Por José Telles, de Recife
José Gomes Filho, nome de batismo de Jackson do Pandeiro,
paraibano de Alagoa Grande, completaria 100 anos no dia 31 de agosto de 2019.
Embora quase toda sua discografia original esteja fora de catálogo, ele
continua fazendo amigos e influenciados pessoas, 37 anos depois de sua morte,
em 10 de julho de 1982, em Brasília.
Pelo Brasil afora se celebra o centenário. Jackson foi o
homenageado da edição deste ano do Festival de Inverno de Garanhuns. Sua cidade
natal (a 118 km de João Pessoa) promove uma grande festa, com shows de artistas
assumidamente influenciados por ele, caso do pernambucano Lenine, enquanto o
governo da Paraíba declarou 2019 como Ano Cultural Jackson do Pandeiro.
Pelo país, artistas seguidores e admiradores de Jackson do
Pandeiro montaram shows com canções pinçadas de sua obra. Apesar do descaso das
gravadoras com a memória da música brasileira, o paraibano é mais forte do que
elas. O que ele cantou permanece presente no repertório de nomes como Zé
Ramalho, João Bosco, Guinga, Alceu Valença, Geraldo Azevedo, Silvério Pessoa,
Chico César e grande elenco.
O Rei do Ritmo, epíteto que geralmente se aplica ao nome
Jackson do Pandeiro, não faz jus ao talento do franzino cantor, que chegou ao
Recife em 1948, com a fundação da Rádio Jornal do Commercio, onde foi
contratado como ritmista (o que hoje chama-se de percussionista), na Orquestra
Paraguary, uma das duas que a emissora mantinha. Tocando ao lado de estrelas
feito Sivuca e Luperce Miranda, Jackson era muito grande para se limitar apenas
a tocar pandeiro.
Aos poucos foi se destacando como cantor nos programas de
auditório. Mas logo ficou claro que não se tratava de uma voz a mais no cenário
artístico pernambucano. Com Almira Castilho ele formou uma dupla que incendiava
os palcos. Ela, bem mais alta do que ele, curvilínea, reforçava a presença em
cena com a particular coreografia que criaram, na qual entravam coco, rumba,
frevo, entre outros ritmos.
Mas teve dificuldade em chegar ao microfone. O
superintendente da Rádio Jornal do Commercio, o rigoroso Theóphilo de Barros
(pai de Théo de Barros, parceiro de Geraldo Vandré em “Disparada”), emitia
sempre um sonoro “não” quando Jackson pedia para cantar nos programas da
emissora. O paraibano, aproveitando uma viagem de Téofilo a São Paulo,
conseguiu convencer que o deixassem cantar. Segundo Jackson, o superintendente
não lhe dava oportunidade por causa de sua aparência. “Ele fazia questão de
manter na Rádio Jornal do Commercio gente que tivesse pinta de galã”, contou
Jackson à revista Mundo Ilustrado.
Jackson do Pandeiro submetia-se às rígidas normas da
empresa, onde qualquer deslize no trajar, nem que fosse um mero par de meias
diferente do padrão, era motivo para uma multa ou suspensão. Por isso, em 1953,
enquanto seu nome estava em todas as paradas do país, na programação das
principais emissoras de rádio cariocas, ele continuava morando oficialmente no
Recife. Jackson e Almira só conseguiram viajar ao Rio no ano seguinte, quando
foram liberados para apresentações no “Sul”. Na Rádio Nacional, no Rio, Record,
Bandeirantes e TV Tupi, em São Paulo.
Não é exagero comparar o surgimento de Jackson do Pandeiro
ao de João Gilberto, cinco anos mais tarde. Ambos estenderam os limites do
canto popular. João transgrediu a regra do vozeirão, herdado do bel canto
italiano. Jackson, o da voz bonita pelos padrões radiofônicos. Tanto um quanto
o outro faziam proezas vocais com uma simplicidade que levou a se achar que
João fosse afinado, mas sem voz, ou que Jackson fosse somente embolador ou
coquista. Na verdade, com Orlando Silva, os dois formam a trinca de vozes-guias
da música popular brasileira. Os três criaram um caminho que deu em várias
estradas vicinais.
