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segunda-feira, dezembro 04, 2017

Manaus: como eu a vi ou sonhei (4)


Por Jefferson Peres

Os filhos menores tinham hora marcada para chegar em casa, geralmente dez ou onze horas da noite. Dificilmente a hora limite era ultrapassada, pois se o fizessem teriam de bater na porta, aberta por um rosto severo que exigia do transgressor plenas e cabais explicações para o atraso.

Isto quanto aos filhos homens, porque as moças não podiam sequer sonhar em sair à noite desacompanhadas. Sobre elas o controle exercido era dos mais rigorosos. Só namoravam na sala ou no portão, à vista dos mais velhos. Passeios, festas, cinemas, apenas em companhia de alguém, nem que fosse de um irmão mais novo. Sozinha, nunca, porque ficava falada. E moça falada tinha reduzida a quase a zero suas chances de casamento.

A virgindade era um tabu dos mais respeitados. Quando ocorria um desvirginamento, mobilizavam-se as famílias do autor e da vítima para que o caso fosse abafado e o casamento realizado sem demora. Ainda assim, se a noiva casava grávida, o nascimento da criança, sete ou oito meses depois do casamento, provocava comentários maliciosos e desculpas da família de que se tratava de um parto prematuro.

Se uma garota ganhava fama de não ser mais moça, e aparecia um corajoso capaz de aceitá-la, o infeliz era ridicularizado e chamado depreciativamente de pedreiro. Porque, homem que se prezasse, não casaria jamais com mulher desvirginada. E, se casasse enganado, podia reagir de forma radical. Conheci mais de um caso de marido que foi devolver a mulher aos pais, no dia seguinte ao casamento, ao constatar que havia sido ludibriado.

Compreende-se, assim, a preocupação das moças com a própria reputação, e o cuidado especial dos pais em relação às filhas. Principalmente, se levarmos em conta que o casamento era o grande objetivo de toda mulher, educada desde pequena para isso.

A instrução formal se limitava ao primário, ao ginasial e ao pedagógico. As poucas que chegavam a fazer curso superior, geralmente Direito, visavam obter o título como ornamento, jamais com propósito de exercer a profissão.

O importante era que a moça estivesse apta a dirigir o lar e frequentar os salões. Para tanto, era necessário adquirir boas maneiras, saber tocar um instrumento, de preferência piano, e conhecer prendas domésticas, como arte culinária, flores e corte e costura.

Feito isso, a garota se concentrava, com total apoio da sua mãe, na busca de um bom partido, que devia ser médico, engenheiro, advogado ou oficial de uma das três armas. Se fosse também bonito e de boa família, representava, então a encarnação do próprio príncipe encantado com quem sonhavam todas as moças casadoiras. Era a total e plena realização do seu ideal de vida.


Não é difícil entender, portanto, por que o casamento se tornava, para toda jovem, uma obsessão, e por que o medo e a amargura, à medida que o tempo passava. Ao atingir os 20 anos sem casar, diziam que ela havia dado o primeiro tiro da macaca; aos 25 anos, dava o segundo tiro e sua ansiedade aumentava; aos 30 anos, ao dar o terceiro tiro, entrava em pânico, porque, a partir daí, encontrar o marido, só por milagre.

Com o fim da juventude, a moça estava condenada ao humilhante caritó e aos poucos ia aceitando o papel de titia, compensando sua enorme frustração com um total desvelo pelos sobrinhos.

Claro que as solteironas existem ainda hoje, mas não tem o caráter patético que assumiam no passado, especialmente quando se quedavam desamparadas e solitárias, sem nada a que se pudessem apegar.

Entre tantas que conheci, lembro-me em particular das irmãs Coelho. Eram quatro velhinhas, amigas de minhas tias, frequentadoras habituais da casa da minha avó materna. Filhas de um comerciante português, dono de uma grande casa de ferragens, que abriu falência e morreu deixando apenas dívidas.

Educadas à antiga, ricas de prendas domésticas, mas inteiramente despreparadas para a vida, nunca perderam a esperança de casar. Paupérrimas, vivendo de pensão deixada por um irmão, sempre arranjavam meios de se vestir decentemente, pintadas e arrumadas, procurando disfarçar a idade que nunca revelavam.

