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terça-feira, agosto 12, 2025

Ele ousou lutar...

 


Por Mouzar Benedito

No próximo dia 16 de agosto tem um evento muito especial em Belo Horizonte, e quero falar dele, mas vou começar do começo, como se diz.

Era tempo de ditadura braba, governo Garrastazu Médici, em setembro de 1971, quando fui passar uns dias na minha terra, Nova Resende. Estava num churrasco com amigos mais velhos, chegou um conhecido e começou a falar no ouvido de alguns deles, e todos faziam cara de espanto, ficavam sérios.

Desconfiado, cheguei nele e cobrei: “Do que estão falando? Quero saber também”. Ele respondeu: “Prenderam o filho do Quita. Ele é acusado de terrorismo”.

Quita era o apelido do Dr. José Gonçalves de Rezende, nosso conterrâneo, desembargador em Belo Horizonte. O filho dele que foi preso era o Zé Roberto, que eu não conhecia, porque mudou-se de Nova Resende quando eu era muito criança.

Eu sabia o que aconteceria com ele: muita tortura, talvez até a morte na prisão. Mas minha sensação foi estranha, de orgulho. Saber que um conterrâneo participava da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), era guerrilheiro contra a ditadura, me deu a sensação de que minha terra tinha motivo para orgulhar-se de um filho que não fugiu à luta.


Visitas aos presos políticos

Em 1978 tive que me mudar pro Rio de Janeiro. Em São Paulo eu estava no que chamavam “lista negra” e não tinha como sobreviver, porque fui demitido do Sesc por causa da participação na imprensa alternativa, e ninguém me dava emprego. Encontrei uma prima do Zé Roberto que morava lá, a Cleuza. No início de 1979, ela me procurou informando que abriram a possiblidade de presos serem visitados por amigos, com um limite de três visitantes para cada um, tinha comentado com o Zé Roberto sobre minha militância e ele queria me conhecer. Perguntou se eu topava ir ao presídio da Rua Frei Caneca... Topei, claro. A preocupação dela, me perguntando se topava era porque a mera visita a presos políticos era vista como meio perigosa, já dava “ficha no Dops”, segundo diziam.

Fiquei impressionado. Tive que passar por sete grades para chegar à ala dos presos políticos, sendo mal-encarado em cada uma delas, e entre a sexta e a sétima fui revistado de alto a baixo. Tive até que esvaziar todos os bolsos, tirar o sapato e a meia para verem se tinha algum papelzinho com qualquer recado para eles, e abrir o maço de cigarros (eu fumava, na época) que também foi revistado com rigor... Dava mesmo para se sentir ameaçado visitar os presos políticos.

Uma ala antes da que eu ia, ficava a dos presos pertencentes ao Esquadrão da Morte, cujos visitantes entraram ao mesmo tempo que eu, e vi que ninguém era revistado. Uma mulher levava com uma caixa que me disse conter um bolo de aniversário, poderia ter armas de fogo poderosas dentro.

Havia uns 70 presos lá, e conversei não só com o Zé Roberto, mas com vários deles. Comentei com o Zé Roberto sobre a pena que ele devia cumprir: duas prisões perpétuas mais 69 anos de cadeia. Teria que morrer duas vezes e ter uma terceira vida bem longa para cumprir tudo. Não fui criativo: todo mundo falava isso, até em tom de piada.

As duas condenações à prisão perpétua foram por participação no sequestro dos embaixadores da Alemanha, trocado por 45 companheiros que estavam presos e sendo torturados, e da Suíça, trocado por 70 presos igualmente vítimas de torturas.

Na hora me surgiu a ideia de fazer matérias sobre presos políticos pro jornal Em Tempo, muito combativo, que ajudei a fundar, mas que tinha me afastado. Entrevistei presos e fui anotando. Mas, na hora de sair, me recomendaram que decorasse o que escrevi e queimasse o papel, porque seria revistado com rigor na saída também. Aconteceu mesmo. Para não esquecer o que tinha escrito, entrei num bar em frente ao presídio, pedi uma pinga, uma cerveja e uma folha de papel de embrulho e escrevi tudo.

