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terça-feira, junho 25, 2019

ABCedário íntimo para uso público (final)



Por Thiago de Mello
V da vinda de Getúlio Vargas a Manaus em 1940,
em pleno Estado Novo. Os alunos de todos os colégios, primários e secundários, fomos obrigados a desfilar em seu louvor. Tudo como ainda acontece atualmente nas visitas presidenciais às capitais do país. Com a diferença de que aqui foi uma oportunidade a mais para que o Bombalá brilhasse e a Manaos Tramways cedesse gratuitamente um bonde para levar os ginasianos de passeio pelos arrabaldes de Manaus. 
Da visita, que durou o tempo necessário aos discursos e banquetes (Getúlio revelou depois que adorou a tartarugada) um episódio nunca mais me saiu da memória. Tínhamos na cidade um poeta popular, o Ferreira Sobrinho, bom versejador em décimas, que caprichara numa louvação ao ditador visitante e ocorreu-lhe, por ingênuo ou pode ser que por vaidoso, ler publicamente, perante o presidente, os versos que compusera em sua honra dando ensejo a que também o povo as escutasse.
Arrebatado pelo infalível êxito que, na sua opinião, alcançaria o seu projeto, aproximou-se afoitamente do automóvel sem capota que vagarosamente conduzia Getúlio Vargas e iniciou o gesto de subir a plataforma do veículo, na qual se encontrava, enorme e enchapelado, vigilante da segurança do seu chefe e protetor, precisamente o temível e poderoso chefe de sua guarda pessoal: o negro Gregório Fortunato. 
A cena passou-se em brevíssimos segundos: Gregório agarrou com as duas mãos o poeta Ferreira Sobrinho pela cintura, ergueu-o no ar (enquanto o vento sacudia as páginas cheias das décimas de louvor) e lançou-o, literalmente lançou-o, por sobre a cabeça da massa que se comprimia para ver de perto o pai dos brasileiros, no meio dos quais o poeta popular desabou.
Vicente Telles dominava como poucas as virtudes, as leis e os segredos deste idioma tão bonito que herdamos de nossos colonizadores: o português, que um poeta em noite mal inspirada chamou de “a última flor do Lácio”. Não importa. Vicente Telles tratava simplesmente de cumprir bem o seu ofício de professor do idioma, sem se meter jamais em polêmicas, que tanto fascinaram o João Leda, que fazia questão de mostrar seus amplos e minuciosos conhecimentos em artigos de jornais e livros que hoje ninguém consegue ler. 
Corre ainda hoje a lembrança de um episódio ocorrido durante um exame oral na Escola Normal. Tratava-se da análise léxica de uma frase, na qual havia um “que”. O professor quis saber qual a categoria gramatical da palavra na oração.
– É verbo, respondeu a aluna.
– Então conjugue.
– Eu aqui, tu ali, ele acolá.
– E no plural?
– O verbo não tem plural, é defeituoso.
Z da Zona de Manaus, a antiga.
Não tinha a fama nem o prestígio da atual. E era genuinamente cabocla, embora em seus tempos dourados esbanjasse matéria-prima importada de vários países da Europa. É verdade que nunca chegou a ser de atração nacional, como a de agora. Mas era indiscutivelmente mais franca. Aberta a quem chegasse, não fazia acepção de pessoas: desde que fossem masculinas, donas de muita disposição e de um mínimo de capital. Era a zona das mulheres. De mulheres da vida, se dizia. Ou de mulheres que faziam a vida, expressão que sempre achei cheia de sortilégio. Havia quem chamasse, nariz orgulhoso e torcido, a zona da prostituição, as ruas das raparigas.
Moça de família, os pais não permitiam que passasse pelos quarteirões daquelas ruas onde se exercia a mais antiga profissão do planeta, nas casas do meretrício. Perdão, do baixo meretrício, era assim que diziam, porventura a indicar a existência de um meretrício mais alto, quer dizer, mais caro mais escondido. Ou talvez se tratasse de referência saudosa ao tempo das francesas de vestidos longos e decotados da Pensão Floreaux, na rua Epaminondas, ou das que chegavam elegantíssimas e perfumadas, já madrugada alta, acompanhadas de cavalheiros de casaca, para uma ceia com champanhe no Bar Alemão ali na Marechal Deodoro à época do esplendor da borracha.