Era comovente ouvi-las falar com mal dissimulada satisfação sobre casamentos fracassados, acrescentando, insinceramente, pela milésima vez, que davam graças a Deus por não haver casado. Mas se traíam, ao voltar dos passeios, que frequentemente faziam, falando de imaginários flertes com rapazes muitos mais jovens que lhes teriam dirigido olhares de interesse.

Foram morrendo uma a uma, virgens e sempre apegadas a essa ilusão. A última, chamada Hilda, morreu na Fundação Dr. Thomas e, tenho certeza de que, mesmo na hora da agonia, deve ter acreditado que no último instante surgiria o noivo pelo qual esperou a vida inteira.

Noivado era compromisso muito sério, quase irretratável. Tanto que havia até um ritual. Marcado com antecedência, logo a notícia se espalhava na cidade: “fulana vai ser pedida no dia X”.

Havia um “frisson” entre as jovens casadoiras e as respectivas mães, num misto de admiração e inveja, tanto maiores quando mais importantes e cobiçados fossem os nubentes. No dia designado a vizinhança ficava na expectativa do acontecimento.

Casa iluminada, janelas abertas, os pais da moça, solenes, recebiam o emissário, que podia ser o pai do moço ou uma pessoa ilustre da sociedade, sem a presença dos dois maiores interessados. Após uma breve troca de amenidades, o visitante revelava o motivo da visita e o pai da jovem, com fingida surpresa, dava o seu consentimento.

Em seguida, servia-se uma taça de champanhe. Estava selado o compromisso, que não se rompia com facilidade. Quando isso acontecia, alcançava dimensões de escândalo.

A ex-noiva sentia-se profundamente humilhada, algumas tinham crises de choro e havia as que eram mandadas para longas viagens de cura e esquecimento.

Quanto ao rapaz, ficava malvisto como se fora um vilão, por haver “empatado” a moça tanto tempo. Os noivados podiam ser longos, estendendo-se por muitos anos. Mas o recordista, sem dúvida, foi Adriano Jorge, noivo durante 25 anos de D. Laura Tapajós, com quem afinal casou já na maturidade.


E havia até noivos eternos, que não se casavam nunca. Lembro de Mário Castro, irmão do médico Flávio de Castro. Durou mais de 10 anos seu noivado com D. Brunhilde Coutinho, de apelido Bubu. Dizem que, por algum tempo, namorou simultaneamente outra moça chamada Lindalva Bastos. Quando Lindalva morreu, ele continuou noivo de D. Bubu. Fui testemunha ocular, já que ela morava quase em frente à minha casa, na Av. Getúlio Vargas.

Diariamente eu o via chegar, por volta de 7 horas da noite. Já um homem de meia-idade, baixo, atarracado, sempre de paletó e guarda-chuva, sentava-se em cadeira de balanço na calçada e ficava conversando com a noiva até muito tarde. A rotina não se interrompeu mesmo quando D. Bubu se prostrou, vítima de doença incurável.

Apenas Mário trocou a calçada pelo quarto da enferma, com a qual certamente os diálogos mal podiam disfarçar a tristeza e a angústia ante a proximidade do fim. Mas não houve casamento “in extremis”. Pouco depois da morte de D. Bubu, ele se mudou de vez para o Rio de Janeiro, onde morreria solteiro.

Houve, porém um caso “sui generis” de casamento sem noivado e, a rigor, até mesmo sem namoro. Aconteceu com a minha estimadíssima Eldah Bitton, admirável figura que tinha o dom de render, pela simpatia e bom humor, todos que dela se aproximavam.

Eldah atravessara toda a sua juventude cuidando mais de estudos, especialmente de canto lírico, do que de namorados. Já balzaquiana (palavra tão antiga!), permanecia solteira e sem nenhuma preocupação com casamento, que não mais figurava em seu projeto de vida.