Em casa, à noite, fiz uma matéria e mandei pro jornal, pedindo que inventassem um pseudônimo pra mim, porque queria continuar visitando os presos e fazer matérias com eles, e se assinasse com meu nome me proibiriam de fazer novas visitas. Amigos gozadores me arrumaram o pseudônimo Rezende Valadares Netto, justificando: Rezende (com z), porque sou de Nova Resende (com s); Valadares porque Minas Gerais teve um governador fazedor de média durante a ditadura anterior, Benedito Valadares, e brincaram que todo mineiro era fazedor de média; e Netto, com dois tt, só pra dar um charme.

Continuei fazendo matérias e notas sobre os presos políticos pro Em Tempo, assinando Rezende Valadares Netto, ou RVN, e retirando clandestinamente material produzido pelos presos políticos, e também pôsteres que produziam, para vender aqui fora e gerar uma grana para comprarem algumas coisas que necessitavam e melhorar suas condições lá dentro.

A disposição do Em Tempo para publicar tudo sobre presos políticos, incluindo duas listas de torturadores (participei do encaminhamento da segunda delas pro jornal) acabou merecendo o prêmio Vladimir Herzog, concedido pelo Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo.

Cachaça de abacaxi

A vida na cadeia é difícil e algumas coisas ajudam a aliviar um pouco, e elas eram muito valorizadas pelos presos. Uma delas era cigarro, que quase todas visitas levavam (eu também) e bebidas alcoólicas, totalmente proibidas. Os presos criaram um “alambique” clandestino, feito com uma panela de pressão, uma serpentina que saía do alto da panela e passava por dentro de um balde de água fria. O vapor saía pela serpentina, condensava ao passar pela água fria e pingava uma cachacinha razoável: experimentaram várias frutas e a que deu pinga de melhor qualidade foi o abacaxi. E as visitas levavam abacaxis para eles. Imagino que os carcereiros deviam pensar: como esses presos gostam de abacaxi!

A fruta era esmagada e colocada num balde para fermentar. O balde ficava escondido na cela, e quando estava na hora certa destilavam de madrugada. Os dois melhores alambiqueiros do presídio eram o próprio Zé Roberto e outro mineiro, o Manoel Henrique. Mineiros não negam fogo, eu brincava. Beberiquei um pouco dessa cachaça durante as visitas.


Eles não foram anistiados

Acabei me tornando amigo de vários presos, especialmente do Zé Roberto, que além de tudo era o conterrâneo que me dava orgulho. Eles conversavam comigo como se eu fosse um deles, chegaram a pedir minha opinião sobre uma greve de fome que pretendiam fazer, porque o projeto de lei da Anistia que o então presidente, general Figueiredo, mandou ao Congresso anistiava mais os torturadores e demais participantes da ditadura do que suas vítimas. Respondi que não podia dizer que era a favor da greve, pois quem passaria fome eram eles. Falar pros outros fazerem greve de fome é fácil. Mas se fizessem, eu daria o apoio que pudesse. Fizeram, e a greve de fome durou 32 dias!!! O projeto aprovado não atendeu ao que reivindicavam, mas não tinha mais sentido continuar.

A Anistia anistiou mesmo os torturadores e colaboradores da ditadura, mas criou-se uma situação em que o Judiciário se viu forçado a fazer revisão de penas absurdas ditadas pelos tribunais militares. E as penas do Zé Roberto foram reduzidas a 15 anos de prisão. Como estava preso havia oito anos e sete meses, pôde sair em condicional, depois de tentativas de entraves por um juiz.

Quando ele saiu, fizeram uma festa em sua homenagem, num apartamento no nono andar de um prédio e ele ficou quase o tempo todo na janela, olhando a rua e o movimento lá embaixo. E me contou mais ou menos assim: “Eu mesmo fiquei curioso por ter feito isso e concluí: passei quase nove anos preso, só dava para olhar para cima, pelas pequenas janelas das celas; foi a primeira vez depois desses anos que pude olhar para baixo”.

Ouvidor da polícia

Libertado, voltou para Belo Horizonte, terminou o curso de direito interrompido desde que entrou na clandestinidade e tornou-se advogado de movimentos populares. Quando o governador Eduardo Azeredo resolveu criar a Ouvidoria de Política, pediu aos movimentos de Direitos Humanos que indicassem o ouvidor. Escolheram o Zé, por unanimidade.

