Por Luis Pellegrini
Todos os anos, no final de junho, o Festival do Boi-Bumbá
sacode a cidade amazonense de Parintins. Programado este ano para os dias 29 e
30 de junho e 1º de julho, o espetáculo transcende os limites de festa popular
para se constituir num grande rito coletivo de resgate da alma primitiva
brasileira que o boi, na verdade, representa.
Ninguém imagina o que o espera quando ainda está no interior
do jato que sobrevoa as águas do grande rio e se dirige à ilha fluvial de
Tupinambarana, onde fica a cidade ribeirinha de Parintins. Momentos depois,
quando o avião aterrissa e sua porta se abre, o ar quente e úmido, carregado de
odor de mata virgem, traz um abraço de boas-vindas. Aos lados da pista de
asfalto duas muralhas de um verde intenso não deixam margem a dúvidas: estamos
no coração da floresta, e atrás das árvores os mil olhinhos curiosos dos seres
da mata parecem nos espreitar. Sinto-me em casa.
A casa, para os que chegam, é flutuante. Somos instalados em
cabinas de confortáveis barcos transformados em hotéis, vindos de Manaus e
Belém, atracados às margens do Amazonas. Nem de longe os poucos hotéis da
cidade poderiam hospedar os milhares de visitantes que, nos dias do festival,
acorrem a Parintins, vindos de todo o Brasil e do mundo, transformando o pacato
vilarejo numa grande praça ruidosa e colorida.
Motivo para tanto agito? A paixão regional: o duelo entre os
bumbás Caprichoso e Garantido que, nesses dias se defrontam na arena do Centro
Cultural e Desportivo Amazonino Mendes, o popular Bumbódromo de Parintins.
Durante três noites consecutivas, mais de 50 mil espectadores se distribuem na
tribuna de honra, camarotes, cadeiras numeradas, arquibancada especial e
arquibancada do povo, sem arredar pé até alta madrugada.
Delírio puro. Tanto na plateia – rigorosamente dividida
entre os partidários do Boi Caprichoso, de cor azul e branco, e o Boi
Garantido, de cor vermelho e branco –, quanto sobre a arena onde ambos,
alternadamente, realizam sua festa-ritual. Tudo tem tamanho gigante: cada bumbá
é formado por cerca de três mil componentes, chamados brincantes.
Cada grupo desfila durante três horas, sempre ao som da
Marujada de Guerra (a bateria do Caprichoso) ou da Batucada (a do Garantido),
com cerca de 600 músicos cada. Sebastião Júnior é o atual puxador das toadas do
Boi Garantido, e David Assayag é o puxador do Caprichoso. Vale notar que,
diferente dos sambas das escolas, a base rítmica das toadas do boi-bumbá não é
africana, e sim indígena.
As “galeras”, como são conhecidas as torcidas organizadas
dos dois bois, ornamentam seus redutos no Bumbódromo com muita criatividade,
usando bandeirinhas, balões, fitas, painéis luminosos, lanternas e tudo que a
imaginação permitir. Ao entrar na arena cada boi-bumbá é recebido com
estrondosa salva de fogos de artifício, e o grito de guerra da plateia ecoa
diante do silêncio sepulcral da “galera” contrária. E, à medida que o desfile
evolui, com a entrada de milhares de personagens índios, brancos e negros, a
dançar e a cantar ao som da música hipnótica das toadas, em meio a cenografias
de tirar o fôlego, vive-se momentos de verdadeiro frenesi.
O enredo básico dos dois bumbás é sempre o mesmo,
interpretado em todas as suas variações possíveis e imagináveis. Ele veio do
Maranhão no início do século 20, com a migração nordestina para a Amazônia
durante o ciclo da borracha. A história relata a saga de um peão, o negro Pai
Francisco, que matou o boi favorito do seu patrão para atender o desejo de sua
mulher grávida, a Mãe Catirina, que queria comer a língua do boi. O patrão
descobre e manda prender Pai Francisco com a ajuda dos índios.
