quinta-feira, novembro 28, 2019

Meca da macumba


Mercado de escravos no Valongo, no Rio de Janeiro, em gravura de Edward Finden, de 1824

Por Isabela Reis

O conceito de sankofa é o fio que une O corpo encantado das ruas, de Luiz Antonio Simas, e História dos candomblés do Rio de Janeiro, de José Beniste.

Sankofa é o ideograma de um pássaro de pescoço longo olhando para trás e faz parte do sistema de escrita Adrinka, do povo Akan, da África Central. A palavra significa “volte e pegue”, e o conceito é descrito como o movimento de retornar ao passado para ressignificar o presente e construir o futuro.

O historiador José Beniste foi iniciado em 1984 como ogã (responsável por funções masculinas no terreiro) pela ialorixá Cantu de Airá Tola, dirigente do Ilê Axé Opó Afonjá, no Rio. Em seu sexto livro, ele conta a história de fundação de mais de trinta terreiros de candomblé e suas casas descendentes no estado. Beniste representa o retorno ao passado.

O livro começa voltando à África e remonta a ruptura cívica que acabou com negros sendo exportados como mercadoria em porões de navios. Segue apresentando as estratégias criadas pelos africanos escravizados para viverem sua fé no novo território, o sincretismo talvez sendo a maior delas. Encerra contando a trajetória dos pais e mães de santo que plantaram o axé no Rio.

Os negros africanos tinham seus próprios cultos de reverência às forças da natureza. Os orixás os acompanhavam nos dois meses de travessia do oceano Atlântico. O Novo Mundo não tolerava seus rituais. Além de implantarem a colônia de exploração, os portugueses importaram o catolicismo. Não era assegurada a liberdade de crença.

O sincretismo ganha lugar de destaque na narrativa sobre a vida e sobrevivência dos escravizados em solo colonizado. Foi uma das estratégias adotadas para evitar ainda mais perseguição. Os escravizados fingiam-se de cristãos para garantir enquadramento nas normas colonizadoras. Evitava-se conflito, preservava-se a vida.

A catequese forçada foi uma tentativa imperialista para expurgar o transe, o grande obstáculo na normatização dos corpos. Uma lei exigia o batismo para tornar cristãos todos os escravizados, que eram levados à igreja e perfilados de acordo com os nomes que receberiam: Joões, Marias, Josés.

Tinham que assentir a diversas indagações católicas, sendo a mais difícil “Queres comer o sal de Deus?”, pois comer sal, em sua crença, significava se tornar igual ao europeu. Perdia-se tudo: família, território, identidade.

Mais do que documentar a fundação dos maiores terreiros do estado, o livro eterniza o horror. O escravizado precisou esquecer para sobreviver, e nosso movimento diaspórico é o do resgate. Citada por Beniste, Mãe Beata de Iemanjá, fundadora do Ilê Omiojuarô, em Nova Iguaçu, dizia que “a ancestralidade é uma coisa muito forte”.

Foi essa força que nos carregou. A estratégia de sobrevivência dos negros em diáspora é jamais permitir que o horror da escravidão seja esquecido para que nunca seja repetido.

Memórias presentes



Se Beniste começou o movimento de sankofa, Simas toma as rédeas ao ressignificar o presente. Iniciado como ogã aos dois anos no terreiro de sua avó em Nova Iguaçu, Simas é babalaô do culto de Ifá. Para os macumbeiros, isso basta.

Para outros, Simas precisa apresentar o que chama de currículo “vira-lattes” e dizer que é historiador premiado com o Jabuti por Dicionário da história social do samba (Civilização Brasileira), escrito com Nei Lopes.

O título da obra de Simas referencia o livro A alma encantadora das ruas, do cronista João do Rio, publicado em 1908, que retratou as desigualdades e os personagens que compartilhavam as esquinas da capital. O corpo encantado das ruas encanta o corpo que lê.

O livro é uma sucessão de memórias presentes que lembram aos leitores que existe vida no caos. Não antes ou depois dele, mas durante. Como dizia o compositor Beto sem Braço, referenciado pelo historiador, “o que espanta miséria é festa”.

As sucessões de crônicas sobre a cidade que revoluciona pela alegria nos dão certeza de que a música, o brinde e a roda são a saída desse confinamento eurocêntrico.

O samba garantiu a sobrevivência do povo preto, que ainda leva essa jovem República nas costas.

Simas lembra que o samba só foi inventado porque existia a roda. Antes do batuque, já tinha gente em círculo olhando no olho. O xirê é a roda em que os filhos de santo dançam para os orixás e gira sempre no sentido anti-horário, no simbolismo de voltar no tempo, resgatar o passado e reverenciar a ancestralidade.

Fiquemos mais em roda, olhando nos olhos, e menos em fileiras. Quem sabe nossa roda de hoje seja o começo da gestação de algo que revolucionará o país.

O samba revolucionou o Brasil na medida em que foi um dos pilares que garantiram a sobrevivência do povo preto, que ainda leva essa jovem República nas costas. 

Os dois livros se completam pois traçam a linha do tempo entre como chegamos aqui e como reinventamos a vida. A historiografia densa embasa as crônicas que dão leveza a uma narrativa pesada que resgata tantas dores ancestrais.

Beniste apresenta as estratégias, e Simas vem para nos contar que deu certo. O povo preto sobreviveu e é nas ruas que risca o chão, demarca seu espaço e ousa sambar com a felicidade.

Simas prova como a fé sincrética descrita por Beniste se enraizou no Brasil. No Rio, São Jorge é Ogum e, em seu dia, católicos fervorosos dividem a igreja com umbandistas.

Vestir branco na virada do ano é herança da umbanda. Somos um país de judaico-cristãos-macumbeiros sincréticos. Até quem não é, é e nem sabe.

Crescida em núcleo familiar materno com apenas três membros consanguíneos — eu, minha mãe e minha avó — e incontáveis amigos-irmãos, abraço a noção de família do povo zulu corroborada por Simas. No idioma ngúni, falado no sul da África, não há palavra para o parentesco sanguíneo. “Ubudlelane” define as relações de parentesco e significa “os que comem juntos”.

Herança

No Rio se criam laços de amor no entorno de uma mesa farta, ao redor de uma roda de samba, vibrando pelo mesmo time no bar. Vivemos o que herdamos dos terreiros. Toda festa de macumba tem a música dos atabaques, os filhos de santo dançando em roda, a comida servida depois de cantar para os orixás. A cidade dos meus sonhos tem cheiro de arruda e gosto de camarão seco, caruru e xinxim de galinha.

Simas define a capital como uma cidade que sacraliza o profano e profana o sagrado. O Rio de Janeiro dos dois escritores é a Meca sudestina da macumba. Os terreiros são descritos por Beniste, as festas populares e os rituais com origem nas religiões de matriz africana são explicados por Simas.

Beniste relembra que durante a Colônia, na Glória, bairro da Zona Sul, eram feitas homenagens a Iemanjá, e os presentes para Oxum eram entregues no rio Trapicheiro, na Tijuca.

O Brasil é um país negro. Não somente por sua população ser composta na maioria de pretos e pardos, mas porque estamos mergulhados na herança africana.

O povo banto nos deixou dezenas de palavras na língua portuguesa. Beniste listou algumas que explicam o porquê de a festa brasileira ser negra: samba, pinga, gingar, fuzuê. O corpo que dança é banto.

Terminar o movimento de sankofa construindo o futuro é responsabilidade de todos. Beniste é branco, filho de libaneses. Simas, igualmente branco, é bisneto de italiano.

Os dois foram escolhidos como herdeiros do axé das sociedades matriarcais da África Subsaariana e usam sua visibilidade para firmar o ponto em um país historicamente intolerante.

O racismo religioso é a obsessão de parte da população que insiste na catequese e na evangelização. O racismo e a intolerância religiosa são chagas criadas pelos brancos. Por isso, é dever de seus descendentes combater incansavelmente esses preconceitos que nos custam vidas negras.

O Brasil mata um jovem negro a cada 23 minutos. Essa parte sombria que precisa ser escancarada é consequência das políticas equivocadas dos colonizadores e de seus descendentes.

Vivemos a ressaca da Abolição e de um projeto de Estado que relega às margens da sociedade a maioria da população.

Simas costuma dizer que o Brasil precisa dar errado. Para os colonizadores, deu certo. É urgente que degringole de uma vez por todas.

O obstáculo final que impede o sucesso desse plano somos nós. Os inimigos do fim que se recusam a aceitar que este país deu certo.

Enquanto soar um atabaque, os copos baterem em brinde e a roda girar no sentido anti-horário, eles terão que aceitar que este país também nos pertence.

quarta-feira, novembro 27, 2019

Como nasceu a cultura clubber



Por Antonio Gonçalves Filho

Dois filmes que antecipam a histeria do mundo fashion e da cultura clubber, respectivamente A Elegante Polly Maggoo (Qui-Êtes Vous Polly Maggoo?) e Liquid Sky, estão de volta ao mercado em DVD e em plataformas de streaming.

O primeiro, dirigido por William Klein há 53 anos, é premonitório: em 1966, falava de modelos anoréxicas e estilistas fascistas antes mesmo de Vivianne Westwood encher a Portobello Road de perucas e lotar Notting Hill de peruas.

O segundo, rodado em 1982 pelo russo Slava Tsukerman, elege dois rivais da passarela, um andrógino viciado e sua versão mais feminina, ambos interpretados pela mesma atriz e acossados por extraterrestres que sugam o cérebro de viciados em heroína.

Os dois filmes são o que se convencionou chamar de cult movies, isto é, adorados por frequentadores do circuito subterrâneo. Polly Maggoo chega ao mercado pelo selo Magnus Opus. Liquid Sky, pela distribuidora Cult Classic.

