Existem torcedores e torcedores... E Ivan Lessa que nos
deixou nesta sexta-feira, dia 8 de junho de 2012, exatamente um mês após
completar 77 anos, era o que se pode dizer, um torcedor apaixonado pelo
Botafogo, tanto que escreveu um dia: “Botafogo. Gozado. Flamengo, Vasco,
Fluminense. Coitados, tem apenas torcedores, nós temos uma paixão.”
Comentando o livro do amigo Sérgio Augusto, “Botafogo: entre
o céu e o inferno” (Ediouro, 2004), Lessa afirmou: “Sou grato ao Sérgio Augusto
por ter escrito um dos três livros que eu mais gostaria de ler na vida.”
E neste livro, Sérgio Augusto revela o tamanho do coração
torcedor do amigo Ivan Lessa:
“(...) Recém-chegado dos Estados Unidos, onde passara parte
da infância, por pouco Ivan Lessa não adotou o América, clube de simpatia de
seu pai, o escritor Orígenes Lessa. Ainda sem time, quando foi morar na avenida
Atlântica, Ivan, como outros pirralhos de Copacabana, acabou sucumbindo à
inescapável mística de Heleno de Freitas. ‘Sou Botafogo porque tive um béguin pelo
Heleno lá pelos 10 anos de idade’, confessou-me o meia-esquerda do meu
time-cabeça.Em 1946, Ivan raramente perdia um racha na Bolívar e na Barão de
Ipanema, duas ruas de Copacabana onde o ‘boa pinta e falador’ Heleno podia ser
visto quase todo dia, a pé ou ao volante de um cinematográfico carro esporte em
dois tons de azul. Ora no restaurante Dolly (hoje Nino’s), na esquina da
Bolívar com Domingos Ferreira, às vezes espiando o futebol de praia, quando não
participando de uma linha de passe na areia, onde quer que estivesse o mais
glamouroso craque brasileiro de todos os tempos reinava absoluto na princesinha
do mar”.
Ivan Lessa deixou em uma de suas crônicas escritas para a
BBC Brasil o que para ele era “um verdadeiro torcedor”...
O verdadeiro torcedor
Por Ivan Lessa
O verdadeiro torcedor não se dá a conhecer. Embora um
conoisseur, prefere trabalhar – seu ofício é duro – em silêncio. Tem razão. Sua
prática é feroz, exige disciplina e nem todos o compreenderiam.
O verdadeiro torcedor não pinta a cara ou qualquer outra
parte de seu corpo, não veste a camisa de seleção alguma, não agita bandeiras,
não ergue a voz em coro com outros. O verdadeiro torcedor é um animal pensante
doméstico. Não vai aos jogos. Principalmente os da Copa do Mundo. Escolhe, no
entanto, torneios importantes que propiciem amplo espaço na imprensa, televisão
ou mesmo rádio.
O verdadeiro torcedor gasta seu dinheiro em jornais,
publicações especializadas, cadernos em espiral e canetas esferográficas. E uma
tesoura razoável. No seu quarto, um território proibido a estranhos, tem colado
nas paredes tabelas coloridas e algumas fotos e recortes pregados com uma
massinha azul que não deixa marca ou mancha. Na mesa de trabalho, ao lado do
computador, o caderno de notas, a tesoura (“Recortar é viver”, este seu lema) e
uma Bic, de preferência azul.
O verdadeiro torcedor passa entre 2 a 3 horas por dia
folheando os jornais em busca de colunas relativas aos diversos jogos. Degusta
análises, com ênfase naquelas que ousem previsões. Não são difíceis de
encontrar: o peixe morre pela boca, o jornalista esportivo pelo texto. O
verdadeiro torcedor passa pelo menos uma hora vendo e ouvindo, com atenção, as
observações feitas pelos bem pagos comentaristas profissionais durante os intervalos
e as versões compactas dos jogos da Copa. O verdadeiro torcedor ri fácil e,
sério, toma notas.
O verdadeiro torcedor é um perfeccionista. O verdadeiro
torcedor sabe, como os mais desbragadamente apaixonados, o nome e a ficha
completa de jogadores mais populares como Cristiano Ronaldo, Messi, Robinho,
Maicon, Eto’o, Casillas, Rooney e Dempsey, como também daqueles menos cotados,
como Zigic, Özil, M’bohir, Yussuf e Park-Ji-Sung.
Até mesmo os técnicos não fogem a seus olhos dourados de
atenção: Otto Rehhagel, Huh Jung-moo, Gerardo Mantino e Rajevac são magos
feiticeiros de sua intimidade. O verdadeiro torcedor desconhece limites para o
esporte das multidões em sua modalidade máxima, pois sabe de cor e salteado até
mesmo o nome de todos os estádios sul-africanos, dos quais prefere citar, em
voz baixa e a sós, como se recitando uma encantação, os de Koftus Versfeld,
Peter Mokaba, Mbombela e o de Moses Mabhida.
O verdadeiro torcedor tem, por vezes, seus exageros, pois é
humano, nada mais que humano. Saber uma linha do hino nacional da Argélia, sob
qualquer ponto de vista, não deixa de ser levar a idiossincrasia a seus mais
desvairados limites (É assim: Qassaman Binnazzilat Ilmahigat e quer dizer “Juramos
pelo raio que destrói”).
O verdadeiro torcedor freme e goza de prazer é quando
encontra, como foi o caso, um comentário-prognóstico de David Hytner, do
Guardian, na mesma manhã em que, algumas horas depois, a Alemanha foi perder de
1 a 0 para a Sérvia:
“Joachim Löw revitalizou sua equipe (a alemã, frise-se) com
uma abordagem técnica audaz, saudável e multicultural”. E, mais abaixo, “A
formação por ele escolhida a dedo abunda com a exuberância e o frescor da
juventude”. Assim prosseguiu o notável David Hytner, sem sequer esquecer do
trema sobre o “o” de Löw, jabuzelando e vuvulanando por umas três colunas.
A Sérvia? Sob a batuta de Raddy Antic? A Sérvia
definitivamente não estava à altura de conter as feras de Löw que, até então,
já haviam desembestado ganhando de 4 (de quatro!) da – seria manhosa, David Hytner?
– Austrália, orquestrada sob a batuta do – seria capcioso, David Hytner? – Pim
Verbeek.
O verdadeiro torcedor, assim como quem não quer nada, quer
tudo. O verdadeiro torcedor é pela zebra e o circo pegando fogo fora de campo.
O verdadeiro torcedor pouco liga para milionários dando pontapés e estragando
gramados.
O negócio do verdadeiro torcedor é ver os outros
milionários, os da mídia, quebrando a cara. Momentaneamente, ao menos. O
verdadeiro torcedor sabe que os outros torcedores, coitados, logo vão embora e
de tudo se esquecer depois de cantarem seus estribilhos, soprarem nisso ou
naquilo outro e voltar a esperar outros quatro anos.
O verdadeiro torcedor não carece de matéria. N’est-ce pas,
cari amici italiani?
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