Depois de muito sofrimento, Pai Francisco é salvo pelo Padre
e pelo Pajé que juntos – um com a força da sua fé, o outro com o poder da sua
magia – conseguem a façanha de ressuscitar o boi. Do enredo fazem parte dezenas
de outros personagens, como Dona Maria e a Sinhazinha (a mulher e a filha do
fazendeiro), os negros Cazumbá e Mãe Guiomá (amigos de Francisco e Catirina), o
Feitor, o Diretor dos Índios, os Doutores Curador, Cachaça, Palma Nego e
Curabem, o Tuxaua (cacique), a Cunhã Poranga (moça bonita), a Rainha do
Folclore.
Na Amazônia o mito do boi foi enriquecido com lendas do
folclore e da mitologia indígena. Agora participam e interferem na história um
sem-número de criaturas fantásticas como a Boiúna (cobra-grande), o Boto
(golfinho mítico), o Boitatá (cobra de fogo), Anhangá (espectro do mundo
subterrâneo), Mapinguari (animal fabuloso, semelhante a um homem gigante, mas
com uma enorme boca na barriga), bem como divindades do panteão amazônico como
Guaracy (o Sol), Jaci (a Lua), Tupana (o deus do raio) ou a Iara (sereia de
água-doce).
Todos esses elementos interagem no rito popular do boi-bumbá
de Parintins, transformando por três noites a arena do Bumbódromo num imenso
teatro-laboratório alquímico onde se processa, em forma de espetáculo-ritual,
uma evolução da alma sincrética brasileira.
Como nasceu o Boi-Bumbá? No Brasil, ele apareceu na cultura
agrária do Nordeste colonial, onde existe até hoje com o nome genérico de
Bumba-meu-Boi, e é interpretado por alguns autores como a expressão de uma
busca de afirmação de identidade dos grupos que sobreviviam na sociedade de
então na condição de dominados (índios e negros).
Luiz da Câmara Cascudo, mestre do folclore brasileiro, diz
que seu criador é o negro que “desejava reviver as folganças que trouxera de
sua terra distante, para distender os músculos e afogar as mágoas do
cativeiro... Os indígenas logo simpatizaram com a brincadeira, foram
conquistados por ela e passaram a representá-la, incorporando-lhe também suas
características”.
O amazonense Simão Assayag desenvolve, por seu lado, uma
ideia interessante. Para ele, o Auto do Boi, nome primitivo do Bumba-meu-Boi,
fazia parte de uma estratégia dos missionários católicos europeus com vistas à
conversão dos negros e dos índios.
Diz Assayag: “Duas preocupações são evidentes no auto do
boi: a conversão e a ressurreição. Dois conceitos eminentemente trazidos para o
Brasil-Colônia pelos missionários jesuítas no bojo de sua catequese. A península
ibérica – Portugal e Espanha – havia repelido os mouros (de religião
muçulmana), povos oriundos do Oriente Médio e norte da África após vários
séculos de ocupação. Havia um temor generalizado a tudo que não fosse cristão,
e nesse raciocínio, se enquadravam ‘os politeístas negros africanos’, e ‘os
idólatras indígenas brasileiros’ – ambos pagãos. Tudo era válido para que
aceitassem o batismo, se convertessem, se ‘salvassem’ e abandonassem as
práticas não-cristãs”.
Nessa linha de raciocínio, com vistas à catequese, a cultura
branca cristã pôs em ato um artifício didático altamente eficiente: o teatro,
como forma de aprendizado associativo. Um teatro alegre, musical e dançante, e
convincente por se basear em histórias fáceis do próprio cotidiano daquela gente
simples. Foi transplantado para cá o teatro religioso europeu - o Teatro dos
Milagres, os Autos dos Mistérios e os Autos da Paixão, como eram chamados na
Europa medieval. Um teatro religioso que, na Europa, começou dentro das
catedrais, representado por monges e padres. E que depois ganhou as ruas com
pessoas do povo participando das encenações. Dramas sacros que aconteciam na
forma de festivais ou de procissões, como aquelas que até hoje se realizam nas
ruas de Sevilha, na Semana Santa, ou em muitas cidades do sul da Itália e do
interior da França e Portugal.
