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terça-feira, julho 17, 2018

Cacaso ou a poesia como brinquedo



Cacaso nasceu Antônio Carlos Ferreira de Brito em 1944 (Uberaba, MG) e morreu em 27 de dezembro de 1987, no Rio de Janeiro. Aos 12 anos ganhou página inteira de jornal por causa das caricaturas de políticos que enchiam seus cadernos escolares. Mas logo veio a poesia e antes dos 20 já estava colocando letras em sambas de amigos como Elton Medeiros e Maurício Tapajós. 

Em 67 veio o primeiro livro, A Palavra CerzidaDois anos depois formou-se bacharel em Filosofia pela UFRJ, em 1969. Na época já colaborava nos jornais alternativos Opinião e Movimento e participava ativamente dos movimentos estudantis contra o regime militar.

Entre 1970 e 1975 foi professor de Teoria Literária na PUC-RJ. Em 1974 e 1975 integrou os grupos poéticos Frenesi, com Roberto Schwarz, Francisco Alvim, Geraldinho Carneiro e João Carlos Pádua, e Vida de Artista, com Eudoro Augusto, Carlos Saldanha (Zuca Sardan), Chacal e Luiz Olavo Fontes, produzindo suas próprias coleções, antologias e revistas.

Sua produção poética inclui os livros Grupo Escolar (1974), Segunda Classe (1975), Beijo na Boca (1975), Na Corda Bamba (1978), Mar de Mineiro (1982), Beijo na Boca e Outros Poemas (Antologia - 1985) e Lero-Lero (Obras Completas - 2003).

São livros que não só revelaram uma das mais combativas e criativas vozes daqueles anos de ditadura e desbunde, como ajudaram a dar visibilidade e respeitabilidade à poesia marginal.


Sua obra, influenciada por Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Oswald de Andrade, tematizou a política e o amor em tempos de ditadura militar e liberação sexual, com doses generosas de humor e crítica social. Como professor e teórico de Comunicação, conquistou a simpatia e a admiração de centenas de jovens poetas de todo o país.


No campo da música, os amigos/parceiros se multiplicaram na mesma proporção: Edu Lobo, Tom Jobim, Sueli Costa, Cláudio Nucci, Novelli, Nelson Angelo, Joyce, Toninho Horta, Francis Hime, Sivuca, João Donato, etc.


Nas aventuras da vida de artista e nas polêmicas da poesia, os companheiros de viagem se chamavam Leilah Assunção, Pedrinho, Rosa, Paula, Vila Arêas, Davi Arrigucci, Miúcha e Cristina Buarque de Holanda, Ferreira Gullar, Hélio Pellegrino, Afonso Henriques Neto, Ana Luísa, Bita Carneiro, Maurício Maestro e Ana Cristina César, entre outros.

"Aos 43 anos, Cacaso conservava o rosto juvenil, redondo, mantendo ainda os cabelos longos, a barba por fazer e as sandálias de couro. Para uma geração - a de 68 - Cacaso era o poeta, até na sua maneira desleixada de se vestir. (...) Também Cacaso tinha um lado teórico, que lhe servia para explicar aos seus companheiros o que estava fazendo. A poesia marginal, na verdade, foi o grande ‘poema sujo’ de uma geração. Esta poesia rejeitava os dogmas ou uma maneira de se fazer poesia que estava associada aos poetas concretos. Era uma rejeição vital. Afinal, eles não poderiam perder tempo lendo Ezra Pound - o grande mestre da geração concretista. Esta geração desejava falar de poesia e fazer poemas. Isto bastava. E fizeram. Cacaso era uma espécie de tutor deste movimento. Professor de Literatura da PUC, amigo do sociólogo Roberto Schwarz, leitor de autores marxistas, ele dava base teórica para aquela geração. E em vez de Ezra Pound, eles procuram a poesia - límpida e simples - de Manuel Bandeira."

(Wilson Coutinho in O som de um anjo. Jornal do Brasil. Caderno B. 1987.)

"É nas poesias daquela época [anos 70] que Cacaso - misturando procedimentos de Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Oswald de Andrade a uma percepção original - fez um retrato possível dos sentimentos vigentes num país imerso na ditadura. (...) Poesia política de lirismo discreto, sem nenhum pendor mobilizador, sem se pretender canto arrebatador ou denúncia sisuda de mazelas ditatoriais. Foi através do humor, das inversões de sentido à la Oswald de Andrade, que Cacaso obteve seus melhores resultados nessa fase. Nela, a política estava em maior evidência - mas, em nenhum momento deixou de fundar-se na individualidade de Cacaso, na sua nostalgia de situações perdidas e passadas e no seu estranhamento com o presente. Como no curto e direto ‘Lar Doce Lar’."

(Revista Veja in Trapaças da sorte. 1988.)

"A certa altura, Cacaso imaginou que a sua vida de intelectual e artista seria mais livre compondo letras de música popular do que dando aulas na faculdade. Na época chegou a idealizar bastante a liberdade de espírito proporcionada pelo mecanismo de mercado. Penso que ultimamente andava revendo essas convicções. Seja como for, o passo de professor a letrista, acompanhado de planos ambiciosos de leitura literária, histórica e filosófica, assim como de produção crítica, mostra bem a sua disposição de entrar por caminhos arriscados e de vencer em toda linha. Talvez apostasse que uma certa informalidade de menino lhe permitiria ignorar e superar as incompatibilidades que a nossa cultura ergueu entre arte exigente e arte comercial, entre estudos e estrelato, entre conseqüência política e fruição desinibida. (...)"