Antes que fosse nomeado, a cúpula da PM do estado foi falar com o governador, pedindo que não o nomeasse porque, segundo ela mesma, ele foi muito torturado e “poderia querer se vingar da polícia”.  O governador pediu então que indicassem outra pessoa, mas os movimentos de Direitos Humanos se negaram: “Se não for ele, não indicamos ninguém”. E Azeredo acabou cedendo. Zé Roberto não se vingou da polícia, mas foi um ouvidor eficaz, dedicado integralmente a apurar crimes cometidos por ela. Logo de cara apareceu um jovem morto perto do aeroporto da Pampulha e a PM informou que era resultado de uma briga de quadrilhas.

Mas o Zé Roberto viu o cadáver e não aceitou essa versão: o jovem tinha muitos sinais de tortura e ele sabia bem o que era isso, pois foi barbaramente torturado durante 30 dias quando foi preso. Acabou descobrindo que o rapaz foi torturado até morrer.

Ele largou tudo para dedicar-se integralmente à Ouvidoria.

 


O livro “Ousar Lutar”

Um dia, conversando numa mesa de bar de BH, estávamos ele, a mulher, Beatriz, e o casal amigo Virgílio e Laura. Na época, o Zé era muito convidado para fazer palestras sobre a resistência à ditadura.

Quando ele foi ao banheiro, o Virgílio me disse que estava tentando convencer o Zé a escrever um livro sobre sua história, não para posar de herói, mas para que as novas gerações entendessem como é que podia jovens em plena fase de “aproveitar a vida” entrarem para uma luta com pouquíssimas chances de vitória e muitas de ser preso, torturado e morto, ou exilado. Ele não queria escrever, achava que podia ser mal interpretado.

Falei: “Deixa comigo...”. Quando o Zé voltou do banheiro, falei com ele: “Você tem dois filhos pequenos e um jovem do primeiro casamento, de antes de ser preso. Este último sabe bem da sua história, mas os dois pequenos, quando estiverem crescidos podem não entender direito e devem passar por provocações sobre você ter participado de sequestros e ter sido preso, e precisarão entender que os sequestros e outras ações tinham um sentido muito diferente do que podem querer lhe atribuir”. E concluí: “Você devia escrever um livro contando tudo. Se achar que não ficou bom, guarde os originais para os seus filhos...”.

Ele me respondeu: “Se você escrever comigo, eu topo”. Pronto! Eu não poderia me negar, e topei. Escrevemos. O título escolhido por ele foi “Ousar Lutar – Memórias da guerrilha que vivi”. “Ousar lutar, ousar vencer!” era o lema da VPR.

Contatei a Boitempo, editora que eu achava mais apropriada para a publicação, ela topou publicar e entregamos os originais. No dia em que o livro entraria na gráfica, há 25 anos, em agosto do ano 2000, ele teve um infarto e morreu. Tristeza imensa.

Ele era tão querido por sua luta e sua integridade que o lançamento foi um grande acontecimento, com direito a uma atividade na sede da OAB e um público enorme. Para se ter ideia, foram vendidos 460 exemplares do livro.

 

Homenagem dia 16

O amigo Virgílio me telefonou recentemente para informar que foi organizada uma atividade homenageando o Zé Roberto, no aniversário dos 25 anos de sua morte.

Vai ser no Instituto Helena Greco de Direitos Humanos e Cidadania, de Belo Horizonte, dia 16 próximo, a partir das 16h. Terá, entre outras coisas, a presença dos seus filhos, a exibição de um filme sobre os presos, falas de companheiros de prisão e de pessoas que estavam presas e torturadas e saíram em troca de embaixadores sequestrados, leitura de trechos do nosso livro...

Eu gostaria de ir e levar uma relíquia: quando terminávamos de escrever o livro, sugeri que ele fizesse uma pinga de abacaxi como as que fazia no presídio, para os presentes beberem no lançamento. Ele fez um garrafão. No lançamento do livro, a Beatriz, sua viúva, levou a bebida e sobrou um pouquinho, que ela me deu e eu trouxe para São Paulo, mas nunca tive coragem de acabar com ela. Seria uma ocasião apropriada para bebermos o que resta. 

Mas não vai dar. Questões de saúde me impedem de viajar, mandei uns pequenos vídeos que gravei lembrando dele, com saudade. No dia da homenagem vou beber aqui uma dose da cachaça feita por ele. Um brinde ao grande amigo que não fugiu à luta!

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