No Brasil colonial, esses teatros foram adaptados para as
línguas locais dos negros e dos índios, e pouco a pouco deram origem a
exuberantes tradições folclóricas análogas ao Bumba-meu-Boi, como a Congada
(bailado praticado principalmente em Minas Gerais e Goiás, cujo enredo é uma
verdadeira guerra santa entre os cristãos comandados por Carlos Magno, colocado
como o Rei Congo, e os mouros, liderados pelo gigante sarraceno Ferrabrás); o
Reisado (festa popular que assinala o ciclo do Natal e do Dia de Reis); o
Moçambique (bailado do centro, sudeste e sul brasileiro que, embora de nome
africano, tem origem europeia. O Moçambique é dançado em louvor a São Benedito,
e termina com a sua ascensão ao céu, num exemplo de santificação.
Como diz Assayag, “São Benedito, preto na cor e nome, era
italiano da Ilha da Sicília. Como ele, não poderia haver melhor exemplo para os
escravos. Franciscano, chamado por seus colegas de santo mouro, era humilde,
piedoso e prudente - a própria dedicação em pessoa. Analfabeto, filho de negros
escravos etíopes, era a prova viva de que os pagãos negros poderiam ser alçados
ao céu, desde que se convertessem ao catolicismo”.
De tal forma, a conversão ao catolicismo aparece em quase todos
os folguedos introduzidos na época e dançados essencialmente por negros, índios
e mamelucos. O enredo era sempre o mesmo: a luta do bem contra o mal. O bem era
representado pela nova ordem religiosa, e o mal, por tudo que não se
enquadrasse nesse conceito. A conquista final era o batismo do nativo, que
acabava (ao menos à vista dos missionários) por aceitar a conversão.
Certo, é muito possível que a história do boi tenha servido
aos propósitos de catequese dos jesuítas coloniais. Mas, imerso na vibração
quente do boi-bumbá de Parintins, capaz de arrastar toda aquela massa de gente
a um fenômeno catártico parecido, creio eu, aos grandes espetáculos do teatro
grego antigo, eu me perguntava se seria só isso. Essa paixão pelo boi não
estaria, talvez, relacionada a algo ainda mais profundo, diretamente emanada do
inconsciente individual e coletivo daquelas pessoas?
Na madrugada da segunda noite do festival de Parintins, após
a apresentação do Boi Garantido, saí do Bumbódromo literalmente tomado por uma
carga de energia vital que, devo confessar, há muito tempo não me assaltava. A
emoção do espetáculo foi num crescendo. Começou com a entrada dos
percussionistas da Batucada e o puxador de toada conclamando a torcida do boi
vermelho para a festa: Quero ver meu povo / balançando no calor / Quero ver meu
boi / dançando ao som desse tambor. A multidão atende ao chamado e canta em
uníssono. E logo, lá do fundo da arena, filas e mais filas de índios com seus
grandes cocares de plumas entram com um pé de dança que só quem tem sangue ou
alma de índio pode dançar.
A emoção cresce, o coração aperta e, de repente, aparece o
boi Garantido, todo branco, surgido do fundo de uma caverna escura montada no
centro da arena. E desta vez, na hora de o boi morrer, quem morre em seu lugar
é uma inteira nação indígena, a dos incas, na representação de um tremendo
combate com as tropas conquistadoras espanholas encenado na cidade andina de
Machu Pichu. Morre o boi-inca, mas não importa. Ele há de logo renascer. Sabem
onde? Bem no meio da torcida vermelho e branca que vibra e grita sobre a
arquibancada popular.