Para o povo a Zona era mesmo e simplesmente a zona, tout court, sem adjetivos. Ficava bem no centro da cidade, fraternalmente concentrada em trechos de quarteirões de ruas importantes. O eixo era a Saldanha Marinho: a mesma rua que abrigava moradias sóbrias e moradores austeros, abria-se para a vida alegre das pensões a partir da rua Joaquim Sarmento e só ia terminar lá na rua da Instalação, nos procuradíssimos bordeizinhos do último quarteirão enladeirado. Da Saldanha Marinho a Zona ganhava asas para as transversais Joaquim Sarmento e Lobo D’Almada, um pouco para o lado da Sete de Setembro, outro pouco para as bandas da 24 de Maio. Casinhas de alvenaria colonial, soalhos de madeira que cantavam.
Mal a tarde começava a cair, a Zona, qual mulher sadia que desperta e dengosa se espreguiça, dava começo aos seus macios movimentos, com a chegada dos primeiros frequentadores a flanar pelas esquinas e das primeiras caboclas, cabelos ainda molhados, ao parapeito das janelas. Só quando era já noite mesmo é que, até então mal-entreabertas, escancaravam-se as portas ou as meia-portas, sobre as quais não faltava a famosa lanterna vermelha, em cujo brilho vagamente ardia um tição de tristeza.
O canto da Instalação com a Saldanha Marinho não marcava, porém, o limite da Zona, que a atravessava para alcançar outras ruas boêmias: a Itamaracá, a Frei José dos Inocentes. Por toda a década de quarenta a Zona teve como lugar principal de bebida e de baile o Cabaré, sábio e delicioso nome que o povo encontrou para substituir o Hotel Cassina, que no mesmo e bonito prédio funcionou até o fim da nossa belle époque, frequentado só por gente de finas libras esterlinas, não importava se oriundas das algibeiras coronéis de barranco.
Ninguém pode negar que por todos aqueles anos quarenta a pensão da Lola, na Saldanha Marinho, era a melhor de todas as casas da Zona. É juízo unânime dos bons frequentadores daquelas ruas. A numerosos deles agora consultei, e de todos a Lola teve o voto, ao qual, com iniludível pena, não pude juntar o meu. Para que mentir? A verdade é que, naquelas noites, apenas estive perto, nunca tive acesso à boca de urna.
Era italiana, de sobrenome Ferdi. Alguma vez a contemplei descendo a Avenida: era elegante, alta, muito digna de leque abanando o rosto claro. Cuidava com esmero de suas moças, vigiava-lhes o asseio e a saúde. De índole romântica, sabia de cor o seu Dante, atirava de relance para a sua mesa, com abajur de centro, sempre bem concorrida, uma estrofe de Petrarca. 
Em contradição, ou talvez por coerência, a nenhuma das moças permitia histórias inventadas, choramingas, a justificar o passo mal dado que lhes abrira o caminho para a vida “Não me venham com histórias. Estão aqui porque querem, estão aqui porque gostam. Fazem muito bem. Honrem a profissão. E tratem de não enganar ninguém.” 
Lola Ferdi morreu rica e triste, no começo dos 50. Famoso advogado de Manaus, leal amigo da dona-de-pensão presume-se que amigo de todas as horas, cumpriu o que ela, em testamento, lhe ditou: herdou os seus bens. Consta que alguma parcela ficou destinada ao amparo de duas ou três de suas melhores moças já fatigadas.
Pedi a ajuda a meu irmão Arlindo Porto, que tem memória de pássaro e conhece como poucos a crônica de Manaus do nosso tempo; para um breve rol das mais famosas e populares prostitutas da antiga Zona. (Entre parêntesis, aproveito para discordar do lugar-comum que chama a quem nada esquece de “memória de elefante”. Quem tem memória mesmo é pássaro marinho, que acha de novo no espaço, no meio do vento, o seu caminho do azul.)
