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sexta-feira, dezembro 15, 2017

Manaus: como eu a vi ou sonhei (final)


Por Jefferson Peres

Em 1950 tinha início uma nova década e, também, a construção de um barzinho, sem nada de especial, mas que iria marcá-la profundamente. O local era um canteiro triangular, em frente ao Guarany, onde havia um antigo chafariz desativado e dois postes de sustentação da tela na qual se projetavam filmes ao ar livre.

Ao se erguerem os tapumes, correu o boato de que seria construído um posto de gasolina. A novidade não agradou os ginasianos, que ensaiaram um movimento de protesto e ameaçaram depredar a construção. Pressionado, o então prefeito Chaves Ribeiro aconselhou o proprietário a acelerar as obras, a fim de criar o fato consumado. Diante disso, foi abandonado o projeto original, de forma circular, por outro mais feio, retangular, que pôde ser construído em tempo recorde.

O êxito do bar foi imediato e se deveu a uma conjugação de fatores. Em primeiro lugar, sua localização, nas vizinhanças de dois cinemas, três colégios, um quartel, e mais, da então concorridíssima Praça da Polícia; segundo, a excelência do seu café, talvez o melhor da cidade; e, finalmente, a simpatia do proprietário, o português José de Brito Pina, extrovertido e conversador, que em pouco tempo chamava cada um dos frequentadores pelo nome.

Batizado oficialmente de Pavilhão S. Jorge, o barzinho era conhecido popularmente por Café do Pina e, mais tarde, República Livre do Pina, por constituir um microcosmo onde se reunia o que havia de mais representativo na cidade, para discutir livremente a respeito de tudo. Eram intelectuais, políticos, jornalistas, boêmios e estudantes que faziam dali o seu ponto de encontro diário. Muitos, como eu, compareciam duas vezes, ao fim da tarde e à noite. Mas havia quem desse três expedientes, como Sebastião Norões.

O Pina era a nossa cachaça ou entorpecentes. Se não tomássemos a dose diária, ficávamos inquietos e com uma sensação de vazio. Era lá que nos supríamos de informações, pois a toda hora estava chegando alguém com as últimas. As rodas se formavam em função dos assuntos predominantes. Havia a dos intelectuais, que conversavam principalmente sobre literatura e arte; a dos interessados em política, que a discutiam em nível local, nacional e internacional; a dos desportistas, cuja conversa se limitava praticamente a futebol; e dos versáteis, que falavam a respeito de tudo.

Mas nenhuma era estanque. Todos se conheciam e as pessoas ficavam circulando de um grupo a outro. Além dos habitués, que eram dezenas, muitos outros costumavam passar por lá de vez em quando. Se alguém desejava saber o que estava ocorrendo na cidade, no Brasil e no mundo, bastava dar um pulo até a República, para ficar perfeitamente atualizado. Curioso é que esse encontro diário de tantas pessoas, com pontos de vista diferentes e até antagônicos, gerasse discussões calorosas, mas sem nenhuma animosidade. Esse clima cordial e ameno jamais foi quebrado.

Mas houve um incidente entre dois poetas que merece ser contado. Um dos “habitués” do Pina se chamava Alberto Amorim, ou melhor, Alberto Urubatão Israel Barbosa de Amorim, mais conhecido por “ Boi Morto”, um apelido de origem desconhecida, talvez ignorada pelo próprio Alberto. Era uma figura estimadíssima, de permanente bom humor, que não se abalava nem quando lhe chamavam o apelido nem quando gozavam o seu discutível talento poético, manifestado na forma de superados sonetos parnasianos estampados na imprensa local.

Sem emprego fixo, militou na imprensa como repórter em quase todos os jornais da cidade. Vivia “liso”, a filar cigarros e cafezinhos dos amigos. Sua principal vítima era Moacyr Villela, amigo inseparável que o socorria nos momentos de maior aperto. Fisicamente, chamava logo a atenção. Estrábico, com óculos de grossas lentes, barrigudo, pé de papagaio, andar desengonçado, tornava-se ainda mais cômico quando soltava risadas sacudindo o corpo todo e pondo à mostra a dentadura bastante desfalcada. Nem por isso perdia a mania de galã. Vivia assediando as mulheres bonitas da cidade, solteiras, casadas e viúvas, através de longas conversas telefônicas.

Às vezes, as mulheres cediam às cantadas e marcavam encontros que terminavam sempre de maneira frustrante, quando elas, ao verem a figura pela primeira vez, mal disfarçavam a decepção e nunca mais voltavam a procura-lo. Mas ele não se dava por achado e insistia em alardear para os amigos histórias de conquistas imaginárias que ninguém levava a sério. Incapaz de atos violentos, algumas vezes, no entanto, se atritou com pessoas atingidas por sua língua solta e seus gestos irrefletidos.


