Vinicius no show “Só
por amor”, no Teatro Poeira
Maria Lucia Rangel
Além de grandes amigos, Vinicius de Moraes e Fernando Sabino
tinham muitos gostos em comum. E adoravam música. Vinicius ia da música
brasileira à americana. Fernando era apaixonado por jazz. De vez em quando
viajava para curtir o festival de jazz de Nova Orleans.
Tanto o poeta como o
escritor fariam anos neste mês de outubro. E ambos completariam datas redondas:
Vinicius, 100 anos. Fernando, 90. Tive a sorte de ser amiga dos dois. Graças ao
meu pai, Lucio Rangel, também um apaixonado por música, e a minha profissão de
jornalista. Entrevistei-os várias vezes.
Fernando conheci primeiro. Eu tinha 15 anos e estava com meu
pai no bar Zepelim, em Ipanema, quando ele chegou com Tom Jobim. Era fim de
tarde e, depois de alguns uísques, Tom levou-nos para sua casa. Era uma casa
mesmo, também em Ipanema. Lá ficamos até bem tarde, com Tom ao piano e os
outros dois bebendo e falando de jazz e literatura.
Fernando gostava tanto de
jazz que aprendeu a tocar bateria. De vez em quando telefonava avisando que
tocaria no Hotel Marina. Lá ia eu ouvi-lo. Aliás, Fernando era bom de ouvir.
Falava muito, contava casos saborosos e divertidos.
Além dos bares,
encontrava-o muito na cobertura de Rubem Braga e nos lançamentos dos livros da
editora Sabiá e, depois, editora do Autor. Apesar de gostar muito de ambos, com
Vinicius foi uma amizade diferente.
Não lembro exatamente quanto começaram minhas conversas
esotéricas com Vinicius de Moraes. Aconteciam sempre depois das entrevistas
para o Caderno B, do Jornal do Brasil, onde eu trabalhei nos anos 1970. Ele na
banheira cheia de espuma e, dependendo da hora, com um copo de uísque numa mão
e um cigarro na outra. Eu, sentada num banco baixinho ao lado.
Ele dava uma
meia pausa e introduzia o assunto: “Sabe que o fulano me apareceu?”. Fulano
podia ser Antonio Maria ou Sérgio Porto, ambos mortos havia pouco tempo. E por
“aparecer”, que fique bem claro, Vinicius sentia uma percepção daquela pessoa
através de um copo que caía sozinho, uma luz que se apagava ou algo assim.
A história mais impressionante aconteceu durante a Segunda
Guerra, ele ainda casado com Tati e morando no Leblon. Acordou de madrugada com
o quarto todo tremendo. Pensou ser uma ressaca do mar. Levantou-se pé ante pé
para não acordar a mulher, foi até a sala e deparou-se com um mar calmíssimo.
Voltou para a cama, agora munido de uma folha de papel e um lápis, sentou-se no
escuro e sentiu sua mão riscando o papel. Riscou, riscou e terminou como se
estivesse assinando algo. O quarto então parou de tremer.
Ele acendeu a luz e
deparou-se com um desenho de seu amigo Carlos Scliar, assinado pelo artista.
Tento agora escrever suas exatas palavras:
Fiquei tão triste,
sabe? Me deu uma fossa! O Scliar era pracinha e estava na Itália. Meu primeiro
pensamento foi: Scliar morreu e está me avisando. Esperei o dia clarear e fui
para o Amarelinho [bar na Cinelândia onde os jornalistas se reuniam]. Dali a
pouco um deles chegou com a notícia: a mãe do Scliar tinha morrido durante a
madrugada no Rio Grande do Sul. Foi um alívio! Minha irmã guardou esse desenho.
Anos depois, um grupo de jovens foi conhecer Ouro Preto
ciceroneados pelo poeta: Vera Hime, na época namorada de Vinicius, Wanda Sá com
o namorado e arquiteto Manoel Ribeiro, Dori Caymmi e a mulher, Ana Beatriz, e eu.