A pergunta que se faz no primeiro filme, Qui-Êtes Vous Polly Maggoo? (Quem é Você, Polly Maggoo?) poderia perfeitamente caber à heroína – no sentido original do termo – de Liquid Sky.

Tanto na impiedosa sátira de William Klein à indústria da moda, que fabrica modelos e destrói pessoas reais, como no lisérgico exercício do russo Slava Tsukerman, o tema converge para a crise de identidade.

Na produção independente do russo, filmada nos EUA há 37 anos, essa crise é provocada pelo uso abusivo de drogas e estimulantes.

Ambos os filmes antecipam questões hoje amplamente discutidas em livros de sociólogos que se dedicam ao estudo do comportamento, entre eles o francês Michel Maffesoli.

Teórico da pós-modernidade e autor de conceitos como o da tribalização do globo, Maffesoli diz que a fragilização do sujeito no mundo contemporâneo levou à saturação do político e à criação de uma nova sociedade – hedonista, em que cada indivíduo é intercambiável, transformado em objeto para uso alheio.

Impressiona, portanto, que há mais de 30 anos Tsukerman trate, em Liquid Sky, do declínio do homem público e do advento de uma raça de narcisistas que parece mesmo vítima da síndrome de Asperger, aquela doença em que o sujeito parece incapaz de se comover com a dor alheia.

Klein, fotógrafo de moda antes de virar cineasta, convive com tipos assim há mais de meio século.


Na sequência mais perturbadora de Polly Maggoo, a do desfile de moda para uma impiedosa crítica, uma das modelos fere-se com a ponta do vestido de alumínio que o estilista desenhou – ou melhor, soldou – para ela. A moça reclama. Ele não liga. Diz que o show deve continuar.

Em seguida, pede à maquiadora que disfarce a mancha de sangue no ombro da garota, dando razão a Maffesoli quando, em A Parte do Diabo, trata do lugar do mal na sociedade contemporânea.

Polly Maggoo é uma vítima da própria inocência, usada como massa de manobra de um sórdido espetáculo, a cristã que vai ser devorada pelos leões da indústria de moda no coliseu das ilusões perdidas.

A história é relativamente simples. Ou deveria ser. Polly Maggoo é uma top model magra de 20 anos, nascida no Brooklin e vivendo em Paris. Após enfrentar o bizarro desfile de roupas de lata na abertura, é procurada por um produtor de televisão do tipo Esta É Sua Vida, interessado em mostrar como uma modelo suburbana chega a ser cobiçada pela plebe rude e por um príncipe de um surrealista país do Leste Europeu.

Klein, depois, viraria socialista e documentarista, desistindo do lado mais formal da nouvelle vague de Godard para seguir sua cartilha política.


Liquid Sky toca numa questão mais perturbadora, a da atração dos jovens pelas drogas e a alienação de seus corpos por companheiros tribais nas raves e discotecas.

Seu visual, hoje, pode parecer um tanto retrô, algo entre um exercício pop warholiano e a estética science-fiction de Blade Runner (os dois são do mesmo ano).

No entanto, por trás desse híbrido cruzamento, que não dispensa figurinos fellinianos e extraterrestres liliputianos que invadem Nova York (num disco do tamanho de um prato), Liquid Sky trata de uma questão séria: não estaríamos diante de uma mutação antropológica ainda não percebida pelos cientistas?

A sátira do russo Tsukerman (que voltou à carga há em 2008 com Perestroika) esbarra propositalmente no lixo do qual pretende se livrar: as drogas pesadas, que hoje constituem uma ameaça à população jovem maior que a aids, na época (anos 1980) uma doença ainda rara.

Os ETs do filme estão atrás de uma substância no cérebro dos viciados em heroína produzida na hora do orgasmo. Estacionam justamente no apartamento de Margaret, a modelo lésbica mutante cujo corpo parece um laboratório para experiências exóticas – não muito atraentes para o andrógino Jimmy, interpretado pela mesma atriz (Anne Carlisle).

Óbvio que Tsukerman está falando da juventude que viu nascer os clubes fechados e as raves. É certo que as últimas e as acid parties não surgiram naqueles anos 1980, mas um pouco antes, o que torna automaticamente a geração atual de frequentadores um bando de retromaníacos.

É essa a grande crítica do cineasta: esse espírito tribal é regressivo, massivo, regado a álcool e ecstasy. O objetivo não é a diversão, mas a autoimplosão, a alienação dos corpos, como se disse.


Tanto era assim para Tsukerman que a heroína do filme (a modelo, não a droga) consegue anular o parceiro quando atinge a volúpia. Seu orgasmo é assassino. Os invisíveis extraterrestres entram no cérebro da viciada e extraem de lá o material que levarão para a estratosfera.

Pode parecer engraçado, mas os ETs de Liquid Sky são criaturas tão invisíveis como ofensivas. Eles não precisam aparecer para constituir uma ameaça, pois ela já está presente no cérebro de suas vítimas, jovens não mais reconhecíveis aos olhos dos próprios pais e amigos, zumbis que vagam pelas raves como carcaças imprestáveis.

O preço da heroína, na Inglaterra, caiu para 54 libras. Mais de 300 mil jovens no país que inventou a minissaia e os Rolling Stones são dependentes da droga, obrigando os cofres públicos a destinar 13 bilhões de libras anualmente para atendimento médico a viciados.

Polly Maggoo e Liquid Sky só abriram a caixa de Pandora. E isso faz um bocado de tempo.



Vasco da Gama, o clube que abriu as portas do futebol para os negros


Camisas Negras: o time do Vasco campeão carioca em 1923

Por Breiller Pires

Ao longo dos seus 120 anos de história, o Vasco da Gama foi campeão sul-americano, da Libertadores, da Copa do Brasil, quatro vezes do Brasileirão e outras tantas do Carioca. Mas nenhuma conquista no campo tem o mesmo peso de uma carta que, de tão emblemática, está exposta na sala de troféus em São Januário.

Em 7 de abril de 1924, o então presidente José Augusto Prestes assinou o manifesto que ficou conhecido como a Resposta Histórica, comunicando que o Vasco se recusaria a disputar a divisão principal do Rio de Janeiro sem seus jogadores negros, exigência que havia sido imposta pelos dirigentes da época.

A dimensão simbólica da atitude, considerada insurgente naqueles tempos em que o futebol de elite era privilégio dos brancos, transformou o clube cruzmaltino em estandarte da luta contra o racismo no esporte brasileiro.

“Para nós, de fato, esse documento é como um troféu”, afirma João Ernesto Ferreira, vice-presidente de relações especializadas do Vasco, ao justificar a exibição de uma réplica da carta na nobre galeria de taças. Consolidado no remo, o clube só começou a se destacar pelos gramados no início da década de 1920.

Sem a mesma tradição dos times da zona Sul do Rio na modalidade, a estratégia era montar elencos com jogadores das classes sociais menos favorecidas. A equipe campeã da segunda divisão em 1922 tinha como craques operários, choferes, pintores e faxineiros. Assim, assegurou o direito de disputar, no ano seguinte, a primeira divisão ao lado dos já consagrados América, Botafogo, Flamengo e Fluminense.

Com a base de trabalhadores braçais mantida no plantel, o Vasco desbancou favoritos, arrebatou 11 vitórias em 14 jogos e faturou o título do campeonato organizado pela Liga Metropolitana de Desportos Terrestres (LMDT).

Incomodados pela ascensão meteórica dos vascaínos, rivais decidiram criar uma nova liga, a Associação Metropolitana de Esportes Athleticos (AMEA), impondo ao clube apelidado de Camisas Negras, pela cor de seu uniforme, a exigência de excluir 12 jogadores que, de acordo com os cartolas, não apresentavam “condições sociais apropriadas para o convívio esportivo”. O analfabetismo foi uma das razões enumeradas pela liga para desqualificar parte do elenco campeão.


Por unanimidade, a diretoria cruzmaltina desistiu de integrar a AMEA e, então, endereçou a carta à liga esclarecendo por que rechaçava a ordem para abrir mão de jogadores negros e pobres.

“O ato público que pode maculá-los nunca será praticado com a solidariedade dos que dirigem a casa que os acolheu, nem sob o pavilhão que eles, com tanta galhardia, cobriram de glórias”, detalha o quinto parágrafo da Resposta Histórica.

Enquanto os grandes clubes institucionalizavam o elitismo do futebol com a criação de um torneio paralelo, o Vasco via sua popularidade aumentar, sobretudo entre as camadas suburbanas da sociedade carioca, lotava estádios a cada jogo e, em 1924, voltou a sagrar-se campeão, dessa vez de forma invicta, do campeonato regido pela LMDT.

Diante do sucesso de público, renda e repercussão dos Camisas Negras, a AMEA resolveu admitir o Vasco em 1925. Até então, a liga alimentava a expectativa de ver o Cruzmaltino “constituir equipes genuinamente portuguesas” – em referência à colônia fundadora do clube –, “para uma demonstração esportiva das verdadeiras qualidades dessa raça secular”, conforme ofício assinado pelo presidente da AMEA em tréplica à Resposta Histórica.

Para o historiador Ricardo Pinto dos Santos, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o aspecto econômico influenciou decisivamente tanto a defesa vascaína em nome dos atletas quanto a mudança de ideia dos cartolas sobre a exclusão do clube.

“O Vasco percebeu que não poderia sobreviver sem o talento de seus jogadores da classe trabalhadora, assim como a AMEA, mais adiante, entendeu que a incorporação daquele time que arrastava multidões aos estádios seria lucrativa. Houve retorno financeiro para os dois lados com a aceitação de atletas negros”, diz.

Pinto dos Santos, que trabalhou por seis anos no Vasco e ajudou a fundar o Centro de Memória em São Januário, argumenta que os dirigentes da época foram hábeis ao capitalizar a ampla divulgação da carta.