O talento de Jackson do Pandeiro era tão superlativo que ele
não precisou seguir os trâmites que regeram o mercado do disco até os anos 90.
No início dos anos 50, artistas submetiam-se a programas de calouros, daí a uma
gravadora, que promovia o trabalho, levando seu contratado às emissoras de
rádio, TV, sessões de autógrafos e promoções, que poderiam ou não surtirem
efeito.
Muitos tiveram as carreiras abortadas ou demoraram a chegar
às paradas. Com Jackson do Pandeiro foi um rastilho de pólvora que provocou um
fogaréu nacional. Sem ter sequer disco gravado, seu nome começou a ser
comentado no Sudeste, principalmente no Rio de Janeiro, que abrigava o grosso
da indústria do entretenimento no país.
Em dezembro de 1953, em plena temporada das marchinhas,
quando radialistas, compositores, intérpretes e gravadoras digladiavam-se para
emplacar sucesso, na revista Mundo Ilustrado lia-se uma matéria sobre os discos
que estavam despontando como vitoriosos. Tratava-se da época em que mais se
faturava na indústria musical. Gravadoras compravam horários nas emissoras de
rádio para veicular seus suplementos carnavalescos; a chamada música de meio de
ano tinha que esperar para depois da folia. Mas haviam as exceções, como
comenta Borelli Filho, que assina uma página inteira sobre o cenário radiofônico
na citada publicação:
“Para desespero dos cantores e autores interessados, os
maiores sucessos continuam os mesmos há algumas semanas. E com o detalhe
curioso de que está despontando violentamente uma gravação regional tipicamente
pernambucana, em nada de acordo com a época momesca, gravada no Recife pelo
Jackson do Pandeiro (prata nova da casa), e com todas as características para
liderar as preferências do público por muito tempo”.
Amigo do radialista e compositor pernambucano (de
Macaparana) Rosil Cavalcanti, desde quando morava em Campina Grande onde
começou a vida artística como pandeirista e baterista, Jackson do Pandeiro não
precisou recorrer a repertório alheio ao dar os primeiros passos como
intérprete na Jornal do Commercio. Rosil lhe deu a impagável “Sebastiana” e o
recifense Edgar Ferreira forneceu-lhe “Forró em Limoeiro”, o outro lado do que
seria o 78 rotações que inauguraria uma extensa discografia.
Até 1955, Jackson, preso por contrato à emissora recifense,
gravou no auditório da rádio, no Recife. O maestro caruaruense Clóvis Pereira,
que dirigia a Orquestra Paraguary, foi testemunha dessas gravações. Aos 87
anos, o maestro mantém a memória afiada, ao relembrar de Jackson do Pandeiro:
“As primeiras que ele gravou, Sebastiana e Forró em Limoeiro, eram mais
populares, mas não fui eu que fiz os arranjos. Foram gravadas com o regional de
Luperce Miranda: Gaúcho na sanfona, Romualdo Miranda no violão, Alcides do
Cavaquinho. Tinha outro violonista que não me lembro. De uma hora pra outra,
faltou um cantor e pediram pra ele cantar. Agradou. Ele já estava com 34 anos,
eu era rapazola, estava com 20 anos, entrando na rádio”, lembra Clóvis Pereira.
O maestro conta que, quando foi gravar “Micróbio do Frevo”,
Jackson queria fazê-lo com orquestra. “Eu escrevi o arranjo e acompanhamos ele
com a Paraguary. Fiz também o arranjo para o samba Vou Gargalhar. Eu era muito
amigo de Jackson, que era uma pessoa muito simpática, engraçada. Naquele tempo
havia um programa na Jornal do Commercio chamado A Felicidade Bate à sua Porta.
A gente ia num caminhão cheio de presentes que parava numa praça ou num largo
onde pudesse juntar gente. Depois que o programa terminava, enquanto o pessoal
arrumava o caminhão, Jackson me chamava pra tomar uma cachacinha com ele. Me
ensinou a beber cachaça”.
