Uschi Obermaier,
primeira top model alemã, mulher mais sexy dos anos 60, namorou ativistas
políticos, astros do rock’n’roll, donos de cabarés – e até marinheiros de sorte
incomum. Perfil para o número 1 da linda revista The President
Por Ronaldo Bressane
Rudolf Liebzeit é um grande azarado. Ou um sortudo nascido
virado pra Lua. Tudo depende do ângulo que você vê as coisas. Rudolf nasce numa
cidade destruída. Munique, 1946. Os amigos vivem tirando sarro do seu
sobrenome, que quer dizer “tempo de amor”. Quando faz 16 anos, Rudolf (vamos
chamá-lo Rudi) alista-se para ser marinheiro num dos mais famosos navios de seu
tempo, o Pamir. Todos os amigos já tinham feito a inscrição, seria uma aventura
maior que a vida. Na véspera da partida, em Hamburgo, Rudi sente uma dor
insuportável no ventre. Apendicite aguda. Vai para o hospital e perde o
embarque. Ganha uma melancolia incurável. Já restabelecido, de volta a Munique,
Rudi fica sabendo que o Pamir tinha sido afundado por um tufão nos Açores. Das
86 pessoas a bordo, seis se salvaram. Todos os amigos mortos. Rudi ganha um
olhar ainda mais triste. Sua tristeza comove uma amiga da escola, a maravilhosa
Chrissie Malberg. Tempo de amor.
Só que a melancolia de Rudi não passa. E Chrissie é linda
demais para a morta Munique, até então só conhecida pela Oktoberfest e por ter
presenciado a ascensão do nazismo. Chrissie tem vinte e um anos e muita pressa.
“Naquele verão de 1967, em Paris os estudantes escreveram Poder Para a
Imaginação nos muros. Em São Francisco o povo dançava na rua e lutava pelo que
queria fazer na vida. Eu estava em casa em Sendling, subúrbio de Munique. Senti
que ia morrer uma morte lenta e infinita daquele jeito. A única coisa que me
mantinha viva era a música. E estava claro pra mim. Tudo o que eu precisava era
de um homem. Quanto mais selvagem, melhor. ” O quase marujo não é selvagem o
bastante. O tempo não está ao seu lado. Auf Wiedersehen, Rudi.
Quando Chrissie bate na porta da comuna musical Amon Düül,
seu nome já é Uschi Obermaier. Ela não seria a namorada de um marinheiro que
perdeu as graças do mar; seria a namorada de toda aquela banda de kraut-rock.
E, confirmando que sabe trocar o liebzeit pelo zeitgeist, como toda boa garota
hippie vai pro pandeiro. Sua banda viaja para um festival em Essen e faz
amizade com os colegas da Kommuna 1, que então ocupa a casa do poeta Hans
Magnus Enzensberger. Bem selvagem essa turma. Totalmente contra o consumismo e
a burguesia. Totalmente contra o passado nazista. Totalmente a favor de
disparar tortas na cara dos políticos (o que eles chamam de “assassinato por
pudim“), tocar fogo em lojas de departamento (“Solte na rua a sua vontade
Vietnã de pegar fogo“), além de totalmente aberta ao amor livre.
O cara mais selvagem da turma é o sarará de oclinhos Reiner
Langhans – com seu cabelo seria possível fazer 1001 comerciais de palha de aço.
Seguidas greves de fome modelaram o shape do intelectual marxista-reichiano, o
que agrada à iniciante modelo Uschi. Magrela e magrelo se apaixonam loucamente
e vão viver juntos na Kommuna 1 de Berlim. “Juntos” pressupõe ter pelo menos
dez pessoas bem coladinho, fazendo tudo o que você pode mas não poderia nunca
imaginar o triste Rudi.
A mídia de 1968 ferve com a notícia. Nada mais quente que
uma top model vivendo numa comunidade hippie de extrema esquerda: pense em
Gisele Bündchen morando com José Rainha na Praça Roosevelt. A mídia mal imagina
o que vem pela frente. Uschi é a primeira top model da Alemanha. A primeira top
a fazer nu frontal na capa de uma revista. Capa de todas as revistas européias
de moda. A Stern certa vez paga a Uschi uma Porsche 911 por uma entrevista e
uma sessão de fotos. Todos os adolescentes alemães têm pôsteres de Uschi
escondidos sob os colchões; todas as meninas copiam seu estilo. E todas as mães
e os pais de família odeiam Uschi.
Bem, talvez nem todos: quem observa os ensaios de Uschi com
distanciamento crítico nota pairar uma beleza incomparável. Seu corpo pequeno e
magro exibe uma pele tépida, dourada e nervosa, como se colada ao papel da
revista. Ver Uschi é quase ter a experiência de tocá-la. Ela gentilmente clama
por isso. Os miúdos seios têm mamilos escuros e sempre empinados. Quase nunca
sorri: os lábios muito carnudos entreabrem-se misteriosamente, sugerindo dentes
poderosos, grandes, vorazes. Os cabelos negros e cheios desarrumam-se numa
doida franja sobre a testa, reflexo fiel das idéias revoltas dentro da perfeita
cabeça. Os olhos verdes denotam uma postura doce porém altiva, provocadora
ainda que frágil – ecoando a melancolia aprendida com um quase náufrago. Seu
queixo inocente e desafiador não deixa dúvidas: Uschi Obermaier é Kiki de
Montparnasse, é Leila Diniz, é Nico, é Pattie Boyd, é Lou Andreas-Salomé, é
Pamela des Barres, é Gisele Bündchen, tudo no mesmo demoníaco enquadramento do
sexo em estado puro.