Embora não tenha sido o primeiro a contar com jogadores negros no Brasil, o clube ganhou fama de pioneirismo pela maneira como afrontou a discriminação da AMEA.

Antes, em 1905, o Bangu, time fabril do subúrbio carioca, já havia integrado o jovem Francisco Carregal, de 16 anos, à sua equipe. No fim daquela década, o clube se afastaria da LMDT por causa da restrição explícita a “pessoas de cor” entre os participantes da liga.

A diferença para o Vasco, porém, é que o time alvirrubro só foi chamar a atenção por seus bons resultados em 1933, quando conquistou o Campeonato Carioca.

“O primeiro campeão a ter negros no time foi o Vasco”, afirma João Ernesto Ferreira. “A classe social ou etnia dos jogadores não importava para o clube.”

O Vasco também foi o primeiro clube esportivo brasileiro a ter um presidente negro, Cândido José de Araújo, que ficou no cargo entre 1904 e 1906. No entanto, depois de Araújo, as esferas de poder vascaínas são marcadas pelo predomínio dos brancos.


Atualmente, entre membros da diretoria e da cúpula de conselheiros, apenas dois negros ocupam posições estratégicas em São Januário: Edmílson Valentim, presidente do Conselho Fiscal, e o vice-presidente Elói Ferreira, ex-secretário especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República.

A baixa representatividade de negros e pobres no comando é reforçada por barreiras como a cobrança de taxa de admissão a novos sócios, exigência de tempo mínimo de 10 anos no quadro associativo para candidatos a presidente e a manutenção de eleições indiretas.

Não há uma política permanente pela promoção da igualdade racial nem mesmo cotas para negros no plano executivo do clube. As ações se resumem a campanhas de marketing, como o lançamento de um uniforme retro inspirado nos Camisas Negras, ou parcerias esporádicas com instituições de combate ao racismo, a exemplo de um evento realizado em São Januário para divulgar o relatório anual do Observatório da Discriminação Racial.

Em seu site oficial, o clube não hesita em cravar que “o Vasco impediu o racismo no futebol”, em alusão à Resposta Histórica, mas os episódios de injúrias raciais continuam sendo parte da realidade no esporte, inclusive em seus próprios domínios.

Borges, último técnico negro da equipe, chegou a ouvir ofensas discriminatórias no estádio do Gigante da Colina ao fim de sua primeira passagem como treinador.

Em 2018, o zagueiro Paulão foi alvo de insultos racistas de torcedores vascaínos nas redes sociais.

Já nos bastidores, Elói Ferreira acusou o presidente Alexandre Campello de racismo após o mandatário trocar a fechadura de sua sala sem lhe comunicar. Campello considerou a acusação um ataque político com o intuito de difamá-lo e “desgastar a imagem do clube”.

“O Vasco não pode viver apenas de celebrar o passado”, diz Ricardo Pinto dos Santos. “Para manter a representação de clube comprometido com a luta contra o racismo, é preciso se engajar no presente. O futebol, como um todo, ainda reproduz as estruturas racistas da sociedade. Isso demanda um posicionamento mais enfático, um enfrentamento contínuo ao preconceito.”

Há 95 anos, a Resposta Histórica contribuiu para ampliar o alcance de um esporte elitizado a negros e pobres e foi um marco para a era do profissionalismo no futebol. Até hoje, a torcida vascaína reverencia a carta com os versos de um cântico aclamado nas arquibancadas: “Eu já lutei por negros e operários... Camisas Negras que guardo na memória”.

Mas o enfrentamento ao racismo ainda é uma página incompleta na história do clube que deve boa parte de suas glórias ao heroísmo dos ídolos negros.

terça-feira, novembro 26, 2019

Ficar só ou mal acompanhado – o que é melhor?



Por Mouzar Benedito

“O dize-me com quem andas que eu te direi quem és não quer dizer nada. Judas andava com Cristo. E Cristo andava com Judas.” (Não sei quem disse isso, mas concordo)

Até há quatro ou cinco anos, em quase todos os bares que eu entrasse na Vila Madalena, em São Paulo, muitos dos frequentadores, mais da metade em alguns deles, eram meus amigos ou pelo menos conhecidos.

Hoje, como sempre digo, só os garçons me conhecem.

Muitos que frequentavam os mesmos bares que eu, não frequentam mais nenhum, pelos mais variados motivos. Uns se sentem velhos; outros, doentes; outros; sem dinheiro… e outros foram desta para uma melhor, morreram.

Há quem tenha medo de sair de casa à noite e também quem mudou de ares, pela dificuldade de sobreviver em São Paulo, principalmente em relação ao custo de vida aqui.

O certo é que as companhias da gente vão raleando. Tanto as boas quanto as “más”.

De qualquer forma, o conceito de boa e má companhia não é uniforme. É questão de gosto. Quero distância de certas pessoas que se dizem “de bem”, que querem impor seu suposto bom-mocismo aos outros. Um bom mocismo que muitas vezes é mais um “mau-mocismo”, para o meu gosto. Desses, repito, quero distância. Prefiro a solidão.

Coletei frases sobre companhias (boas e más), sobre solidão (preferência ou medo dela), coisas por aí…

Barão de Itararé: “Dize-me com quem andas e eu te direi se vou contigo”…

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Revisão de um velho ditado: “Antes mal acompanhado do que só”.

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Millôr Fernandes: “Um homem começa a ficar velho quando prefere andar só do que mal acompanhado”.

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Antônio Maria: “É muito melhor estar mal acompanhado do que só. A única vantagem da solidão é poder entrar no banheiro e deixar a porta aberta”.

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Vinícius de Moraes: “Mesmo o amor que não compensa é melhor que a solidão”.

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Vinícius, de novo: “Eu não ando só, só ando em boa companhia, com meu violão, minha canção e a poesia”.

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Sartre: “Se você sente solidão enquanto a sós, está em má companhia”.

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Nietzsche: “Todas as companhias são más companhias, a menos que a gente não se cerque de seus iguais”.

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Paul Valéry: “Um homem só está em má companhia”.

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Paul Valéry, de novo: “Deus criou o homem e, vendo que ele não estava sozinho o bastante, providenciou-lhe uma companheira para acentuar sua solidão”.

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Tolstói: “O amor começa quando uma pessoa se sente só e termina quando uma pessoa deseja estar só”.

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Helen Rowland: “O casamento é a única coisa que dá à mulher o prazer de uma companhia e a perfeita sensação de solidão ao mesmo tempo”.

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Tchekhov: “Se tens medo da solidão, não te cases”.

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Martha Medeiros: “A solidão só me dá prazer na medida em que sei que ela é uma escolha. Solidão só dói quando é inevitável”.

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Ditado popular: “Mulher só, faz tudo; duas fazem pouco e três nada”.

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Júlio Ribeiro: “Nada há que tanto desanime o homem como o ter de lugar sem companheiro”.

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Ditado popular: “Quem com cães se deita, com pulgas se levanta”.

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Outra versão do mesmo ditado: “Quem se mistura aos porcos, farelos come”.

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Maquiavel: “Dizem a verdade aqueles que afirmam que as más companhias conduzem os homens à forca”.

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Maquiavel, de novo: “Quero ir para o inferno, não para o céu. No inferno, gozarei da companhia de papas, reis e príncipes. No céu, só terei por companhia mendigos, monges, eremitas e apóstolos”.

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Mark Twain: “Prefiro o paraíso pelo clima, o inferno pela companhia”.

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Ditado popular: “Quando a companhia não é certa, uma vista fechada e outra aberta”.

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Sylvio Abreu (no jornal O Trem Itabirano): “A única saída pra solidão é deixar de ser chato”.

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Ramalho Ortigão: “Eu creio tanto na influência dos maus jantares como na das más companhia na índole dos indivíduos, e adoto para mim esta sentença: ‘Diz-me o que comes, dir-te-ei as manhas que tens’”.

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Jean de La Bruyère: “Se queremos ser estimados, devemos viver com pessoas estimadas”.

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Georg Lichtenberg: “O homem ama a companhia, mesmo que seja apenas a de uma vela que queima”.

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Caio Fernando Abreu: “Eu quero mesmo é alguém que faça meu corpo querer companhia nos momentos em que minha mente insiste pela solidão”.

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Caio Fernando Abreu, de novo: “A solidão às vezes é tão nítida como uma companhia. Vou me adequando, vou me amoldando. Nem sempre é horrível. Às vezes é até bem mansinha. Mas sinto tão estranhamente que o amor acabou. Repito sempre: sossega, sossega – o amor não é para o teu bico”.

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Ditado popular: “Um homem e uma mulher juntos não fazem orações”.

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Clarice Lispector: “Parei de implorar companhia dos outros, se quiser ficar, fica; se não quiser, adeus”.

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Clarice Lispector, de novo: “Sim, minha força está na solidão. Não tenho medo nem de chuvas tempestivas nem das grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite”.

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Clarice Lispector, mais uma vez: “Sou companhia, mas posso ser solidão. Tranquilidade e inconstância, pedra e coração. Sou abraços, sorrisos, ânimo, bom humor, sarcasmo, preguiça e sono. Música alta e silêncio”.

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Göethe: “Diz-se da melhor companhia: a sua conversa é instrutiva, o seu silêncio, formativo”.

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Bernardo Guimarães: “A alma solitária é como a fonte do deserto, resguardada dos ventos que no regaço límpido e imóvel guarda fielmente a imagem do arvoredo que o sombreia”.

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Machado de Assis: “A solidão e o silêncio são asas robustas para os surtos do espírito”.

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Machado de Assis, de novo: “Tudo cansa, até a solidão”.

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Érico Veríssimo: “A gente foge da solidão quando tem medo dos próprios pensamentos”.

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Camilo Castelo Branco: “O mais eficaz remédio para um cérebro convulsionado é a solidão”.

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Ditado popular: “A solidão é para o espírito o que a dieta é para o corpo”.