O sanfoneiro Gaúcho, ao qual ele se refere, era realmente do
Rio Grande do Sul, chamava-se Auro Pedro Thomas. Sargento da Aeronáutica, foi
transferido para o Recife e logo chefiava o regional da Rádio Tamandaré (do
grupo Diários Associados). Com a saída de Luperce Miranda da Jornal do
Commercio, ele foi dirigir o regional daquela emissora. Foi ele, Gaúcho, pois,
que tocou em quase todos os discos gravados por Jackson do Pandeiro na Jornal
do Commercio.
Valiam-se do precário equipamento com que se registravam
programas pré-gravados, em acetatos feitos com cera de carnaúba, bastante
frágeis. Tudo em um único take. Os acetatos não eram reutilizáveis, e custavam
caro. Não se podia errar. O maestro conta que as gravações eram realizadas à
noite, depois que o carrilhão do prédio do Diário de Pernambuco soava às 20h. A
razão era porque a Radio Jornal do Commercio, na Rua do Imperador, ficava
vizinha ao DP, e o som do relógio seria captado na gravação.
“Jackson ensaiava com os músicos três, quatro vezes, quando
a gente achava que estava nos trinques, então, gravava. Usavam um equipamento
que não tinha dois canais, nem playback. Era de primeira”, diz. “Com aquela
batida dele, Jackson conseguia fazer tudo. Tocava pandeiro com a mão esquerda,
com a direita. Cantava com o pandeiro errado, atravessando, e não se perdia”,
testemunha o maestro.
Em fevereiro de 1954, a imprensa do país inteiro, sobretudo
do Sudeste, abordava a agressão da qual Jackson do Pandeiro e Almira Castilho
foram vítimas numa festa na casa de Eládio de Barros Carvalho, o mesmo que hoje
dá nome ao estádio do Clube Náutico Capibaribe. Jackson e Almira eram os
artistas mais badalados de Pernambuco, e foram convidados para animar o evento.
O ciumento Jackson não se agradou quando Guerra Holanda, jornalista da Folha da
Manhã, passou a proferir gracinhas e tentar apalpar sua mulher. Ela tentava se
desviar do afoito, mas era quase impossível. Foi quando o tempo fechou.
Cearense, um jogador do Náutico, entrou na briga, ele e vários outros. Jackson
e Almira escaparam de serem massacrados por um providencial tiro de pistola,
para o alto, desferido por alguém em momento oportuno.
Os dois correram, pularam o muro para escapar do
linchamento. “Quando olhei pra Jackson vi que um dos olhos estava fora do globo
ocular”, contou Almira, muitos anos depois, quando voltou ao Recife no final
dos anos 80.
Na cidade, a imprensa local foi relativamente discreta ao
noticiar esta batalha dos Aflitos, que levou o cantor paraibano ao hospital.
Era impossível não publicá-la, afinal, Jackson do Pandeiro, embora ainda
contratado da Rádio Jornal, era um nome de fama nacional, tocava no país
inteiro. Por outro lado, a confusão acontecera na casa de um dos mais ilustres
nomes da alta sociedade pernambucana.
O Jornal do Commercio maneirou na notícia, que o Jornal
Pequeno deu embutida na cobertura do cotidiano da Câmara Municipal: “Um
vereador trouxe a consideração do plenário o assunto do casal Jackson do
Pandeiro e Almira Castilho esbordoado na madrugada desta segunda-feira na
residência do senhor Eládio Barros de Carvalho, ex-presidente do Náutico,
quando se comemorava carnavalescamente a vitória das cores alvirrubras quando
da conquista do tricentenário da Restauração Pernambucana. Como se não
estivéssemos na época das máscaras e dos lança-perfumes”.
O Diário de Pernambuco, mesmo sem abrir um grande espaço,
foi quem melhor detalhou o quiproquó, até porque o problema era do concorrente.
A manchete: “Agredido a Socos e Cadeiradas Conhecido Casal de Radialistas.