Mas, entre suas muitas amizades masculinas, incluía-se o seu tio Sabas Teles, meio-irmão de sua mãe. Médico radiologista de nomeada em Manaus, Sabas Teles, no entanto, era um esquisitão, de poucas palavras e avesso a reuniões sociais. Vivia para o estudo e o trabalho, restringindo o lazer à música e, ocasionalmente, ao cinema.

Desde o seu regresso a Manaus, formado em medicina, tinha por hábito visitar a irmã e a sobrinha diariamente, para espantar um pouco a solidão, já que morava na casa de sua mãe e não frequentava bares, clubes ou recepções.

À semelhança de Mário Castro e, por coincidência, a poucos passos de distância, no mesmo quarteirão da Av. Getúlio Vargas, ele assinava o ponto todas as noites. Ocorre que Mário ia oficialmente para namorar, Sabas nem isso, pois jamais manifestou a Eldah e à mãe, interrompido por algumas raras intervenções de Sabas, que passava a maior parte do tempo de olhos nas estrelas, alheio à conversa das duas.

Um dia, trinta anos após o início dessas visitas, sem aviso prévio, Eldah recebeu a visita de um escrevente do Cartório de Registro Civil, com os papéis, para assinar, do seu casamento com Sabas. Atônita, sem acreditar no que ouvia, ela telefonou para o tio, que confirmou tudo com a maior tranquilidade, sem demonstrar nenhuma emoção. A cerimônia teve lugar dias depois, perante as testemunhas de lei, mas nenhum convidado. Foi assim que ser realizou esse estranho casamento, sem prévia declaração de amor.


A família e a sociedade em geral eram muito mais liberais com os varões. Salvo a limitação da hora da chegada, imposta aos menores, havia ampla liberdade de locomoção, de escolha de amigos e de ambiente.

Desnecessários maiores cuidados, numa época em que não existia o problema de tóxicos. De maconha, então chamada dirijo, só se ouvia falar raramente, nas páginas policiais, envolvendo pessoas das camadas mais pobres; cocaína, só conhecíamos de novelas policiais; bolinhas também não eram consumidas; enfim, entorpecentes, de qualquer espécie, eram inteiramente estranhos aos hábitos da nossa juventude, não havendo, assim, por que os pais se preocuparem com as andanças dos filhos.

A única preocupação real era quanto ao homossexualismo. Não tanto o feminino, pois, tanto quanto eu sabia, o lesbianismo era raríssimo. O problema dizia respeito aos homens. Estes podiam ser tudo, bêbados, vagabundos ou arruaceiros, mas homossexuais, nunca. Era o que de pior podia acontecer a uma família.

Quando um garoto ou rapaz se revelava como tal, os pais e irmãos morriam de vergonha e desgosto. Alguns reagiam violentamente. Lembro-me de um, meu contemporâneo no Colégio D. Bosco, assumido, como hoje se diz, que levava surras homéricas do pai, um militar que se julgava desonrado pelo filho. Este acabou expulso de casa, indo abrigar-se na casa da avó.

Mas a hostilidade existia na escola, na rua, em toda parte. Aqueles de trejeitos mais acentuados eram perseguidos com assobios e piadas obscenas. E quando ousavam replicar, os provocadores reagiam com sonoras vaias e, não raro, com agressões físicas.

Os enrustidos, quando descobertos, eram sumariamente excluídos das turmas. Lembro-me, por exemplo, dos meus tempos de molecagem na rua Saldanha Marinho, hoje Huáscar de Figueiredo. Fazia parte do grupo um garoto chamado Celino, dos mais inteligentes e agradáveis.

Um dia, não sei como, correu a notícia de que o Celino era homossexual. Recebida com estupor e incredulidade, a nova levou algum tempo para ser assimilada. Quando não houve mais dúvida, ficou decidido que ele não mais frequentaria a roda.

Felizmente, a humilhação não se consumou. Nosso ex-colega, por iniciativa própria, não mais nos procurou, e pouco tempo depois tomava o rumo do Rio de Janeiro. Muitos outros fizeram o mesmo; alguns, talvez, para realizar o sonho da metrópole; a maioria, provavelmente, como ele, para fugir a uma atmosfera irrespirável.

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