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Berilo Neves: “Um homem sozinho, numa noite de temporal, numa esquina de rua, parado e com aspecto feliz, ou é maluco ou está apaixonado”.

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Tennessee Williams: “Estamos todos condenados à prisão perpétua, em solitária, dentro de nossas próprias peles”.

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Tennessee Williams, de novo: ”Quando todos se sentem sós, é egoísmo continuar só sozinho”.

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Marguerite Youcenar: “Jamais estamos inteiramente só, pois desgraçadamente estamos sempre em nossa própria companhia”.

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Ralph Emerson: “A solidão é impossível, e a sociedade, fatal”.

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Provérbio chinês: “As más companhias são como um mercado de peixes; acabamos por nos acostumar ao mau cheiro”.

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Hemingway: “Mesmo quando estava entre a multidão, estava sempre sozinho”.

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Baudelaire: “Quem não sabe povoar sua solidão, também não saberá ficar sozinho em meio a uma multidão”.

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Mário Quintana: “Sempre me senti isolado nessas reuniões sociais: o excesso de gente impede de ver as pessoas”.

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Quintana, de novo: “Viajar é mudar o cenário da solidão”.

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Zeca Baleiro: “Solidão não cura com aspirina”.

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Marguerite Duras: “Caminhais em direção à solidão. Eu não, eu tenho os livros”.

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Marquês de Maricá: “A companhia dos livros dispensa com grande vantagem a dos homens”.

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Marquês de Maricá: “Na mocidade buscamos as companhias, na velhice evitamo-las: nesta idade conhecemos melhor os homens e as coisas”.

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Gabriel García Márquez: “O segredo de uma velhice agradável consiste apenas na assinatura de um honroso pacto com a solidão”

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Flaubert: “As recordações não povoam nossa solidão, como dizem, ao contrário, faze-a mais profunda!”.

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Einstein: “Talvez algum dia a solidão venha a ser adequadamente reconhecida e apreciado como mestra da personalidade. Há muito que os orientais o sabem”.

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Confúcio: “Sou fadado a, mesmo enquanto caminho na companhia de dois homens quaisquer, aprender com eles. Imito as qualidades de um, os defeitos do outro, corrijo-os em mim mesmo”.

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Philip Chesterfield: “Entra no tom da companhia em que estás”.

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Padre Antônio Vieira: “Se não quero fazer companhia, arrisco-me a ficar só. Se quero ser amigo de todos, arrisco-me a ter todos por inimigos”.

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Walt Whitman: “Aprendi que é suficiente estar com aqueles de quem gosto”.

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Fernando Pessoa: A liberdade é a possibilidade do isolamento. Se te é impossível viver só, nasceste escravo”.

* * *

Carlos Drummond de Andrade: “Há certo gosto em pensar sozinho. É ato individual, como nascer e morrer”.

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Marisa Monte: “Quem foi que disse que é impossível ser feliz sozinho. / Vivo tranquilo, a liberdade é quem me faz carinho”.

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Mauro Santayama: “Educação para a vida deveria incluir aulas de solidão”.

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Lord Byron: “Na solidão é quando a gente está menos só…”.

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Stendhal: “Pode-se adquirir tudo na solidão, menos o caráter”.

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Schopenhauer: “A solidão é o destino de todos os espíritos excepcionais”.

* * *

Schopenhauer, de novo: “A ignorância só degrada o homem quando se encontra em companhia da riqueza”.

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François La Rochefoucauld: “A virtude não iria tão longe se a vaidade lhe não fizesse companhia”.

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Rousseau: “É sobretudo na solidão que se sente a vantagem de viver com alguém que saiba pensar”.

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Giacomo Leopardi: “Nada é mais raro no mundo que uma pessoa habitualmente suportável”.

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Rainer Maria Rilke: “Uma única coisa é necessária: a solidão. A grande solidão interior. Ir dentro de si e não encontrar ninguém durante horas, é a isso que preciso chegar. Estar só, como a criança está só”.

* * *

Ezra Pound: “Toda a arte começa na insatisfação física (ou na tortura) da solidão e da parcialidade”.

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Madame de Staël: “A consciência é uma pequena lanterna que a solidão acende à noite”.

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Cecília Meireles: “A minha infância de menina sozinha deu-me duas coisas que parecem negativas, e foram positivas para mim: ‘silêncio e solidão’”.

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Paul Valéry: “Há momentos infelizes em que a solidão e o silêncio se tornam meios de liberdade”

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Thomas Mann: “A solidão mostra o original, a beleza ousada e surpreendente, a poesia. Mas a solidão também mostra o avesso, o desproporcionado, o absurdo e o ilícito”.

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Francis Bacon: “Não há solidão mais triste do que a do homem sem amizades. A falta de amigos faz com que o mundo pareça um deserto”.

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Amyr Klink: “Quem tem um amigo, mesmo que um só, não importa onde se encontre, jamais sofrerá de solidão; poderá sofrer de saudade, mas não estará só”

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Émile-Augusto Chartier: “É, sem dúvida, próprio do homem enganar-se na escolha das companhias, mas também o é não dar o braço a torcer”.

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Marilyn Monroe: “Prefiro a tranquilidade da solidão à decepção de uma má companhia”.

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Marilyn Monroe, de novo: “Você já esteve em uma casa com 40 quartos? Bem, então multiplique minha solidão por 40”.

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Renato Russo: “Digam o que quiserem, o mal do século é a solidão”.

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Nelson Rodrigues: “A companhia de um paulista é a pior forma de solidão”.

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Victor Hugo: “Todo o inferno está contido nesta única palavra: solidão”.

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Nietzsche: “Não ouse roubar a minha solidão, se não fores capaz de me fazer real companhia”.

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Tati Bernardi: “Pra ficar do meu lado tem que ser melhor que minha própria companhia”.

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Eu:

“Mal a noite começa,

Arrumo companhia

Mas ela dorme depressa”

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Guimarães Rosa: “Eu estou só. O gato está só. As árvores estão sós. Mas não o só da solidão: o só da solistência”.

segunda-feira, novembro 25, 2019

Metrópole à beira-mar: em novo livro, Ruy Castro revela um Rio que exala modernidade



Por Bolívar Torres

Vendo os holofotes de relance, na foto aqui do alto, é até difícil reconhecer a paisagem, mas trata-se de um panorama do Centro do Rio em 1922, quando ocorreu a iluminada Exposição do Centenário – montada no espaço onde, até o início daquele ano, ficava o Morro do Castelo. Lotado durante seus dez meses de duração, o evento apresentou “as últimas” da tecnologia e ciência para cariocas ávidos de novidades.

Em “Metrópole à beira-mar”, que chega agora às livrarias, Ruy Castro busca justamente capturar o espirito daquele Rio avant-garde dos anos 1920, com seus artistas, escritores, imprensa, moda, vida social e urbana. Algumas páginas trazem imagens dos principais personagens da época, mas também exemplos do design arrojado que brotava de propagandas, capas de revistas e livros, elementos do dia a dia que dão o tom arrojado daquela década. Uma modernidade que impressiona por seus traços com ecos de art déco e art nouveau. Mas Ruy ressalta:

– Ninguém chamava isso de modernismo. O modernismo aqui era no dia a dia, as pessoas o viviam. O Rio estava habituado a ser assim. Ninguém precisava dizer “eu sou moderno” porque aquilo não era uma ação entre amigos. Era a cidade.

Essa é a tese central do livro. Biógrafo de Nelson Rodrigues, Garrincha, Carmen Miranda e da bossa nova, o autor revela agora uma cidade onde a revolução estética não estava em um manifesto, mas sim na respiração das ruas e no seu estilo de vida.

A comparação com São Paulo e sua Semana de Arte Moderna, também de 1922, é inevitável, apesar de Ruy não discutir a rivalidade entre as duas cidades no livro. Sua conclusão sobre esse modernismo não declarado do Rio, porém, é fruto de uma pesquisa de quatro anos em torno da época. Ela aparece na costura do percurso de personalidades impressionantes, que não por acaso dividiram os mesmos anos loucos, as mesmas calçadas e cafés.

– Quando se pensa no modernismo dos anos 1920, se pensa sempre em São Paulo. Mas, pesquisando bem, repara-se que o que aconteceu no Rio nesse mesmo período foi a vida real, não era só a brincadeira de fazer revistinha de vanguarda – argumenta o biógrafo. – A modernidade estava em tudo: na área científica, no comportamento... Em todos os departamentos as coisas estavam fervendo.


Entre a selvageria do “carnaval da gripe espanhola” em 1919, que abre o livro, e os cavalos invadindo as ruas na Revolução de 1930, que o encerra, desfilam nomes como Villa-Lobos, J. Carlos, Pixinguinha, Manuel Bandeira e Carmen Miranda.

Mas há também outros um tanto esquecidos, como Théo-Filho, que definiu os “vícios” de uma época com seus best-sellers escandalosos; Jayme Ovalle, o poeta secreto que não precisou publicar livros para influenciar meio mundo; ou ainda Eugenia Moreyra, a primeira repórter mulher do país. Entre os velhos dinossauros como Coelho Neto e as novas gerações, figuras como Graça Aranha e Ronald de Carvalho cumpriam papel mediador. Eram a própria personificação das transições artísticas.

Mas que cidade é essa? Ruy pinta um Rio que não dorme. Com cerca de 1,1 milhão de habitantes e mais lâmpadas elétricas do que Paris, a então capital federal, onde o samba amadurecia, havia assassinado a noite, como observara Albert Einstein ao visitá-la.

A fisionomia, o cheiro e os sons da cidade foram alterados pelos automóveis, e nela se concentravam os mais badalados cafés e se imprimiam as mais sofisticadas revistas, que consagravam em suas páginas o savoir vivre da metrópole. Esse Rio, que todos os brasileiros queriam visitar, “tocou o Brasil para a frente” durante toda a década, conclui Ruy.