Quando Jackson do Pandeiro começou a discutir com o rapaz, aproximou-se outro e
o chamou para a briga. Quando o cantor foi tomar satisfações, os amigos caíram
de pau em cima dele e de Almira. Só a muito custo, Jackson e sua esposa
conseguiram deixar o local e, bastante feridos, foram submeter-se aos curativos
de urgência no Hospital de Fernandes Vieira, onde relataram o ocorrido ao
investigador Severino Vicente da Silva que, por sua vez, a transmitiu ao
delegado Paulo do Couto Malta, que tomou providência a respeito do inquérito
regular. As contusões e escoriações sofridas por Jackson do Pandeiro
estenderam-se mais ao rosto. O conhecido artista do rádio está na iminência de
ficar cego, achando-se entregue aos cuidados do oculista Francisco de Assis”.
No Rio, em entrevista à Radiolândia, Jackson do Pandeiro
contou sua versão do incidente: “Não tive o menor apoio, nem da rádio nem do
jornal. Todos diziam que eu é que tinha provocado os acontecimentos”. Ele só
livrou a cara do dono do presidente do grupo F. Pessoa de Queiroz, que se
encontrava em São Paulo, para uma cirurgia de vesícula: “Se ele estivesse lá
tenho certeza de que eu não seria tratado como fui”, disse Jackson.
Ele e Almira pediram a rescisão de contrato, assinado em
1953, válido até 1957, o que lhes foi negado. O casal pagou para ir embora. Com
prejuízo, no qual estavam embutidos 54 mil cruzeiros ganhos com a renda de
shows e de venda de discos.
Jackson do Pandeiro ainda não tinha colocado o pé no chão,
nem parecia entender a fama que lhe chegara tão súbita. 54 mil cruzeiros era
muito dinheiro para se entregar para alguém guardar, tendo como garantia apenas
um recibo. Alcides Lopes, o diretor da rádio sabia disso, tanto que depositou a
quantia num banco, que, por azar, faliu na semana seguinte. Jackson chegou a
chorar durante a entrevista, e jurou não mais pôr os pés na capital
pernambucana. O repórter da revista diz que ele voltará quando a saudade
apertar. Ao que Jackson rebate: “Que saudade? Saudade eu tenho da minha terra,
a Paraíba. Almira, sim, que é de Pernambuco. Por ela, pode ser que a gente
volte. Mas por mim, nunca”.
A jura de Jackson do Pandeiro só durou um ano. Em 8 de
fevereiro de 1956, ele e Almira eram anunciados como atrações principais do Carnaval
no Varandão, no Palácio do Rádio, onde funcionava a PRA-8, Rádio Clube de Pernambuco,
a maior concorrente da Rádio Jornal do Commercio. Era uma revista carnavalesca,
da qual participaram vários artistas – de fora, e do elenco da emissora –
bailarinos, e a orquestra do maestro Nelson Ferreira. O casal faria um show de
despedida na noite seguinte, já divulgado como um dos maiores nomes do
broadcasting nacional com sua “partenaire” Almira Castilho.
A violência que sofreu com a companheira indiretamente
contribuiu para consolidar a carreira de Jackson do Pandeiro no Sudeste. Se
continuasse na Rádio Jornal do Commercio talvez não conseguisse vender tantos
discos. O sucesso comercial exigia que viajasse, os convites vinham de todas as
partes do Brasil. Os diretores da rádio, a princípio aprovavam as idas dos seus
contratados ao Sudeste porque faziam publicidade gratuita da emissora, mas
começavam a se incomodar com as ausências do casal. Queriam usufruir de sua
fama, porque sabiam que Jackson não demoraria a ir embora. Prevenidos, em 1953,
renovaram-lhe o contrato por mais três anos.
A intenção de ir embora não se deveu apenas à briga na casa
de Eládio de Barros Carvalho, e à má vontade da emissora em defendê-lo. Jackson
do Pandeiro tinha crescido muito para continuar no Recife, sua saída era
questão de tempo. Vitório Lattari, da gravadora Copacabana, depois de dois 78
rotações, quatro sucessos, exigia a presença do cantor no Rio, onde se tornara
uma espécie de lenda. Nunca tal coisa havia acontecido antes. Um artista
estourado no país inteiro, sem que o público o conhecesse. Os 78 rotações não
traziam fotos, apenas o nome da gravadora.
