
E talvez que é cheiro de saudade,
Trago o peito tão carregadinho,
Sofro de verdade,
Fruto da saudade
Sem o teu carinho...

Havia lugares mais acanhados, mas não menos empolgantes, como o Automóvel Club do Pará, no topo do edifício Palácio do Rádio, onde dancei ao som de Jorge Ben ao vivo, em fase de lançamento diria mundial, metido no meu indefectível terninho verde – Momo, primeiro e único.

Ah, as noites de Top Set! Todos nós esperávamos ansiosamente o domingo no Automóvel Club!

Para ficar com o corpo mais leve, treinava em casa com a minha irmã, mas meu professor era mesmo o meu irmão, craque em danças de salão, que costumava abrir aqueles bailes com a maior desenvoltura.

Mas quem era o grande craque da dança de salão: Valdemar ou Dilermando?

E, com os Beatles na área, nascia o Porão, night club-ervilha no subsolo da galeria da Assembléia Paraense, o clube do hight society, onde a butique Carnaby, do Gilberto Coutinho e David Abud, vestia hoje o moderninho de amanhã.

Havia também grandes instituições culturais correndo por fora. A maior delas era, sem dúvidas, o Bar do Parque, quiosque ao lado do teatro da Paz, uma das heranças do período áureo da borracha, que colocou Belém no patamar das grandes cidades européias, mas disso todo mundo sabe.

“Tamos falando do Bar do Parque, porra!”, interrompia o poeta e letrista Ruy Barata.

Parceiro do filho Paulo André em geniais canções, comunista oficial do Estado, fazia dali a sua universidade livre, em meio aos boêmios e às putas.

Deputado federal, deputado estadual duas vezes, professor de filosofia, articulador político incansável, Ruy Barata tinha fiéis seguidores desde o Café Central, algumas quadras acima, na avenida Presidente Vargas, onde as cabeças coruscantes sentavam praça – não por acaso, Clarice Lispector morou seis mese bem ali em cima, no Hotel Central, nos anos 50.

Quando Ruy Barata se mudou para as escadarias na lateral do Teatro da Paz, o pessoal veio no vácuo.

Depois, todas as tribos se confundiram no Bar do Parque, que compreende (duplo sentido), a escadaria, tendo como elo de ligação os irmãos Farah – José e Alexandre –, gêmeos impagáveis, comunista e pândegos de carteirinha.

O Bar do Parque nasceu no momento em cercaram o Grande Hotel para o começo da demolição, um golpe de direita na memória da cidade.

Sob o comando do advogado João Batista Klautau, o doutor Joca, sócios-atletas do bar e das mesas do calçadão em frente ao requintado hotel só precisaram atravessar a rua para se alojar no novo ponto.

O dono, muito do esperto, colocou umas belas mesas e cadeiras de ferro atrás do quiosque para o pessoal discutir mais confortavelmente os temas do momento, como a Guerra dos Seis Dias.

Outra grande instituição era o contrabando, capital primitivo de algumas fortunas da “Metróple da Amazônia”.

Alguns contrabandistas só faltavam afixar na porta de suas casas e mansões uma placa com a sua ocupação. Nem precisava: estava na testa. Nos 15 anos dos filhos de alguns, saíamos sobraçando garrafas de uísque.

A rota do contrabando era Paramaribo. Trocava-se café por carrões americanos, uísque (de preferência Old Parr) e cigarro. Mas tudo vinha de fora para Belém. A Belém-Brasília ainda era uma rodovia lamacenta, volta e meia interditada pelas chuvas.

Para você ter idéia desse isolamento, a chegada do time juvenil do Clube do Remo, cuja base veio do infantil, era um acontecinento em algumas cidades do interior.

Em Apeú, como de costume, fomos recebidos com imenso carinho. Mas dentro do campo os jogadores locais viravam bicho. Davam a vida para vencer o pessoal da capital. E estavam perdendo de 1 a 0.

Na partida, transmitida por um alto-falante, os jogadores deles tinham nome, sobrenome, CPF, Unesco, o diabo. Nós éramos apenas um número: “Cinco passa para o Onze, que estica para o Nove...”

Perto do final, a torcida se aglomerou atrás de mim. Naquele tempo, goleiro podia fazer cera, e era isso o que eu estava fazendo. E tome casca de laranja, garrafas e pedras passando rente à cabeça, e a voz do locutor cada vez mais histérica.

Nisso, Chico deu um drible no zagueiro deles. Ao tentar o segundo, levou um sarrafo na boca do estômago.

Sururu estabelecido, o locutor gritava: “Pega o louro! Pega o louro!”

O único louro no campo era eu. Pegaram.

Acordei no ônibus que saiu (mais ou menos) sob proteção policial. Nossas excursões terminaram aí.

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