“Metrópole à beira-mar” lembra o seminal “O Rio de Janeiro de meu tempo”, em que o escritor Luiz Edmundo (1878-1961) descreve o clima da cidade na primeira década da virada do século e sua lenta transição do provincianismo para a modernidade. Já o livro de Ruy coloca em cena um Rio plenamente afirmado e adaptado à sua velocidade e às suas luzes.


O autor não gosta muito da comparação, já que, ao contrário de Edmundo, não nasceu na época que pintou (ele é de 1948). Mas concorda que retomou a história exatamente onde o antecessor a havia deixado. É o momento em que Coelho Neto e sua turma da Confeitaria Colombo perdem influência cultural, em que os pince-nez caem em desuso, e em que as roupas vão ficando mais curtas. Ao mesmo tempo, autores “imorais”, como Gilka Machado, tornam-se possíveis, e as mulheres descobrem que podem dançar juntinho.

– Existe um vácuo sobre essa época – defende Ruy. – A historiografia se interessa pelo século XIX, pela Belle Époque, por Pereira Passos. Aí mata o Lima Barreto e o João do Rio (mortos em 1922 e 1921, respectivamente) e pula direto pro Getúlio... Os anos 1920 ficam abandonados. Tive que descobrir coisas em fontes que não existiam.

A bibliografia de “Metrópole à beira-mar” se estende por 25 páginas, o que dá uma dimensão do esforço de pesquisa do autor. Como colecionador compulsivo, contudo, Ruy nem sempre precisou ir longe de casa, já que é dono de uma vasta coleção de livros e revistas do período, desde raras primeiras edições de Paulo da Silveira e Benjamim Costallat a números dos semanários “Fon-Fon” e “O Malho”. Daí sua precisão ao descrever, ano a ano, a evolução do vestuário, da arquitetura e do noticiário local.

– Foi o livro mais difícil para mim, muito mais do que as biografias que escrevi – conta o autor. – A biografia é a vida de uma só pessoa. No fim, você a ressuscita. Já este livro é o apanhado de uma época e de um tempo. E com várias pessoas que viveram em um único espaço. Durante os quatro anos que levei para escrever, reconstruí uma cidade que deixou de existir há cem anos.


Cinco traços do Rio nos anos 1920

Vultos do século XIX, design gráfico de vanguarda, canelas à mostra, mulheres empoderadas e um coquetel de vícios. Nos anos 1920, todos estes elementos estiveram presentes no cotidiano do Rio de Janeiro – e são examinados por Ruy Castro no livro “Metrópole à beira-mar”.

Fim de uma era

Toda uma época morreu com Ruy Barbosa, em 1923. O “homem mais inteligente do Brasil” era o último de uma longa lista de grandes figuras que personificavam o século XIX, como Euclides da Cunha (1866-1909), Barão do Rio Branco (1845-1912), Machado de Assis (1839-1908), Olavo Bilac (1865-1918). Para Ruy, a partida do diplomata, escritor e eterno candidato à presidência representou a virada definitiva para o século XX, liberando todo mundo e relaxando o ambiente.

– Foi como se todos pensassem: agora já pode dançar maxixe à vontade, já pode fazer sacanagem e falar palavrão, porque não tem aquele cara lá regulando se a gente está usando o adjetivo certo – brinca Ruy.

No entanto, como o próprio autor mostra, Barbosa já vinha se eclipsando em vida. E, apesar do funeral grandioso, via o seu prestígio cada vez mais diminuído entre as novas gerações.

Revolução gráfica e editorial

Um dos jornalistas mais bem pagos da época e campeão de vendas com o escandaloso romance “Mlle. Cinema” (apreendido por atentado à moralidade), Benjamim Costallat mudou a maneira de vender livros ao fundar a sua Costallat & Miccolis. Não apenas tinha faro único para encontrar temas da moda, como ainda sabia como poucos dar um aspecto sensacionalista aos livros que editava. Para isso, reinventou o projeto gráfico das publicações.

Se até então vigoravam as capas lisas e minimalistas, a Costallat & Miccolis apresentou ao Brasil ao Brasil capas vistosas e coloridas, assinadas por gênios como Di Cavalcanti e J. Carlos. Também mantinha, segundo Ruy, uma relação de raro profissionalismo com os seus autores. Com milhares de exemplares vendidos, praticamente inventou a edição moderna no país.


Evolução da moda

Ruy descreve, ano a ano, as mudanças no vestuário da cidade.

– A moda saiu daquela mulher toda cheia de roupa, chapéu de dois andares e peito de pomba, e foi para o cabelo curto, o chapeuzinho e uma roupa que foi se afunilando progressivamente – explica.

As saias, por sua vez, subiram ao meio das canelas. A mudança, que teria chegado ao Rio poucos meses após virar tendência no exterior, foi documentada com deslumbramento por jovens como o jornalista e escritor Peregrino Júnior.

As grandes “influenciadoras” desta moda foram as filhas dos diplomatas fixados nas muitas embaixadas do Rio além das imagens de filmes americanos, jornais e revistas, que promoviam um novo frescor. Já os conservadores falavam na “praga do melindrosismo”.

Mulheres em destaque

Há inúmeras mulheres protagonistas em “Metrópole à beira-mar”. Elas representam diversas áreas, como a soprano Bidu Sayão, as poetas Mercedes Dantas e Gilka Machado, as romancistas Chrysanthème e Albertina Bertha, a bióloga e ativista Bertha Lutz, a pioneira do jornalismo Eugenia Moreyra, entre tantas outras.

Ruy, porém, recusa a representação atual de que elas seriam reprimidas ou discriminadas por seus editores e críticos por serem mulheres. Embora reconheça que a realidade e oportunidades delas não era a mesma da imensa maioria das mulheres da época (“o grosso ainda estava em 1880”, escreve), o autor defende que elas eram figuras admiradas e respeitadas. Muitas autoras tinham invejável sucesso comercial.

– Se você dissesse a Albertina Bertha que ela era perseguida por ser mulher, ela era capaz de te matar! – diz Ruy.

Cidade entorpecida

O Rio seguiu a tendência mundial de se entorpecer em drogas após o fim da Primeira Guerra, entregando-se a “um alegre programa suicida, à base de éter, cocaína, morfina, heroína e ópio”. Diversos escritores descreveram (com conhecimento de causa) as fumeries de ópio, que começaram nas adjacências da rua Primeiro de Março e logo se estenderam aos bairros mais finos.

Menos chique e de fácil aplicação, a morfina era vendida em ampolas nas farmácias (foi cantada por Manuel Bandeira no poema “Pierrete”, de 1919). Já a cocaína tinha dezenas de apelidos, como pó de lua ou ainda fubá mimoso. Começou circulando livremente por lugares chiques como o restaurante Assirio, mas logo chegou aos banheiros do teatros e até aos salões de beleza.

– As coisas nem eram escondidas – lembra Ruy. – A revista “Para Todos”, que tirava 50 mil exemplares por semana, tinha inúmeras referências a cocaína em suas crônicas. O Álvaro Moreyra, aquela figura doce, era fascinado por cocaína e deu até o nome da droga a um livro dele.

quinta-feira, novembro 21, 2019

Como vigiar os Watchmen



Por Edson Aran

Alan Moore é uma prima-doma e dá chilique cada vez que uma obra sua é adaptada ou ganha sequência. No caso de “Watchmen”, a encrenca vem de longe. Em 1984, Moore foi contratado para introduzir no Multiverso DC os personagens da editora Charlton Comics, recém adquirida pela DC.

Ao contrário da Marvel, que criou um universo conectado e organizado pelo editor Stan Lee, a DC sempre foi uma bagunça. A editora, que faz parte do grupo Warner Media desde 2009, cresceu comprando personagens concorrentes para depois enfiá-los a fórceps no mesmo playground.

No caso da Charlton, a ideia era apresentar ao leitor personagens desconhecidos como Questão, Besouro Azul, Pacificador e Capitão Átomo. Mas a proposta de Alan Moore foi tão ousada que o editor da DC na época, Dick Giordano, optou por uma série adulta independente. Com carta branca, Moore se juntou a Dave Gibbons, seu parceiro na revista inglesa de ficção científica “2000 AD”, e enfiou o pé na jaca.

Lançada em 12 edições entre 1986 e 1987, “Watchmen” é uma das obras literárias mais impactantes da segunda metade do século 20. A série afetou não apenas as HQs, mas também o cinema e a literatura, trouxe respeitabilidade a um gênero literário menor e mostrou como é possível contar grandes histórias mesmo quando os protagonistas vestem cueca por cima da calça. Sem ela não haveria “Coringa”, o “Batman” de Christopher Nolan, “Os Incríveis”, “Kick-Ass”, os filmes da Marvel e possivelmente nem as carreiras de Neil Gaiman e Michael Chabon.

A graphic novel é sempre citada ao lado de “O Cavaleiro das Trevas”, de Frank Miller, também publicado em 1986, mas as duas obras são muito diferentes. O Batman de Miller é obcecado e violento, mas encarna as melhores virtudes americanas e ganha o direito moral de impor a lei com as próprias mãos. Já os “Watchmen” de Moore e Gibbons representam o pior da América. São violentos, reacionários, fascistoides e, na melhor das hipóteses, querem apenas fama e dinheiro, como a Espectral original. O melhor entre eles, Ozymandias, descrito no quadrinho como o único herói de “centro-esquerda” do grupo, é capaz de assassinar milhões de pessoas para alcançar seus objetivos, borrando a linha que separa os super-heróis dos super-vilões.