Tive oportunidade, então, de constatar como Vinicius “via” um morto. Todos nós
“vimos” com ele.
Saímos do Rio para Belo Horizonte no trem noturno. E como
era praxe com Vinicius, passamos a noite toda no vagão-restaurante bebendo e
conversando. Em plena ditadura – era 1968 – levamos uma dura, ainda na estação,
por conta de um beijo que Wanda deu no namorado Manoel.
Vinicius quis encarar o
coronel “em nome do amor”, mas a turma do deixa-disso conseguiu dissuadi-lo.
Dois táxis nos levaram da estação mineira à casa de Eloy Heraldo Lima, médico
de Vinicius e de Fernando Sabino, para um café da manhã. De lá, seguimos nos
táxis para Ouro Preto.
Chegamos com a cidade repleta de jovens, em pleno festival
de inverno. Vinicius e Dori se hospedaram na Pousada do Chico Rey. O belo
sobrado ficava bem no centro da cidade e era frequentado por celebridades, como
Zélia e Jorge Amado, Elizabeth Bishop, Pablo Neruda, o pintor Carlos Scliar.
Até Sartre e Simone de Beauvoir passaram por lá.
Bem ao lado da pousada ficava
a casa de Rodrigo Mello Franco de Andrade, pai do cineasta Joaquim Pedro e na
época diretor do SPHAN (Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional).
Muito amigo de Vinicius, cedeu a casa aos mais jovens: Wanda, Manoel e eu.
Passávamos o dia juntos ou passeando pela cidade com os jovens mineiros atrás
de Vinicius.
Uma tarde, depois do almoço, somente nosso grupo, sentados
numa mesa redonda diante da lareira, embalados pelo uísque, começamos a cantar
ao som dos violões de Wanda, Dori e Vinicius. O dia foi caindo, a sala
escurecendo aos poucos, iluminada apenas pelas chamas de lareira. E o assunto
caiu em Dolores Duran.
Vinicius lembrou que moraram no mesmo prédio e não era
raro ela bater em sua porta de madrugada com crise de depressão. E, claro,
começamos a cantar músicas de Dolores. O violão passava de mão em mão, cada um
lembrando uma canção. Foi aí que “vimos” Dolores.
Por acaso, eu tinha atarraxado a tampa da garrafa de uísque.
De repente, no meio de uma música, a tampa pulou alto e pousou na mão de Vinicius.
“Saravá”, gritou Wanda, seguida por todos. Ela preparou um uísque para Dolores,
colocou na mesa e continuamos cantando suas composições, agora com sua
presença.
Vinicius já era muito amigo de meu pai quando o conheci.
Cursaram Direito juntos e partilhavam o gosto por literatura francesa, música
brasileira, jazz e uísque. Tenho certeza ter sido este o motivo de não terem
levado adiante o projeto de uma enciclopédia da música popular assinada pelos
dois.
Foi em Petrópolis que conversamos pela primeira vez, na antiga
Confeitaria Copacabana, ele casado com Lucinha Proença. Nesta época me convidou
para um show que daria no ginásio da PUC, no Rio. E surpreendeu Edu Lobo ao
chamá-lo ao palco. Foi a primeira vez que Edu se apresentou em público.
E me
surpreendeu também. Ao entrar no ginásio ele já estava no palco e me acenou de
longe. Tive que enfrentar os olhares de todos os estudantes.
Quando ele se casou com Nelita, a cobertura em que moravam
no Jardim Botânico estava sempre repleta de jovens. E as festas eram
memoráveis, só com os amigos mais chegados, como Tonia Carrero e César Thedim,
Fernando Sabino, Wanda Sá, Rubem Braga e os filhos com namorados e namoradas.
Quando se separaram, Nelita continuou no apartamento. Um dia Vinicius me
telefonou pedindo um favor: “Lucinha, será que você pode pedir à Nelita para me
dar meu retrato feito pelo Portinari?”