Nem é preciso qualquer explicação para se entender a
simbologia profunda dessa ressurreição: o boi, arquétipo-símbolo da alma
primitiva desse povo mestiço, pode morrer de mil formas, mas também de mil
formas renascerá, pois a ele está ligado o princípio da imortalidade. Não à
toa, nos momentos de maior vibração, a galera toda, inclusive os vips dos
camarotes, põe-se a gritar, sem conseguir conter um berro de entusiasmo que vem
lá do fundo da garganta.
Apesar do cansaço, não consegui dormir logo aquela noite. O
caleidoscópio de imagens do boi-bumbá insistia em dançar na minha memória
visual, e os refrões hipnóticos das toadas persistiam em meus ouvidos. No
barco-hotel, em vez de ir para a cabina, fui para o tombadilho onde, à luz do
dia, toma-se banho de sol. Joguei-me sobre uma espreguiçadeira, fitei o céu
cortado pela Via Láctea, e depois olhei o Amazonas a rebrilhar, correndo lento
qual outra líquida Via Láctea a cortar a floresta. Essas coisas têm uma força
imemorial capaz de mexer com a alma da gente. Relaxei. E então, lá do meu
fundo, um boi começou a surgir.
O boi dos bois, que se esconde atrás dos folguedos do boi
dos bumbás, do boi dos negros, dos índios, dos jesuítas da catequese. O boi
primordial, pintado nas cavernas pré-históricas de Altamira. Aquele que
apareceu depois no Egito com o nome de Ápis, símbolo da fecundidade, e que
trazia entre os chifres ora o Sol, ora a Lua, e cujo funeral era celebrado em
Mênfis com grande pompa e alegria por que, logo depois de sua morte, Ápis
renasce dentro de um outro invólucro mortal e é reconhecido, no meio das
manadas, pela mancha negra na testa a ressaltar de seu pêlo branco, conforme
narram os textos sagrados egípcios.
Que apareceu a seguir na Grécia como animal consagrado a
Possêidon, deus dos oceanos e das tempestades, e a Dionísio, deus da virilidade
fecunda. E que antes surgira na Índia como o feroz Rudra, que muge sem parar e
cujo sêmen abundante fertiliza a terra. E que depois, sempre na Índia, apareceu
como emblema de Indra, deus do Ardor Cósmico - o calor que anima todo ser vivo
-, e ainda como montaria de Shiva, o deus criador. Ele representa a energia
sexual do deus; mas montar o boi, como faz Shiva, é dominar e transmutar essa
energia em força espiritual.
Índios de verdade saem da floresta e vêm a Parintins nesses
dias de festa. São tupinambás, maués, sapupés, uai-uais lá da fronteira com as
Guianas, e trazem seus artesanatos de contas, plumas e palhas para vender aos
turistas. Salvo pelo olhar tímido e o comportamento reservado, sua fisionomia
pouco ou nada difere da maioria dos moradores de Parintins. Aproximei-me de um
uai-uai com intenção de negociar o preço de esplêndidas sacolas de palha que
ele oferecia. Mas desisti de qualquer contenda quando ele, mostrando todos os
dedos da mão direita, disse: “cinco Reais”. Sacolas como aquelas, até menos
bonitas, são vendidas nas lojas de São Paulo por um preço no mínimo vinte vezes
superior...
Também esses índios, de um modo ou de outro, chegam a
Parintins atraídos pelo boi. O boi que atravessou todas as eras da história até
chegar à Amazônia. Até tornar-se a estrela de Parintins. Até encarnar-se no
coração das galeras e dos brincantes, mugindo, cantando, dançando e gritando
durante três noites seguidas, a demonstrar que é mais forte que qualquer
catequese e que só se submete aos arreios da alegria. Esse boi ressuscitado de
Parintins, livre e vital. Boi, pela jovialidade e mansidão. Touro, sem dúvida,
pela força que carrega. Touro-boi-bumbá da Amazônia e do Brasil.