Sua chegada ao Rio, de navio, com o compositor Genival
Macedo (Almira viajaria dias depois, de avião), em abril de 1954, foi
badaladíssima, conforme atesta o jornalista Nestor de Holanda, em sua coluna na
revista Manchete: “Jackson do Pandeiro, cantor regional pernambucano, veio ao
Rio e fechou o comércio”. Não se imagine que Nestor sofria de um ataque de
bairrismo. Nestor de Holanda Cavalcanti, como o nome dá a pista, era pernambucano
(de Vitória de Santo Antão).
O carioquíssimo Sérgio Porto (que assinava crônicas como
Stanislaw Ponte Preta), sobrinho do crítico Lúcio Rangel, especialista em jazz
e em samba, numa crônica ficcional, também na Manchete, reproduziu um debate
entre um tradicionalista e um modernista. Este segundo personagem, rebatendo um
elogio a Noel Rosa cita sambistas do momento: “Antonio Maria, Ary Barroso,
Dorival Caymmi e Jackson do Pandeiro”, que havia gravado até aí apenas um
samba, Vou Gargalhar, de Edgar Ferreira.
“Com este disco eu estourei e resolvi vir ao Rio dar uma
olhada. A Almira, que nesta época fazia dupla comigo, fazendo a voz feminina em
Sebastiana, resolveu vir também. Então viemos como amigos. Aqui, ela foi meu
braço direito, espécie de secretária. Um dia fomos ao cinema e no cinema
começou a fuzarca. Quando voltamos pro Recife, encontramos uma onda contra ela.
O caso é que ela tinha um namoro com o chefe do rádio-teatro (Geraldo Lopes), e
lá já estavam sabendo que a gente estava vivendo como casado. Resolvemos casar
mesmo e vir de vez para o Rio. Foi bom porque no Recife não tinha mais campo
pra mim. Meus discos vendiam às tulhas. Fizemos muito sucesso”, comentou
Jackson, em 1972, quando voltava às páginas dos jornais do Sudeste.
Foi nesta volta ao Recife que Jackson do Pandeiro ganhou do
compositor Rui de Moraes e Silva mais um sucesso, “Rosa”, lado A do 78 rotações
com “Falso Toureiro” (José Gomes/Heleno Clemente), primeiro disco que gravou no
Rio, ainda pela Copacabana. O bolachão subiu rapidamente nas paradas. O
paraibano já não era unicamente um fenômeno, e, sim, uma estrela de primeira
grandeza na constelação do rádio brasileiro.
Assim como Luiz Gonzaga, também Jackson do Pandeiro foi um
garimpeiro de canções, com faro aguçado para o sucesso. O extremamente amplo
espectro dos temas que cantou deve-se à quantidade de compositores que lhe
forneciam músicas. Tantos que a Universal Music teve dificuldades para relançar
discos originais na caixa “O Rei do Ritmo” (2016), por não conseguir o contato
de parentes de compositores falecidos que assinassem a liberação das músicas.
“Nos deparamos com autores desaparecidos, alguns sem herdeiros, editoras
antigas que foram extintas, entre outros percalços” (do texto do encarte da
caixa da Universal, assinado por Rodrigo Faour).
Na biografia “Jackson do Pandeiro – O Rei do Ritmo”, de
Fernando Moura e Antônio Vicente, contabilizam-se duas centenas deles. Muitos
ficaram conhecidos apenas pelo apelido. É o caso do pernambucano Maruim,
apelido de Ricardo Lima Tavares, de quem se sabe muito pouco, mesmo que ele
tenha sido gravado por algumas das principais vozes do forró como Jackson do
Pandeiro, Luiz Gonzaga, Marinês e Genival Lacerda. Entre outras, ele compôs,
para Jackson do Pandeiro, “O Scratch de Ouro”, que alude à conquista da Copa do
Mundo de 1962 pela seleção brasileira, e “Imagem do Cão”, de letra inimaginável
nos dias de hoje, mas que na verdade é a clássica contenda de um artista com o
demônio (“Cara de macaco, dente de leão / o nego era mesmo a imagem do cão / quando
ele pisava sacudia o chão / e tava na cara que o nego era o cão”).
Outro criador de canções para o paraibano foi Buco do
Pandeiro, autor de “Cantiga do Sapo”, e que também forneceu composições para
Trio Nordestino, ou Walter Damasceno, primeiro imitador de Jackson do Pandeiro.