“Watchmen” é uma sátira perversa, como todas as boas sátiras, mas Moore e Gibbons têm genuíno carinho pelos seus personagens e pelo gênero literário a que eles pertencem. Rorschach, Dr Manhattan, Espectral, Comediante, Coruja e Ozymandias são criações complexas e multifacetadas. Você compreende as opções deles, mesmo que não concorde com elas. A técnica narrativa também é primorosa, pois Moore lança mão de diversos recursos multimídia (trechos de livros, recortes de jornais, entrevistas), aproximando as HQs da literatura de vanguarda de Vladimir Nabokov, William Burroughs e Georges Perec.

Ao mesmo tempo, “Watchmen” também lança um olhar nostálgico ao gênero dos super-heróis, recriando um passado ficcional sólido para o universo onde a aventura transcorre. Moore aprofundaria esse recurso narrativo nos anos 90 com “Supremo”, uma cópia de Superman criada por Rob Liefeld na Image Comics que ficou melhor que o original enquanto Alan Moore esteve no comando dos roteiros.

O traço formal de David Gibbons dá a sutileza e a sobriedade que a série precisa. Um desenhista mais vanguardista, como Simon Bisley ou Bill Sienkiewicz, poderia ter feito uma graphic novel muito mais bonita, mas certamente menos efetiva. Gibbons não rouba atenção do texto e usa suas imagens para reforçá-lo.

Com o sucesso da série, Alan Moore e a DC entraram em conflito logo de cara. Os “Watchmen”, afinal, são derivados dos personagens da Charlton. Rorschach é o Questão, Ozymandias é Thunderbolt, Dr Manhattan é o Capitão Átomo e por aí vai. Por outro lado, Moore acrescentou muito mais camadas a essas criações. Rorschach tem mais nuances que o herói inventado por Steve Ditko (que, aliás, também é co-criador do Homem-Aranha).

O imbróglio judicial continua até hoje e a amizade entre o criador e a DC terminou de vez em 2010, quando a editora comprou a Wildstorm de Jim Lee e levou junto o selo ABC Comics, de Alan Moore, que publicava “Promethea” e “Tom Strong”.

Com o afeto encerrado, a DC agora tira tudo o que pode dos personagens criados (ou revisados) por Moore. Teve o filme equivocado de Zack Snyder em 2009, a dispensável série de quadrinhos “Antes de Watchmen” em 2012 e, recentemente, os personagens foram incorporados ao Multiverso DC na série “O Relógio do Juízo Final”, publicada no Brasil pela Panini. Com texto de Geoff Johns e desenhos de Gary frank e Brad Anderson, a série é engenhosa e respeitosa, mas isso não importa um cazzo porque Moore continua puto.

Ele tem toda a razão de brigar pelos personagens criados (ou revisados) por ele. Por outro lado, o autor faz exatamente a mesma coisa em “A Liga Extraordinária”, incorporando criações de Bram Stoker, Henry Rider Haggard e Virginia Woolf. Na verdade, o primeiro grande sucesso de Alan Moore como roteirista foi “Miraclemen”, que era uma versão britânica não-autorizada do Capitão Marvel da DC, que hoje é conhecido como Shazam, porque o nome “Capitão Marvel” pertence à concorrência. O mundo dos quadrinhos nunca foi justo, mas ele é democrático: não é justo com ninguém.

Ok, o texto está longo demais. Continuo semana que vem neste mesmo bat-horário e nesse mesmo bat-canal quando você finalmente vai saber:

1 — Como “Watchmen” se insere no stress do apocalipse nuclear dos anos 80 e a relação dele com obras como “Mad Max” e o “Exterminador do Futuro”.

2 — Porque Zack Snyder é uma besta e o filme dele é tão ruim, apesar de alguns acertos pontuais, tipo Malin Akerman como a segunda “Espectral”.

3 — E, se couber, também falo da nova série da HBO.

Stay tuned.

Como Zack Snyder destruiu Watchmen



Por Edson Aran

Até o fim desse texto, o segundo que escrevo sobre “Watchmen”, vou provar que Zack Snyder é uma besta. Não saia daí.

Toda época inventa o seu apocalipse. Atualmente nós nos angustiamos com ondas gigantescas invadindo cidades por conta do aquecimento global. Nos anos 1980, o fim do mundo era nuclear e parecia estar a poucos minutos de acontecer. É por isso que os relógios dominam a novela gráfica “Watchmen”. É um relógio esquecido na câmara de testes de campo intrínseco que faz o físico Jonathan Osterman voltar até lá e ser desintegrado para renascer como Doutor Manhattan.

A obra de Alan Moore e Dave Gibbons também faz referência ao “Relógio do Juízo Final”, criado pelos cientistas nucleares de Chicago em 1947 e que marca, simbolicamente, os minutos que faltam para o apocalipse. Em 1986, ano em que o quadrinho foi lançado, ele marcava 23h57 devido aos discursos belicosos do presidente americano Ronald Reagan e ao avanço dos soviéticos sobre o Afeganistão.

A destruição do mundo por bombas nucleares está presente em toda a cultura pop dos anos 80: “Mad Max 2” (1981), “O Dia Seguinte” (1983), “A Hora da Zona Morta” (1983), “O Exterminador do Futuro” (1984) e “Akira” (1988), para citar apenas alguns.

“Watchmen” faz parte do mesmo zeitgeist e reflete esse stress. No quadrinho, a existência de super-heróis não afeta o desejo autodestrutivo da raça humana e é isso o que motiva Ozymandias a assassinar milhões para salvar bilhões. É uma escolha moral, mas ele tem o direito de fazê-la? Essa é a essência da obra. Quem vigia os vigilantes?

O plano de Ozymandias é extremamente elaborado, envolve falsas empresas de “exploração extradimensional” e a fabricação de uma bizarra criatura por meio de engenharia genética. É por isso que a HQ “Contos do Cargueiro Negro” é intercalada à trama de “Watchmen”.

O roteirista do gibi de piratas é um dos colaboradores de Ozymandias na criação da farsa. Além da aparição do monstro colossal em Nova York, que já vai provocar a morte de milhões, o vilão quer imprimir no inconsciente coletivo o registro de um mundo de horror lovecraftiano, única coisa capaz de fazer a humanidade se unir, pensa ele.

Esse plano mirabolante só faz sentido num universo povoado por super-heróis. É uma conspiração ridícula que só tem lógica num mundo ridículo e é isso que dá sentido à sátira trágica de Alan Moore e Dave Gibbons. Moore já explicou que seu objetivo era fazer uma versão dramática de “Superduperman”, uma antiga HQ de Harvey Kurtzman e Wally Wood publicada no “Mad” clássico. E é por isso que Zack Snyder é uma besta.

Embora o filme dele tenha seus acertos — a trilha sonora, Rorschach na prisão — a coisa toda desaba com o final alternativo, que faz a culpa da conspiração recair sobre Doutor Manhattan. Não faz sentido. O peladão azul é o trunfo americano na Guerra Fria. Mesmo se desse a louca no cara, ele ainda seria um problema dos americanos e acirraria ainda mais o conflito, em vez de acabar com ele. Além disso, pro plano dar certo, bastaria que Adrian Veidt, o Ozymandias, levasse um lero com Doutor Manhattan e, pronto, a história sequer existiria.

Zeca Isnáida só entende de câmera lenta e personagens bidimensionais como o Leônidas do insuportável “300”, um filme ruim inspirado numa HQ que também é um lixo. Melhor nem entrar nas considerações políticas sobre esse quadrinho menor de Frank Miller para não provocar a militância fascistoide das redes. Ah, quer saber? Foda-se. A obra é proto-nazista com sua glorificação à morte, ao militarismo e aos espartanos de raça pura. Pronto, falei.

Por ser a besta que é, Zeca Isnáida também afundou a DC no cinema. Ele transformou o Superman num alienígena sem noção capaz de destruir cidades inteiras sem se importar com os seres humanos. Como o herói é a pedra angular da DC, o universo inteiro ruiu.

É só por hoje. Semana que vem tem mais.

PS: o Relógio do Juízo Final marca 23h58 desde o ano passado, mas o espírito do tempo é outro.

Como a HBO transformou Watchmen numa Zorra Total



Por Edson Aran

Este é o terceiro e último texto sobre “Watchmen”. Semana que vem volto a falar sobre temas muito mais palpitantes como a função do ponto-e-vírgula; e o que significa “palpitante”. Escrevi sobre o quadrinho, o filme do Zeca Isnáida e agora, finalmente, vou falar sobre a série de HBO.

Este texto foi escrito depois do quarto episódio e já dá para concluir algumas coisas. A primeira: quem gosta do filme do Zeca Isnáida não vai curtir a série, que é uma continuação da graphic novel e não da bos, digo, da brilhante produção zeca-isnaidiana.

A história se passa 34 anos depois dos quadrinhos. O presidente agora é Robert Redford, que trocou o tédio do Festival de Sundance pela chatice da política. No finalzinho da HQ, um jornal menciona a candidatura do ator, então a coisa é “canônica”. 

O plano de Ozymandias com o falso polvo gigante deu certo. A corrida nuclear acabou e o mundo se uniu contra ameaças extradimensionais. Aparentemente, os Estados Unidos incorporaram vários países. O Vietnã é um deles. Lá, como aqui, o comunismo deu ruim e talvez exista apenas em países ridículos do Terceiro Mundo, como Cuba e Venezuela. A ver.

A série menciona que a Rússia está construindo uma “câmera de campo intrínseco”, experimento que acidentalmente criou o Doutor Manhattan. Em vez da corrida nuclear pode ser que aconteça uma corrida de super-seres em “Watchmen”, mas ainda é cedo para tirar conclusões.

A ação se passa em Tulsa, Oklahoma, e tem ligações com os distúrbios raciais que ocorreram (de verdade) em 1921, quando a Ku Klux Klan atacou e destruiu a próspera comunidade negra local.

No mundo de “Watchmen”, os descendentes das vítimas podem requisitar uma indenização ao governo – conhecida pejorativamente como “redfordation”. Isso provoca a ira da nova Klan, que agora usa máscaras de Rorschach e se chama Sétima Kavalaria.

