Minha flor-de-lis resolveu me visitar na última sexta-feira.
Estava deprimida, ansiosa e irritada. Achou que dormir comigo lhe faria bem.
Conversamos sobre isso e aquilo outro, sendo isso e aquilo
outro as vicissitudes de permanecer vivo. Ela se acalmou.
Custa crer que uma garota de 21 anos tenha crises
existenciais. A Madame Butterfly tem.
Eu vou morrer sem saber de nada.
Crise? Que crise?!
Crise? Que crise?!
– Eu me olho no espelho, acho que estou ficando feia e que
você não gosta mais de mim! – disparou, tentando segurar o choro.
Eu olhei para aquele corpo perfeito, para aquela potranca incrivelmente
bela diante de mim e não resisti a uma ironia vulgar:
– Caraco! Se você ficar melhor do que isso, apodrece! Na minha época, essa sua crise existencial se chamava TPM...
Ela ficou cabreira pelo pouco caso que dei à sua vontade de morrer, entendeu o meu quase riso como uma confirmação de seus
demônios interiores e começou a chorar copiosamente.
Foi um parto desfazer o
mal entendido.
Eu vou morrer sem entender as mulheres.
A primeira vez em que dormimos juntos, dois-anos-ontem, eu, só
um pouquinho menos apaixonado do que hoje, notei que a Madame Butterfly não cobria os
pés.
Peguei uma colcha e improvisei uma espécie de ninho para
aquelas duas aves morenas que se abraçavam loucamente, como se uma necessitasse
do calor da outra.
Alguns meses depois, coloquei no quarto um Split de 18 mil
BTUs – o que transformou o mocó em uma espécie de câmara criogênica –, mas
notei que os pés da Camila continuavam sempre fora das cobertas.
Então, entendi que, mais que um hábito, os pés desnudos eram
uma declaração de princípios, um gesto simbólico de insubmissão.
Ao longo de todos esses meses, ou seja, de ontem pra hoje,
perdi a conta das vezes em que sentei, silenciosamente, para contemplar, como
que enfeitiçado, o mistério dos pés dela, procurando descobrir que segredos
eles poderiam estar me contando na imobilidade aparente do sono.
Na semana passada, eu os cobri com um edredom dobrado e
entrei em pânico ao ver que eles se agitavam como se estivessem sufocando.
Livrei-os depressa do cativeiro, cobri minhas avezinhas de
beijos e jurei que nunca mais violaria o direito delas à liberdade.
E de repente, como no soneto do Vinicius, não mais que de
repente, compreendi que se um dia, no futuro próximo-distante, essas duas aves
morenas quiserem bater asas, eu morro.
2 comentários:
Pedófilo!
Parabens pela Gostosa!
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