Segundo Genival Lacerda, Buco do Pandeiro e Pernambuco do Pandeiro são a mesma
pessoa. Mas ficam as dúvidas. Pernambuco tem discos gravados, Buco nenhum. Não
há composições de Pernambuco do Pandeiro gravadas por Jackson.
Poucos não cediam parceria a Jackson do Pandeiro. Era praxe
da época. O cantor procurava faturar em cima do seu prestígio, que garantiria
também bom faturamento para o compositor que, não raro, vendia a mesma música a
mais de um intérprete. Foi assim que Luiz Gonzaga e Ari Monteiro se tornaram
parceiros em “Meu Pandeiro”. Quando descobriram que tinham comprado a mesma
composição, tiraram o autor/vendedor da parada e assinaram o samba que foi
lançado por Cyro Monteiro.
Assim como Luiz Gonzaga, as comparações são inevitáveis.
Jackson do Pandeiro burilava a composição que recebia, adequando-a a seu
estilo, tornando-se quase co-autor. Os autores da citada biografia do cantor
aventam que ele poderia ter assinado a maioria das músicas que gravou: “Ele
sempre interferia com um cuidado de autor. O problema é que não fazia muita
questão disso. Sua praia era outra”.
Mais adiante, o irmão Cícero afirma que Jackson não poucas
vezes deixou que o parceiro registrasse a composição sozinho. “Os compositores
que entregavam as músicas prontas, com melodia, letra e tudo, pra Jackson
chamavam-se Nilvaldo Lima, Severino Ramos, João Silva, Rosil Cavalcanti e
Antonio Barros. As músicas de Edgar Ferreira todas têm parte de Jackson, mas o
nome dele não saía. Em Forró em Limoeiro as dicas todas são de Jackson. A
música chegou um bagaço, aí meu irmão ajeitou tudinho. Não tinha ritmo”.
Certamente Jackson incrementava o que era trazido pelos
autores, porém são nítidas as evidências de que entrava na maioria das
parcerias pelo alinhave que empreendia nas canções. Isto fica patente pela
pequeníssima quantidade de composições que assina sozinho. No livro “A Música
de Jackson do Pandeiro”, de Inaldo Soares, encontram-se apenas seis músicas,
entre 161, que ostentam sua assinatura, quer dizer, ele assinando como Jackson
do Pandeiro.
Muitas vezes o compositor ia até ele. Aconteceu assim, por
exemplo, com Juarez Santiago, pernambucano de São João, mas que viveu até o
final da vida em Caruaru. Em 1970, Santiago, que já tinha sido gravado por
Jacinto Silva e o Coroné Ludugero, foi aconselhado a ir para Rio, tentar a
sorte. Levava pouco dinheiro no bolso, e muita música inédita na cabeça. Tinha
um destino certo na cidade, a Praça Tiradentes, onde, nos bares das cercanias,
artistas, músicos e autores se encontravam para bater papo, tomar umas e fazer
negócio. Jackson do Pandeiro costumava bater ponto na praça: “Levei o dinheiro
certinho, para o hotel, comida e a viagem de volta. Cheguei num dia, no outro
fui no ponto dos artistas, na Praça Tiradentes. Um cara lá me disse que Jackson
não atendia ninguém ali. Vamos ver se ele não atende”, contou o compositor, em
entrevista ao JC, em Caruaru, no Alto do Moura, em 2001 (ele faleceu em 2011).
Jackson o atendeu bem, mas não quis saber de ouvir música.
Já estava com o repertório do próximo LP selecionado: “Eu me apresentei e falei
que tinha umas músicas para mostrar. Aí ele colocou a mão no meu ombro e disse:
‘Ô corno pequeno, tu é doido mesmo, vamos até ali, almoçar e você toma uma’, e
me levou a um restaurante”. Antes de se despedir ele deu um cartão a Juarez e
pediu que dentro de três dias ele fosse em sua casa.
