Por Ruan de Sousa Gabriel
Nos últimos dois fins de semana, discussões sobre crítica
literária tomaram os rincões do Twitter. No domingo da semana passada, dia 12,
discutiu-se o ensaio que Camila von Holdefer publicou na Ilustríssima em defesa
da “crítica hostil”. Camila criticou a suposição de que a crítica negativa
seria “um exercício vazio, nocivo ou datado”.
Como sempre, houve quem aplaudisse a defesa de uma crítica
literária que não teme ferir os sentimentos de escritores sensíveis e quem argumentasse
que crítico literário não é jurado rabugento de reality show. O que animou esse
último fim de semana foi a “treta dos booktubers”. O escritor Ronaldo Bressane
divulgou um e-mail trocado com um booktuber que só resenharia o livro dele
“após aprovação de orçamento”.
Esse booktuber cobra entre R$ 2 mil e R$ 5 mil para divulgar
um livro. Alguns comentários sobre o livro em um “vídeo coletivo [com outros
dois livros]” custam R$ 2 mil. Por R$ 3 mil, o escritor ainda descola
divulgação da capa e da sinopse do livro no Facebook, no Instagram e no Twitter
– o booktuber tem mais de 60 mil seguidores no Facebook, mais de 74 mil no Instagram
e quase 20 mil no Twitter. Além de quase 288 mil inscritos em seu canal no
YouTube. Os R$ 5 mil compram um vídeo individual, de cinco a dez minutos, e
divulgação completa nas redes sociais. No e-mail, o booktuber garantia que seus
comentários seriam “pessoais, sem interferência do autor/editora”.
Como sempre, houve quem se escandalizasse com a capacidade
de cobrar por uns comentários literários. O prazer da leitura já não é
recompensa suficiente? Não é meio indecente – um pecado, talvez – misturar
poemas e moedas? Ninguém pode servir a dois senhores. Não podeis servir à
literatura e ao dinheiro. E houve quem se lembrasse de que ninguém paga boletos
com versos de Fernando Pessoa ou ensaios criativos sobre os contos de Borges.
O escândalo com a gula dos vídeo-resenhistas repetia aquela
antiga crítica ao próprio ofício dos booktubers: quem são eles para falar de
literatura? E ainda mais num formato tão baixo como um vídeo no YouTube? Ok,
quem poderia então falar de literatura – e onde? Todos sabemos a resposta.
Críticos sisudos naqueles suplementos literários que acompanham os jornais aos
sábados (e que não existem mais). Esses críticos, sim, sabem que o prazer do texto
vale mais do que dinheiro.
Mas os resenhistas dos jornais também não escrevem de graça.
É claro, eles não são pagos pelos próprios escritores ou pelas editoras, mas
pelo dono do jornal, o que (a princípio) lhes dá mais independência. O
resenhista de jornal colabora para uma empresa e às vezes tem até um patrão. O
booktuber é um empreendedor que presta um serviço. O escritor é seu cliente.
Será que ele pode desagradá-lo?
A “treta dos booktubers” foi um pouco sobre qual é a exata
definição do serviço que eles prestam (se publicidade ou crítica) e um pouco
sobre as dificuldades de manter a independência intelectual quando há
dependência financeira. É tranquilo para um booktuber falar mal do livro de um
escritor que acabou de transferir R$ 5 mil para a conta dele? Não existe a
tentação de agradar o cliente, aquele papo “servir bem para servir sempre”?
Destroçar os livros de seus escritores-clientes pode ser
ruim para os negócios. Mas elogiar todo mundo que paga não pega bem com o
público, que pode trocar esse booktuber por um improvável resenhista de jornal.
Talvez haverá sempre algo de nebuloso no negócio dos booktubers: eles fazem
divulgação ou uma nova modalidade de crítica literária, mais em sintonia com os
novos tempos?
No fim desse domingo literário, os tuiteiros tinham chegado
a um acordo: o booktuber pode cobrar por resenha, mas deve deixar isso claro
para seus seguidores. A “treta dos booktubers” me levou a reler o texto da
Camila von Holdefer na Folha de S. Paulo, assunto do domingo anterior. Suspeito
que as discussões dos dois fins de semana sejam sobre a mesma coisa: custa
falar mal? E mais: precisa falar mal?
A crítica mais corajosa é mesmo aquela que puxa a orelha dos
autores que erram na regência dos verbos ou no destino dos personagens? O
ensaio da Camila é uma boa declaração de princípios: um crítico não deve ter
medo de criticar, de apontar inconsciências, de afrontar. Mas será que a
crítica hostil também não é um pouco problemática – e talvez ultrapassada?
O louvor à “crítica hostil” me parece entronizar o crítico
num lugar de “juiz do gosto”. A literatura se torna um lugar a ser atingido.
Para merecer uma boa resenha – um “excelente”, um “muito bom”, quatro ou cinco
estrelas –, um escritor deve saber usar bem as vírgulas, não abusar dos
advérbios terminados em “mente” e tomar cuidado com as metáforas.
Ou seja: para ser boa literatura, a literatura deve se submeter
a algumas regras, se esforçar para atingir determinados padrões. Mas a boa
literatura não é muitas vezes aquela que subverte as regras e tortura as
palavras para que elas digam algo de novo? Dostoiévski e Roberto Arlt foram
repetidas vezes acusados de praticar uma escrita rude e sem brilho, mas alguém
ainda duvida que eles foram escritores fantásticos?
O crítico hostil é um pouco defensivo, pratica uma leitura
rancorosa e lê romances com um lápis afiado à mão, pronto para corrigir os
erros de escritores indolentes. Ele sabe todas as respostas. Mas o que acontece
quando a literatura inventa novas perguntas?
Não acho que a boa crítica precisa ser implacável, como o
pai de Kafka. Em vez de lutar com o texto, o crítico pode brincar com ele – um
pouco de promiscuidade também vale. Uma briga só serve para medir a força ou o
preparo técnico de alguém. Quem entende de criatividade é a brincadeira.
Um bom crítico dialoga com o texto, formula perguntas à
medida que a leitura avança e, sobretudo, permite que o texto também o
questione, o escandalize, o irrite. Como disse um amigo meu, “boa crítica
talvez seja aquela que prolonga e recoloca a obra em outros termos – para o bem
ou para o mal”.
Fiquei pensando se recolocar uma obra em outros termos
também não é permitir ser recolocado, ou seja, concordar que a literatura nos
deixa desconfortáveis, sem resposta, com raiva. Aceitar essa posição
desconfortável e abandonar as luvas de boxe na hora da leitura não significa se
contentar com uma crítica pouco rigorosa ou condescende, mas entender que o
crítico não é nenhum juiz.
Um crítico menos interessado em argumentar contra ou a favor
de um livro e mais curioso quanto à qualidade e à inteligência das perguntas
que um texto é capaz de formular me parece ser um crítico mais corajoso e capaz
de instigar outras pessoas à prática da leitura – não importa se ele exercita
essa curiosidade no papel ou num vídeo no YouTube.
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