Hendrix, Stones e a incrível motor-home
Mas a Kommuna 1, agora chamada High-Fish Commune, quer mais
que Uschi. Quer divulgar sua mensagem de amor livre ao mundo. Gente como John
Lennon e Yoko Ono confirma que a grande inspiração para seu relacionamento
aberto é o casal Reiner e Uschi, que dão entrevistas seminus numa cama rodeada
de amigos, Reiner tocando cítara, Uschi fumando um baseadão de maconha. Num
pôster na parede, Che Guevara vive – por pouco tempo: estamos em 1968. O casal
encontra o guitarrista Peter Green, do Fleetwood Mac, em Munique. Dividem
pastilhas de ácido e Reiner solta toda a sua verborragia sobre Green para
fazê-lo convidar seus colegas a se apresentarem no “Woodstock da Baviera“, que
seria o maior evento político-pop da história.
O festival não rola. Mas alguns músicos ficam curiosos em
conhecer a cena tedesca. Para quem não sabe, o rock’n’roll nasceu durante a
passagem de Elvis e Beatles pela Alemanha. Pedágio obrigatório. E lá vai o
Negão bater na porta da High-Fish, numa noite gelada. (Na época, só dois deuses
merecem a alcunha de Negão: Pelé e Jimi Hendrix. Mas Pelé nunca foi muito
chegado na contracultura.) Uschi dá boas-vindas a Hendrix e vice-versa. Só que
o Negão tem 23 anos e está mais interessado em reinventar a música e em se
tornar um mito. No documentário The last experience, antes de se despedir da
namorada, tal como Jesse Owens havia feito trinta anos antes, um negro
norte-americano leva uma glória para a casa: um beijo do maior tesouro alemão.
Hendrix, que fala demais por conta dos LSDs diários que
toma, fofoca a seus colegas que a garota mais incrível do mundo mora na
Alemanha. Os Stones haviam acabado de compor “Sympathy for the devil” e
precisam dar um tempo da barulheira da Inglaterra e dos EUA. Batem na porta da
calorosa High-Fish. De cara, Uschi acha que está apaixonada por Mick Jagger.
Mas Mick foge de Uschi feito o diabo da cruz. Keith Richards mostra a Uschi que
sua versão de “Sympathy for the devil” é muito mais cool que a de Mick e que
todos os livros marxistas de Reiner somados. Uschi quebra sua promessa de amor
livre e abraça a causa do emérito criador de riffs.
Porém Keith é um pirata jovem demais para amarrar seu navio
em um porto. E percebe que Uschi já está de olho em um concorrente mais poderoso,
capaz de levá-la a conhecer o mundo. Keith cai fora. E Uschi afinal encontra o
homem da sua vida: o bigodeira Dieter Bockhorn, dono de cabarés no redlight
district berlinense. Estamos em 1973: Jim Morrison, Janis Joplin e Brian Jones
já haviam morrido, todos com 27 anos. Naquele navio naufragado também estava
Jimi Hendrix, certamente ao timão.
Tempo de casar a utopia hippie com as comodidades burguesas.
Entre 1973 e 1984, Uschi e Dieter formam o casal mais bacana do planeta. Pegam
um motor-home RV e vão viajar: três anos só na Índia, depois toda a Ásia,
atravessando o oceano para curtir outros anos entre o México e os EUA. Segundo
conta Uschi em sua autobiografia High times, casam-se em todos os países por
que passam. No controverso filme 8 miles high (2007), baseado neste livro, a
bela cena do casamento na Índia dura cerca de cinco minutos. No México, Baja
California, Año-Nuevo de 1984, Uschi tem uma discussão com o marido e vai fumar
um baseado na praia, onde por acaso encontra o velho amigo Keith Richards. O
stone somente diz “Please to meet you“. De manhã Uschi volta à sua motorhome.
Dieter não está lá. Havia morrido naquela mesma noite, num acidente de moto.
Uschi resolve ficar nos EUA. Mora em Topanga, perto de Los
Angeles, comunidade de artistas como Neil Young, Marvin Gaye, Devendra Banhart,
Viggo Mortensen, Van Morrison, Alice Cooper, Dennis Hopper e um longuíssimo etc
(alguns fãs juram que ela ainda hoje é a amante de Keith Richards). Ali, na
mesma cidade em que Jim Morrison compôs “Roadhouse blues“, Uschi Obermaier
trabalha como designer de jóias, aos 64 anos, sem filhos.
No lançamento da cinebio, que tem a gatíssima polonesa
Natalia Avelon performando sua vida, Uschi dá entrevistas em que fala coisas
assim: “Éramos mais desafiadores; os jovens de hoje são muito mainstream. Mas
você tem de considerar que naquela época tudo era absolutamente novo e
revolucionário. Até usar micro-saia era demonstrar rebeldia. Isso nunca foi
minha filosofia: era só o sentimento que nascia de mim. Eu nunca quis ser
rebelde; só quis ser livre. Acreditamos em contos de fada, e foram contos de
fada o que vivi. Quis tudo desse mundo, quis a experiência de viver aqui e
agora. Pensava que o certo não era sonhar a vida, mas viver o seu sonho“.
Seu primeiro namorado, o marinheiro que perdeu as graças do
mar, vive ainda em Munique. Durante as noites em que o vento sopra demais, ouve
uma canção que diz: “Se você me encontrar/ Mostre alguma cortesia/ Mostre
alguma simpatia/ Mostre bom gosto/ Use toda a sua bem educada polidez/ Ou
desperdiçarei sua alma./ Prazer em conhecê-lo/ Espero que tenha aprendido meu
nome/ O que te deixa meio confuso/ É só a natureza do meu jogo“. Aí Rudi vira
para o lado e de novo mergulha no sono. Sob seu colchão, dormem fotos de uma
moça que ninguém jamais viu. Só ele.
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