Juarez Santiago foi com o cantor Azulão, que tinha acabado
de chegar ao Rio. Jackson recebeu os dois, já foi dizendo que ouviria as
músicas mas que, mesmo gostando, só gravaria no ano seguinte. A primeira que
mostrou foi “Morena Bela”. Depois de ouvir, Jackson olhou para o sanfoneiro
Severo e perguntou o que ele achava”. Severo disse que no repertório do disco
novo não tinha nenhuma música melhor do que aquela. Jackson pediu para Juarez
cantar outra, e aí ele, entusiasmado, cantou: “Madalena meu amor, não faça
assim / Ô Madalena meu amor, volte pra mim”. Jackson interrompeu novamente. “Ô
corno pequeno, pelo amor de Deus, você quer me matar?”. Resumindo. Jackson do
Pandeiro mexeu no repertório já pronto e incluiu as duas composições de Juarez
Santiago, que seria gravado por Luiz Gonzaga, Genival Lacerda e o Trio
Nordestino, entre muitos outros. “Morena Bela” (parceria com Onildo Almeida)
abre o LP O Dono do Forró, de 1971.
Juarez contou que quando Jackson foi gravá-lo pela terceira
vez, na música “Aproveita Mais Sua Vida”, pediu-lhe a parceria: “Corno pequeno,
bota eu aí nessa. Tu já botasse muita gente na tua música, agora é a minha
vez”. O compositor, que estava ansioso para gravar mais uma com Jackson,
deu-lhe a co-autoria.
Jackson e Almira deixaram Copacabana em 1958, ano em que a
música brasileira sofreu mudanças radicais. João Gilberto lançou, pela Odeon, “Chega
de Saudade”, de Tom e Vinicius, com a interpretação causando ainda mais impacto
do que quando Jackson do Pandeiro lançou “Sebastiana”, cinco anos antes. Na
mesma época, pela mesma gravadora, Cely Campello estrearia em disco com o irmão
Tony. Até então o rock and roll era tratado como mais um modismo
circunstancial, e a adolescente, cândida e suave, de Taubaté, consolidou o
gênero no Brasil. Ambos, João e Celly eram o novo no mercado da música. A
trilha que abriram foi alargada por compositores e intérpretes. Com Juscelino o
país entrava na modernidade, e nela não cabiam sambas-canções doloridos, ou
música calcada em regionalismos. Ainda na primeira metade da década de 60,
surgiriam a sigla MPB e o rock and roll se abrasileiraria com o rótulo de
iê-iê-iê.
O 78 rotações continuava forte no Brasil, o compacto ainda
era novidade, e LP ainda fora do alcance da maioria dos consumidores de discos
do país. Jackson lançaria oito 78 rpm pela Columbia. O sucesso continuava, mas
dentro de um padrão mais modesto, longe da fase de Jackson do Pandeiro na
Copacabana, quando todos seus discos foram diretos para o topo das paradas. O
cantor passaria um período curto na Columbia, pouco menos de dois anos, durante
os quais a música mais marcante que gravou foi a consagrada “Chiclete com
Banana”. Em 1967, ano em que a Jovem Guarda chegou ao ápice, o LP de estúdio de
Jackson tem o emblemático título de “A Braza do Norte” (com “z” mesmo), uma
óbvia referência ao “é uma brasa, mora”, bordão de Roberto Carlos disseminado
no programa na TV Record.
Pela primeira vez desde que começou a gravar, Jackson do
Pandeiro faz um hiato na carreira fonográfica. Só gravaria disco de estúdio
novamente em 1970, “Aqui Tô Eu”, o apropriado nome do LP. Continuaria gravando
um LP por ano, com uma parada entre 1978 e 1981, quando lançou o disco que
fechou sua discografia “Isso É Que É Forró”.
Sua carreira foi tão inusitada quanto seu surgimento no
cenário musical. Ele começou como um nome nacional, mas por volta de 1968
tornou-se um artista regional, com espaço nos forrós do Rio e São Paulo.
Mudou-se para a Zona a Norte carioca, onde viveu até o final da vida. Neste
mesmo ano sofreu um acidente enquanto dirigia sua Rural Ford, que o deixou com
os dois braços quebrados, e com sequelas. Passaria a ter dificuldades com o
pandeiro. Mas o talento no instrumento era tanto, que foi com ele que enfrentou
as vacas magras, tornando-se um dos músicos mais requisitados para gravações em
estúdio.