No passado, eles atacaram policiais e familiares num evento chamado de “Noite Branca” e, por conta disso, a polícia de Tulsa pode usar máscaras de super-heróis, mas o vigilantismo continua proibido no restante dos Estados Unidos.

A história começa com a assassinato do chefe de polícia extremamente gente boa (Don Johnson) que tem, porém, um esqueleto no armário. Quer dizer, “esqueleto”, não, um camisolão da Klan. Isso só pode significar uma coisa: no universo de “Watchmen” não existe “Django Livre”.

A morte do policial é atribuída à Sétima Kavalaria, mas é evidente que há uma conspiração maior por trás de tudo. Pelo menos é evidente para a protagonista, Sister Night, que é policial, mas se veste de super-freira. Ela começa uma investigação por conta própria e entra em cena Laurie Blake, a ex-Silk Spectre, que agora trabalha para o FBI caçando vigilantes.

Aparentemente, Laurie fez as pazes com o passado, adotou o sobrenome do pai (O Comediante) e virou uma badass que adora piadas sarcásticas. Não é nem de longe a mesma personagem que conhecemos nos quadrinhos. Ou algum acontecimento traumático provocou uma mudança psicológica profunda nela ou o roteirista seguiu o primeiro mandamento da Hollywood atual: “Acrescentes mais uma Strong Female Character ou não terás dinheiro para a produção!”

Enquanto a investigação sobre Don Johnson prossegue, descobrimos que um velhinho simpático numa cadeira de rodas é um garoto que sobreviveu ao massacre de Tulsa. Ele também é avô de Sister Night e talvez tenha super-poderes. Talvez.

Uma trilionária vietnamita comprou a empresa que um dia foi de Adrian Veidt, o Ozymandias, e é claramente a vilã da história. Os Rorchachs são apenas uma distração e a sub-trama que os envolve não é importante.

Ozymandias foi dado como morto, mas vive cercado de clones numa mansão que parece situada no interior da Inglaterra, mas que, ao que tudo indica, está em Marte sob a guarda do Doutor Manhattan, que ainda não deu as caras. Ozymandias é interpretado por Jeremy Irons que faz mais uma excelente interpretação de Jeremy Irons.

O “Watchmen” da HBO é divertido, bizarro e cheio de easter eggs. Falta, contudo, aquilo que tornou a HQ um marco: desenvolvimento de personagens. Não tem.

O que tem é mistério que não acaba mais. Por exemplo: chovem mini-lulas, logo alguém está se esforçando para manter viva a farsa do polvo gigante. Será a vietnamita ricaça? Será o Doutor Manhattan? Será Robert Redford? Será o Benedito? Ninguém sabe.

O produtor e show runner é Damon Lindelof, co-criador de “Lost”, um colossal fenômeno pop que teve um final ridículo: todo mundo estava morto desde o primeiro episódio e nada na série realmente importava. O problema de enfileirar enigmas é que a audiência cria suas próprias teorias e a conclusão orquestrada pelo roteirista nunca é satisfatória.

Certo está David Lynch que se recusou a explicar “Twin Peaks” e terminou a série com muito mais perguntas do que respostas. Mas ele é David Lynch e não Damon Ligelof. Ainda assim, “Watchmen” vale muito a pena, embora pareça mais um spin-off de “Doom Patrol” do que da graphic novel de Alan Moore e Dave Gibbons. Quem vigia os showrunners? Ninguém!  

quarta-feira, novembro 20, 2019

Zumbi dos Palmares pecou pelo radicalismo



O livro “Palmares – A Guerra dos Escravos”, de Décio Freitas, ainda é a mais importante pesquisa histórica já realizada no Brasil sobre o Quilombo de Palmares. Lançado em 1973, foi o primeiro trabalho capaz de apresentar dados concretos sobre a identidade do líder negro Zumbi e a formação social de Palmares.

Décio Freitas, 73, historiador e advogado gaúcho, um dos principais estudiosos da escravidão no Brasil, contou à Folha, em sua casa em Porto Alegre, que escreveu o livro com recursos próprios. Inicialmente como exilado no Paraguai e depois percorrendo clandestino arquivos do Brasil, até viajar a Portugal, onde concluiu a pesquisa em diversos arquivos.

Freitas disse que resolveu estudar Palmares “para conhecer o meu país, tentar entender por que o golpe militar de 64 tinha acontecido. Sentia que precisava ir às raízes históricas”. Ele tem hoje uma visão diferente do líder negro Zumbi. “Acho que, se ele tivesse sido menos radical e mais diplomático, como foi seu tio Ganga-Zumba, teria possivelmente alterado os rumos da escravidão no Brasil.”

Freitas acha que ainda há muito a se descobrir sobre aquele episódio da história, mas não é otimista no que se refere à pesquisa arqueológica que vem sendo realizada na serra da Barriga, Alagoas.


O sr. estava exilado quando começou a pesquisa sobre Palmares?

É. Fui cassado pelo Ato Institucional nº 2, logo no início do golpe de 64. Quando o Jango foi derrubado, eu ocupava um cargo de confiança no governo em Brasília, presidia uma fundação federal, a Fundação Brasil Central. Fui morar em Montevidéu naquele ano, e logo que lá cheguei houve muitas conspirações para que fosse armado um contragolpe no Brasil. Eu participei dessa negociação. Nós pretendíamos, ao entrar no Brasil, lançar um manifesto dividido em duas partes: uma parte histórica, na qual nós nos apresentaríamos como continuadores das lutas populares, e a outra parte seria política e atualizada. Eu era do grupo encarregado dessa primeira parte. Foi então que, ao fazer a pesquisa para o manifesto, li pela primeira vez, em Varnhagen (Francisco Adolfo Varnhagen, 1810-1872, historiador brasileiro) algumas linhas sobre Palmares.

Por que Palmares?

Porque achei intrigante aquilo ali, tratado como um episódio quase policial por Varnhagen, prontamente debelado pelas autoridades. Comecei a descobrir coisas na Biblioteca Nacional de Montevidéu. Em Buenos Aires, na Biblioteca Nacional, também encontrei muita coisa. E então vim ao Brasil clandestinamente.

Como foi essa viagem?

Eu vim de trem até a fronteira, até Rio Branco, cruzei a ponte para Jaguarão e de lá vim de ônibus. De carro seria temerário. Primeiro vim a Porto Alegre, fiquei aqui algum tempo clandestinamente, trabalhando no Instituto Histórico e Geográfico. Fui ao Rio de Janeiro, trabalhei na Biblioteca Nacional e no Arquivo Nacional. Depois, numa segunda vez, fui até Recife e Maceió. Na volta dessa viagem, comecei a ver que havia gente nos meus calcanhares. Então me refugiei na casa de uma senhora suíça, aqui em Porto Alegre, onde passei dois meses estudando Palmares. Na minha mesinha de trabalho tinha acima uma foto de Mussolini, porque essa mulher era fascista, tinha se casado com um italiano fascista.

As principais descobertas de sua pesquisa foram feitas em Portugal?

Exato. Em 1976, decidi ir a Portugal e fiquei seis meses pesquisando lá, por minha conta. Trabalhei muito, no Arquivo Histórico Ultramarino, no Arquivo da Torre do Tombo, na Biblioteca da Ajuda e no Arquivo e Biblioteca Distrital de Évora. Um pouco em Coimbra também. O problema dos arquivos portugueses é que eles não tinham nem sequer catálogo. Eu tinha que procurar caixa por caixa, maço por maço, apenas tendo em conta a época. Um trabalho extremamente sacrificado porque eu não era paleógrafo, e a linguagem do século 17 é de leitura muito difícil. Não havia xerox. Tive que recorrer a um fotógrafo para fotocopiar os documentos. Na volta, eu tornei a trabalhar no assunto e acrescentei muita coisa.

O sr. tinha consciência de que estava realizando um trabalho pioneiro sobre o tema?

Olha, os melhores textos que eu encontrei na época sobre Palmares foram o do Edison Carneiro, “O Quilombo dos Palmares”, e um ensaio de um escritor surrealista francês chamado Benjamin Peret. O ensaio dele dizia que os documentos portugueses falavam em vários Zumbis. Mas ele achava que havia qualquer coisa de falso naquela afirmação. Foi ele quem estabeleceu a data de 20 de novembro para a morte de quem ele supunha ser um dos muitos Zumbis. O Edison Carneiro retomou essa data depois. É isso que havia de mais desenvolvido sobre Palmares.

Qual foi a maior contribuição de sua pesquisa?

Bem, com relação a Zumbi especificamente, acho que foram as cartas do padre Antonio Melo, que criou Zumbi até os 15 anos. Mas eu encontrei, por exemplo, indicações da existência de Palmares em documentos do início do século 17, e não apenas depois da ocupação holandesa ou durante ela. E vi que foi um dos mais importantes problemas da colonização portuguesa no século 17. Do ponto de vista bélico, foi o mais importante. Eles empregaram mais força contra Palmares do que na guerra contra os holandeses. Quanto a Zumbi, todo mundo ainda se referia a ele como sendo o titular de um cargo ou posto militar. E por isso teria havido tantos Zumbis. Eu efetivamente entendia que não. Até que um dia, por mero acaso – e a pesquisa histórica depende muito de sorte também e do acaso –, eu encontrei uma consulta do Conselho Ultramarino, órgão de assessoria ao rei, em que se dizia ao rei que todas as certidões que diziam ter sido morto um Zumbi eram falsas, forjadas para que os chefes das expedições recebessem as mercês do rei. Verificou-se que Zumbi continuava vivo. Este foi o ponto de partida para estabelecer a identidade de Zumbi. Até que encontrei as cartas do padre Antonio Melo.

O que o sr. acha da pesquisa arqueológica que vem sendo desenvolvida na serra da Barriga por arqueólogos e historiadores brasileiros e americanos?