O mais rumoroso desses incidentes envolveu o poeta Luiz Bacellar. Este obtivera, pouco antes, o primeiro lugar num concurso nacional de poesia promovido pela revista A Cigarra, com o “Soneto a Charles Chaplin”, uma pequena obra-prima digna de figurar em qualquer antologia. Boi Morto, então, comentou numa roda que Bacellar teria cometido plágio, sem revelar quem teria disso o poeta plagiado. Nem poderia, porque a acusação era injusta e descabida.

Quando Bacellar soube, ficou uma fera, como era natural. Mas, impossibilitado de aplicar um corretivo no outro, dada a desproporção física entre ambos, partiu para outro tipo de vingança. No dia seguinte publicou em O Jornal um soneto intitulado “Boi Morto” que iniciava com o seguinte quarteto: “É morto o boi, o mais cornudo boi / De toda a vacaria, e tal mau cheiro / Se evola da carcaça que o terreiro / Se empesta tanto que o fedor já dói.”

Grande foi a repercussão do poema, mas o alvo nesse dia não foi encontrado, para as chacotas inevitáveis. Enfurnado em casa, de lá mesmo telefonou para Bacellar marcando um encontro na Praça da Polícia à meia-noite. Temeroso, mas cheio de brio, o poeta, que sempre foi um notívago inveterado, aceitou o convite e, à hora combinada, plantou-se no local, à espera do antagonista.

Logo depois apareceu Alberto, que foi direto ao assunto. Com um recorte de jornal na mão, dirigiu-se a Bacellar, dizendo: “Está aqui o seu poema. Agora você vai engolir”. Ao que o poeta replicou: “Não engulo coisa nenhuma”. Ante a negativa, Alberto sacou de um revólver e apontou-o para o rosto de Bacellar, a um palmo de distância, gritando: “Você vai engolir, sim”. O confronto era desigual, pois o poeta, além de desarmado, tinha compleição franzina e nunca se envolvera numa luta física em toda a sua vida. Mas aconteceu o inesperado. Sob o impulso do medo, num reflexo de que ninguém o julgaria capaz, Bacellar, num gesto felino, arrebatou a arma da mão do adversário e atirou-a ao tanque próximo.

A seguir, preparou-se para enfrentar a arremetida do outro. Mas, para sua grande surpresa, Alberto, em vez de reagir com fúria, levou as mãos à cabeça e exclamou: “Não faça isso, que o revólver é emprestado!”. A seguir, pulou para dentro do tanque, onde ficou à procura da arma, em plena madrugada, com água pelos joelhos. Não voltaram a se hostilizar, mas também nunca mais se falaram. Alberto morreu, muitos anos depois, em Curitiba, certamente sem guardar, em seu espírito generoso, rancor algum de Bacellar.

Impossível enumerar todos os seus frequentadores, sem o risco de graves omissões. Mas, para homenagear a todos num só, devo ressaltar a figura do poeta Sebastião Norões. Começou a frequentá-lo desde a sua inauguração e assim continuou durante cerca de vinte anos, até morrer. E foi lá praticamente que se despediu da vida.

Promotor público e professor, morou sempre bem próximo ao Pina. Primeiro na casa de sua mãe, na Avenida Sete de Setembro. Depois, num pequeno apartamento, na Rua Rui Barbosa. Celibatário, sua vida era uma rotina diária entre o Tribunal de Justiça, o Ginásio, o Pina e o Guarany. Saía de um e entrava no outro, com paradas mais frequentes na República, para o bate-papo e o cafezinho, que consumia às dezenas, fumante inveterado que era. Sempre muito tranquilo, avesso a discussões, andava de roda em roda, mais ouvindo do que falando. Como já disse, de manhã, de tarde e de noite.

Certo dia, ele tomava o seu habitual cafezinho, no balcão, quando se sentiu mal. Socorrido, foi levado de carro para o Pronto-Socorro, onde morreu horas depois. Por uma coincidência feliz, as últimas imagens deste mundo que gravou na retina foram exatamente os três pedaços de chão que mais amou: o Pina, o Ginásio e o Guarany. O destino poupou a Norões o desgosto de assistir à decadência e ao melancólico fim da República. Anos mais tarde, sacrificado ao Moloch do trânsito, o Pavilhão São Jorge foi demolido. Algum tempo depois foi reconstruído. Mas quando isso aconteceu, já vivia das glórias passadas, com esmaecidos lampejos do brilho de outrora.

A República Livre do Pina desapareceu e o Clube da Madrugada, com a dispersão da velha-guarda, se modificou. Mas para mim ambos permanecem intactos, como símbolos do esforço de todos aqueles que persistem na busca onírica de um ideal de justiça e beleza, a ser perseguido sempre, como única maneira de se emprestar sentido à trajetória humana sobre a Terra.

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