Vinte anos depois do seu surgimento espetacular, Jackson do
Pandeiro voltou à imprensa impulsionado pela gravação de Chiclete com Banana
por Gilberto Gil, no álbum Expresso 2222. A música voltou a tocar no rádio e
Jackson voltou a ser procurado pelos jornalistas e produtores de shows: “Tem
muita gente por aí que pensa que eu morri. Outro dia fui fazer um show em
Minas, teve um rapaz que perguntou: Ué Jackson você ainda tá aí? Eu disse, sei
disso não. Eu tô aí, gravo todo ano. Faço LP, faço Carnaval, faço São João.
Agora, quede que tocam os discos? Tocam nada. Então não tem condição de eu
aparecer. Passei 12 anos que nem lhe conto. 12 anos da moléstia. Só não fui
passar o chapéu no Tabuleiro da Baiana porque eu tenho vergonha na cara”.
“Voltou também à Zona Sul carioca, apresentando-se no
projeto Noitada de Samba, no prestigiado Teatro Opinião”, noticiava o Globo no
início de 1973. Jackson já havia sido gravado por Gal Costa (Sebastiana, no LP
de 1969), mas sem atrair atenção para o cantor.
“Às vezes até me esqueço como cantar porque não tem lugar
para trabalhar, né? É difícil até viajar para o interior, não tem contrato para
ninguém. Tudo isso por causa da invasão da música estrangeira. Meu conjunto é
formado por quatro paraibanos e uma baiana, Neusa, minha mulher. Todo mundo
lutando em cima disso, só cantando Brasil mesmo. A gente passa fome, passa
necessidade, ninguém muda. Me chamaram para gravar cha-cha-cha. Eu disse não.
Canto é baião, samba, frevo, coco, e ai” (entrevista em 22 de dezembro de 1972).
Com a gravação por Gilberto Gil de “Cantiga do Samba” (no LP
Temporada de Verão, de 1974) e “Chiclete com Banana”, em 1972, Jackson voltou à
mídia e foi descoberto por uma geração nascida nos anos 50. Tornou-se cult,
cantando tanto para os imigrantes nordestinos que vieram em busca de melhores
dias nas duas maiores cidades do país, quanto para universitários e
intelectuais, em redutos como o citado Teatro Opinião. Quando o interesse
esmorecia, chegaram Alceu Valença e Geraldo Azevedo, para defender com ele “Papagaio
do Futuro”, na fase nacional do Festival Internacional da Canção. Alceu faria o
projeto Pixinguinha com Jackson (o show, na íntegra, circula na internet, com
qualidade sonora muito boa).
O cantor trabalhou até o fim da vida. Em julho de 1982, fez
shows em Santa Cruz do Capibaribe (onde se sentiu mal, um princípio de
infarto), Caruaru, e encerrou a carreira com uma apresentação em Brasília.
Sofria de diabetes, diagnosticada em meados dos anos 60. Morreria em consequência
da doença crônica e mal-cuidada. Morte que teve pouco espaço na imprensa, e nenhuma
comoção popular.
Passou mal quando se anunciava o embarque do seu vôo, de
Brasília para o Rio. Foi internado no dia 4 de julho, um domingo, na UTI da
Casa de Saúde Santa Lúcia. Na quarta-feira, o Correio Brasilense noticiava o
internamento. O médico Nery João atribuiu o internamento a “descompensação da
glicose”. Com o título curioso de J-K Sou Brasileiro JK – Sou do Pandeiro, em
10 de julho, o mesmo jornal alertava para o estado grave do cantor, que
morreria naquele dia.
A próxima matéria sobre Jackson noticiava seu sepultamento
no Cemitério do Caju, no Rio. A causa mortis: um edema pulmonar. Oswaldo
Oliveira, Carmélia Alves e Azulão eram alguns dos artistas que estavam no velório.
Jackson estava com 62 anos. Seus restos mortais foram trasladados para sua cidade natal,
Alagoa Grande em 2009, e estão num mausoléu no Memorial Jackson do Pandeiro.