Na mesma hora Nelita tirou o quadro da
parede e me entregou. Saí com a tela sem qualquer proteção, colocada no chão do
meu fusca. Hoje o quadro está na casa de sua filha Suzana.
Francis Hime, Dori
Caymmi, Vinicius e Wanda Sá em “Só por amor”
Petrópolis era uma cidade que Vinicius adorava. A casa de
Cícero Leuenroth, publicitário e pai de Olivia Hime, estava sempre aberta aos
amigos da filha. O poeta às vezes chegava de táxi, sem avisar, dizendo que
dormiria na “vaga”. Se alguém acordava mais cedo ele corria para a cama
desocupada e tirava um cochilo.
Numa madrugada de 1971 fui dormir e deixei
Vinicius e Toquinho na sala. Acordei no meio da madrugada com os dois entrando
quarto adentro e me entregando um copo de uísque.
Eufóricos, sentaram-se na
minha cama, Toquinho deu os primeiros acordes e começaram a cantar a música que
tinham acabado de compor, “Tomara”. Foi uma alegria. Repetiram umas dez vezes, felizes
com a nova parceria.
Foi em Petrópolis também, nesta mesma casa, que Vinicius nos
introduziu à gnomonia, invenção de Jaime Ovalle, intelectual mais velho, autor
de “Azulão” e amigo de todo o grupo de Vinicius e Fernando Sabino.
O poeta se
referia à gnomonia como classificação das pessoas. E explicou o que significava
ser pará, dantas, querniano, onésimo ou mozarlesco.
Os parás são indivíduos
extrovertidos, ágeis, que aonde chegam vencem. O nome é porque geralmente
vinham do Norte. Mas o poeta gostava de dizer que “os parás eram quase
parando”.
Os dantas pouco ligam para o sucesso material. São pessoas que vivem
ou tentam viver em estado de pureza.
Os quernianos são os de mais fácil
identificação: impetuosos, impulsivos e estouvados. Vinicius dava como exemplo
o homem que chuta a barriga da mulher grávida e pede perdão de joelhos.
Já os
mozarlescos são sentimentais, choram à toa, têm boa índole. Charles Chaplin era
querniano mas Carlitos era mozarlesco, ensinava Vinicius. Para nós era uma
private joke.
Se estávamos numa reunião cercados de gente, Vinicius definia
alguém presente através da gnomonia e ríamos muito. Um dia ele decidiu definir
objetos. E adorou descobrir que o telefone era querniano.
Amoroso, gostava de contar histórias e ensinar aos jovens.
Eu me lembro dele discorrendo sobre como escovar os dentes: “Escovem sempre a
língua e o céu da boca para não terem mau hálito”.
Sua sensibilidade foi mais
longe ainda ao detectar que eu andava com problemas: “Lucinha, você não acha
que está precisando de uma psicoterapiazinha?”. Marcou então uma hora pra mim
com um psicanalista amigo dele.
Ensinava também muita diversão. Quando fez o
show “Só por amor” no Teatro Poeira, na praça General Osório, em Ipanema,
acompanhado por Francis Hime ao piano, Dori Caymmi no violão e Wanda Sá
cantando, nos levava depois a um bar na esquina da praça para oferecer
caipirinha, bebida que ninguém conhecia até então.
Poderia continuar falando de Vinicius por muito tempo, como
quando conheceu a cantora Maria Creuza e me fez ficar em sua casa para
conhecê-la também, ou quando se apaixonou por Gesse e perdeu o medo de avião,
apresentado que foi à Mãe Menininha, ou quando apanhou de uma ex-mulher e ficou
com a virilha toda ferida.
Mas prefiro terminar com a dedicatória que fez numa
primeira edição, rara, do livro “A casa”:
Para minha Lucinha
querida, com A Casa, o poeta e tudo o que, de amor e carinho eles comportam; e
o beijo mais amigo do Vinicius.
(*) Maria Lucia Rangel é jornalista.