(Roberto Schwarz in O poeta dos outros. Novos Estudos Cebrap. 1988).













estações

Do corpo de meu amor
exala um cheiro bem forte.

Será a primavera nascendo?



lar doce lar

Minha pátria é minha infância:
Por isso vivo no exílio.



indefinição


pois assim é a poesia:
esta chama tão distante mas tão perto de
estar fria.



história natural

Meu filho agora
ainda não completou três anos.
O rosto dele é bonito e os seus olhos repõem
muita coisa da mãe dele e um pouco
de minha mãe.
Sem alfabeto o sangue relata
as formas de relatar: a carne desdobra a carne
mas penso:
que memória me pensará?
Vejo meu filho respirando e absurdamente
imagino
como será a América Latina no futuro.



o fazendeiro do mar

mar de mineiro é
inho
mar de mineiro é
ão
mar de mineiro é
vinho
mar de mineiro é
vão
mar de mineiro é chão
mar de mineiro é pinho
mar de mineiro é
pão
mar de mineiro é
ninho
mar de mineiro é não
mar de mineiro é
bão
mar de mineiro é garoa
mar de mineiro é
baião
mar de mineiro é lagoa
mar de mineiro é
balão
mar de mineiro é são
mar de mineiro é viagem
mar de mineiro é
arte
mar de mineiro é margem

(...)

mar de mineiro é
arroio
mar de mineiro é
zen
mar de mineiro é
aboio
mar de mineiro é nem
mar de mineiro é
em
mar de mineiro é
aquário
mar de mineiro é
silvério
mar de mineiro é
vário
mar de mineiro é
sério
mar de mineiro é minério
mar de mineiro é
gerais
mar de mineiro é
campinas
mar de mineiro é
goiás
mar de mineiro é colinas
mar de mineiro é
minas


e com vocês a modernidade


meu verso é profundamente romântico.
choram cavaquinhos luares se derramam e vai
por aí a longa sombra de rumores e ciganos.
ai que saudade que tenho de meus negros verdes
anos!


happy end

o meu amor e eu
nascemos um para o outro
agora só falta quem nos apresente


estilos trocados

meu futuro amor passeia — literalmente — nos
píncaros daquela nuvem.
mas na hora de levar o tombo advinha quem cai.



sonata

ecos daquele amor ressonam profundamente
e cada vez mais leves absurdas pancadas deu no
que deu minha memória relata

escorrego para dentro dos decotes dela


ah!

ah se pelo menos o pensamento não sangrasse!
ah se pelo menos o coração não tivesse
[memória!
como seria menos linda e mais suave
minha história!



alquimia sensual

tirante meus olhos e mãos
quero me transformar em seu corpo
com toda nudez experiente
do passado e do presente
e naquela noite
entre suspiros
terei aguardado a hora incrível
de tirar o sutiã



busto renascentista

quem vê minha namorada vestida
nem de longe imagina o corpo que ela tem
sua barriga é a praça onde guerreiros
[se reconciliam
delicadamente seus seios narram
[façanhas inenarráveis
em versos como estes e quem
diria ser possuidora de tão belas omoplatas?

feliz de mim que freqüento amiúde e quando posso
a buceta dela



capa e espada

meu amor sentindo-se incapaz de ser amada
levanta herméticos escudos e duendes a qualquer
dádiva
que de mim — ai de mim! — possa brotar
nada mais ameaçador que os olhos do amor


táxi

o poeta passa de táxi em qualquer canto e lá vê
o amante da empregada doméstica sussurrar
em seu pescoço qualquer podridão deste universo.
como será o amor das pessoas rudes?
o poeta não se conforma de não conhecer

todas as formas da delicadeza.


imagens I

para evitar malentendidos
digamos desde já que nos amamos.



estilos de época

havia
os irmãos Concretos
H. e A. consanguíneos
e por afinidade D.P.,
um trio bem informado:
dado é a palavra dado

e foi assim que a poesia
deu lugar à tautologia
(e ao elogio à coisa dada)
em sutil lance de dados:
se o triângulo é concreto
já sabemos: tem 3 lados.


poética

alguma palavra,
este cavalo que me vestia como um cetro,
algum vômito tardio modela o verso.
certa forma se conhece nas infinitas,
a fauna guerreira, a lua fria
encrustada na fria atenção.
onde era nuvem
sabemos a geometria da alma, a vontade
consumida em pó e devaneio.
e recuamos sempre, petrificados,
com a metafísica
nos dentes: o feto
fixado
entre a náusea e o lençol.
meu poema me contempla horrorizado.


surdina

primeiro o Tenório Jr.
que sumiu na Argentina
depois quando perigava
onze e meia da matina
veio a notícia fatal:
faleceu Ellis Regina!
um arrepio gelado
um frio de cocaína!
a morte espreita calada
na dobra de uma esquina
rodando a sua matraca
tocando a sua buzina
Isso tudo sem falar
na morte do velho Vina!
e agora é Clara Nunes
que morre ainda menina!
é demais! Que sina!
a melhor prata da casa
o ouro melhor da mina
que Deus proteja de perto
a minha mãe Clementina!
lá vai a morte afinando
o coro que desafina...
se desse tempo eu falava
do salto da Ana Cristina.



Eu te amo

seu amor me furta
seu horror me encanta
minha vida é curta
minha fome é tanta
minha carne é fraca
minha paz é louca
minha dor é farta
minha parte é pouca
minha cova é rasa
meu lamento é mudo
seu amor me arrasa
sua ausência é tudo
minha sorte é cega
sua luz me esconde
minha morte é certa
meu lugar é onde
seu carinho é pena
seu amor é mando
minha falta é plena
minha vez é quando

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