Eu vi que vocês da Folha publicaram isso. Eu acho que o que eles conseguiram até agora é muito precário para chegar a afirmações tão categóricas como, por exemplo, dizer que a presença indígena era muito grande em Palmares. É claro que havia indígenas entre eles. Mas os negros, sobretudo os de Palmares, não confiavam nos índios. Em todas as expedições contra Palmares, o mais forte contingente era de índios. Eles estavam aliados aos portugueses.

Mas o sr. acha possível encontrar, por meio da arqueologia, resquícios do quilombo?

Eu não tenho muita fé nisso, porque Palmares era um tipo de sociedade muito precária, em termos materiais. Eles usaram pedras nas fortificações do Macaco, mas o restante eram mocambos de madeira. Então, eu não vejo possibilidade de novas descobertas por meio de escavações.

Ganga-Zumba e Zumbi dos Palmares



Ganga-Zumba foi o primeiro grande chefe conhecido do Quilombo de Palmares. Era tio de Zumbi e celebrizou-se por ter assinado um tratado de paz com o governo de Pernambuco.

Em 1677, sob sua chefia, Palmares travou dura guerra contra a expedição portuguesa de Fernão Carrilho. Nesta batalha, as tropas da coroa fizeram 47 prisioneiros, entre os quais dois filhos de Ganga-Zumba (Zambi e Acaiene), netos e sobrinhos. Um de seus filhos, Toculo, foi morto na luta. O próprio Ganga-Zumba foi ferido por uma flecha mas escapou.

Em 1678, o governador Pedro de Almeida fez a primeira proposta de paz a Ganga-Zumba, oferecendo “união, bom tratamento e terras”, além de prometer devolver “as mulheres e filhos” de negros que estivessem em seu poder.

Em junho de 1678, o oficial enviado a Palmares para levar a proposta retornou a Recife, à frente de um grupo de 15 palmarinos, entre os quais se encontravam três filhos de Ganga-Zumba, recebidos pelo governador Almeida.

Em troca da paz, os palmarinos pediam liberdade para os nascidos em Palmares, permissão para estabelecer “comércio e trato” com os moradores da região e um lugar onde pudessem viver “sujeitos às disposições” da autoridade da capitania. Prometiam entregar os escravos que dali em diante fugissem e fossem para Palmares.

Em novembro do mesmo ano, Ganga-Zumba foi a Recife assinar o acordo. É cedida a ele e seus partidários a região de Cucaú, distante 32 km de Serinhaém.

Parte dos palmarinos, liderados por Zumbi, são contrários ao acordo de paz e se recusam a deixar Palmares. Em Cucaú, vivendo sob forte vigilância da autoridade portuguesa e hostilizado pelos moradores das vilas próximas, Ganga-Zumba vê frustrada sua iniciativa. Morreu envenenado por um partidário de Zumbi.


Zumbi dos Palmares nasceu no estado de Alagoas no ano de 1655. Foi um dos principais representantes da resistência negra à escravidão na época do Brasil Colonial.

Foi líder do Quilombo dos Palmares, comunidade livre formada por escravos fugitivos das fazendas. O Quilombo dos Palmares estava localizado na região da Serra da Barriga, que, atualmente, faz parte do município de União dos Palmares (Alagoas).

Na época em que Zumbi era líder, o Quilombo dos Palmares alcançou uma população de aproximadamente trinta mil habitantes. Nos quilombos, os negros viviam livres, de acordo com sua cultura, produzindo tudo o que precisavam para viver.

Embora tenha nascido livre, foi capturado quando tinha por volta de sete anos de idade. Entregue a um padre católico, recebeu o batismo e ganhou o nome de Francisco. Aprendeu a língua portuguesa e a religião católica, chegando a ajudar o padre na celebração da missa. Porém, aos 15 anos de idade, voltou para viver no quilombo.

No ano de 1675, o quilombo é atacado por soldados portugueses. Zumbi ajuda na defesa e destaca-se como um grande guerreiro. Após uma batalha sangrenta, os soldados portugueses são obrigados a retirar-se para a cidade de Recife. Três anos após, o governador da província de Pernambuco aproxima-se do líder Ganga Zumba para tentar um acordo, Zumbi coloca-se contra o acordo, pois não admitia a liberdade dos quilombolas, enquanto os negros das fazendas continuariam aprisionados.

Em 1680, com 25 anos de idade, Zumbi torna-se líder do quilombo dos Palmares, comandando a resistência contra as topas do governo. Durante seu “governo” a comunidade cresce e se fortalece, obtendo várias vitórias contra os soldados portugueses. O líder Zumbi mostra grande habilidade no planejamento e organização do quilombo, além de coragem e conhecimentos militares.

Para o bandeirante paulista Domingos Jorge Velho, chefe da milícia armada contratada pela Coroa portuguesa para matá-lo e destruir Palmares, sua vida, entretanto, não valia mais do que cem mil réis e um punhado de farinha de mandioca.

Em 1694, Domingos Jorge Velho organiza um grande ataque ao Quilombo dos Palmares. Após uma intensa batalha, Macaco, a sede do quilombo, é totalmente destruída. Ferido, Zumbi consegue fugir, porém é traído por um antigo companheiro e entregue as tropas do bandeirante. Aos 40 anos de idade, foi degolado em 20 de novembro de 1695.

Zumbi é considerado um dos grandes líderes de nossa história. Símbolo da resistência e luta contra a escravidão, lutou pela liberdade de culto, religião e pratica da cultura africana no Brasil Colonial. O dia de sua morte, 20 de novembro, é lembrado e comemorado em todo o território nacional como o Dia da Consciência Negra.

Kizomba, festa da raça



Por Américo Souza

Em 1988 a Unidos de Vila Isabel cantou na Sapucaí o samba-enredo “Kizomba, festa da raça”. A música de Rodolpho, Jonas e Luís Carlos da Vila, encantou a todos, sendo decisiva para o título da escola, tornando-se, instantaneamente, um clássico do carnaval brasileiro.

Marcada por um ritmo forte e cadenciado, bem próximo da batida dos atabaques de terreiro, a música traz uma poesia igualmente intensa e transgressora, posto que busca desconstruir um dos mais caros mitos da nossa história oficial, aquele que atribui à generosidade da princesa Isabel todo o crédito pelo fim da escravidão no Brasil.

Já em seu primeiro verso – “Valeu Zumbi/ O grito forte dos Palmares/ Que correu terras, céus e mares/ Influenciando a abolição” – fica explícita a importância da resistência dos escravizados para a construção da abolição.

Esta compreensão só muito recentemente passou a compor os livros didáticos de história do Brasil, evidenciando que o conhecimento e, acima de tudo, a sabedoria, não são exclusividades dos Doutores da Academia, menos ainda dos que dirigem a educação nacional.

Para além da abolição, esta música nos ajuda a pensar sobre o lugar do negro na sociedade brasileira do pós-abolição. O seu segundo verso diz “Zumbi valeu/ Hoje a Vila é Kizomba/ É batuque, canto e dança/ Jongo e maracatu/ Vem Menininha para dançar o caxambu”.

Palavra de origem kinbundo língua africana originária do milenar tronco linguístico banto e que muito contribuiu para o vocabulário do português falado no Brasil, sendo, até hoje, falada em Angola, kizomba significa festa de exaltação da vida e da liberdade. A abolição trouxe conquistas a serem celebradas e o carnaval, festa maior do Brasil e fortemente marcada por elementos afro-brasileiros, é o grande espaço desta celebração; é mesmo a personificação da kizomba.

Em canção chamada “Dia de graça”, o genial Candeia afirma o lugar de destaque que o negro tem durante o carnaval quando diz “Hoje é manhã de carnaval(ao esplendor)/ As escolas vão desfilar (garbosamente)/ Aquela gente de cor com a imponência de um rei, vai pisar na passarela (salve a Portela)”, para depois expor o outro lado, o da vida cotidiana, bem menos glamourosa: “Vamos esquecer os desenganos (que passamos)/ Viver a alegria que sonhamos (durante o ano)/ Damos o nosso coração, alegria e amor a todos sem distinção de cor/ Mas depois da ilusão, coitado/ Negro volta ao humilde barracão.”

Em pesquisa divulgada em 2012, sob o título “A Dinâmica Demográfica da População Negra Brasileira”, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) afirma que, a despeito dos avanços registrados nas últimas décadas, a situação da população negra no País continua bastante vulnerável, sendo maioria na composição dos segmentos com menor grau de escolaridade, menor nível de renda, maior índice de morte por violência e maior mortalidade infantil e materna.

Além disso, o Brasil está longe de ser o país da “democracia racial” preconizado por Freyre e os afrodescendentes ainda são alvo de contínuos processos de preconceito e estereótipo raciais.

Outra pesquisa, feita por entidades ligadas ao Movimento Negro carioca, apontou que no período do carnaval a presença do negro em matérias da imprensa sobre arte e cultura é bastante intensa, enquanto que, no restante do ano, o negro aparece hegemonicamente nas páginas policiais, ou em matérias sobre pobreza e áreas de risco.

Vivemos ainda uma situação de clivagem social definida pela origem étnica, como insinua o samba da Vila quando diz, “Nossa sede é nossa sede/ De que o Apartheid se destrua”. A diferença entre 1988 e 2013 é que a sociedade, quero crer, está mais disposta a levar a sério o problema e buscar uma solução.

Oxalá, possamos um dia proclamar que temos não um evento, como diz o samba, mas uma realidade social “Que congraça gente todas as raças/ Numa mesma emoção”, nos permitindo gritar a plenos pulmões “Esta Kizomba é nossa constituição”!



(*) Américo Souza é historiador e professor da Universidade de Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB). Este texto foi publicado no jornal O Povo (CE), em 10 de fevereiro de 2013.