Os mais idosos moradores da cidade ainda se recordam, e mestre Nunes Pereira é um deles, do pessoal voltando pela Itamaracá, já quase antemanhã, quem sabe do Cassino do Jadiel na Praça da Saudade, ou de uma casa de tavolagem célebre na rua do Dr. Moreira, talvez de uma ceia regada a Borgonha no Restaurant Français. O pessoal voltava triscado. Alguns casais, de carruagem de quatro cavalos, cocheiro português bem-posto em sua cartola. Muitos voltavam mesmo a caminhar, os homens de fraque desabotoado, as mulheres de cabeça desfeita, o chapéu na mão, as fitas arrastando no vermelho da pedra jacaré do calçamento.
O Cabaré Chinelo era realmente popular. A empolgação virava a noite, com muita dança e chamego, cerveja e suor, o cavaquinho pendurado no riso da flauta. As moças (que moças aliás já não eram mais, ainda que fossem flor em botão: era um tempo em que só donzelas mereciam esse nome), as moças amavam dançar e folgar antes da obrigação do ofício, deixavam as casas de trabalho, claro que com o consentimento das donas-de-pensão e no geral sozinhas; eram raras as que já chegavam acompanhadas. 
Lá no Chinelo, elas, como no samba de Lupercinio, iluminavam mais a sala, transformavam-se em estrelas de perdição, incendiavam rixas e dores de cotovelo, de vez em quando o Chinelo se rasgava em pancadaria da grossa. Uma noite daquelas acabou dando na morte do Rosquilde Pedrosa, boêmia de muito fôlego.
Não eram as mais bonitas nem as mais bem-feitas por Deus. Distinguiram-se por especiais dons, que se compraziam em alardear ostensivamente; virtudes talvez de nascença, talvez adquiridas na prática de cada noite.
A Nise era alta, magra, até que meio ossuda. Mas cadeiruda. Tinha predileção pelos adolescentes. Pelos que estavam começando. Era das primeiras a se postar à beira do batente, ainda batido pelo que sobrava de sol, consciente de que a noite densa não lhe daria o seu repasto preferido. Feliz ela se dava, inteirinha e de graça.
A Maria Tostão era certamente a mais popular. A mais feia, a mais desvalida; muito magrinha, levava sempre na boca desdentada um batom escandaloso. Passeava em plena manhã, ao sol da Praça do Ginásio, o seu ar de angustiada penúria, toda se oferecendo. Consta que teve um filho.
Chamava-se Antonia a danada da cabocla que enfeitiçou o meu amigo de infância. A sua força encantada estava nos pés meigamente desenhados, nas pernas roliças e sobretudo num riso de dentes perfeitos. O que era um milagre, porque Antonia subiu a rampa dos Remédios diretamente para a Lobo D’Almada, mal descida do barco que a trouxera de uma beira de barranco do interior, onde até hoje quase toda moça, antes dos vinte anos, já está de boca banguela. O meu amigo ainda quis convencê-la a resguardar-se apenas para os seus braços. Ela conseguia dissuadi-lo, sorrindo, quando ele já a queria mesmo era para o seu coração. Escreveu alguns versos admiráveis, de atormentado, límpido lirismo, depois que Antonia o deixou não se sabe se por outro, nem para onde foi se sabe, porque Antonia simplesmente desapareceu, levou sumiço do dia para a noite.
Ninguém se lembra do nome dela. Porque tinha predileção pelos soldados, tanto podia ser da Polícia quanto do 27 BC, acabou por ser conhecida como a Maria Batalhão. Não se conhece a mais vaga notícia dos motivos de sua preferência. Nem é de supor que os seus frequentadores se interessassem por eles. O que se sabe é que assim como os soldados tinham a cabeça pelada à escovinha, a moça raspava os pelos do púbis. Ou da pente, no feminino, que é como as caboclas preferem.
O Chinelo fechou já faz tempo. O prédio, sobradão português de três andares do começo do século, está fechado, segregando a sua própria ruína. O tempo come a pedra e a si mesmo se consome. A Prefeitura da cidade, cujo palácio se ergue ali na mesma Praça da Constituição, terá os seus motivos, que serão talvez os do seu próprio desmotivo, para deixar o casarão morrer. 
Ainda bem que aberto continua, mantendo e confirmando, a seu jeito singelo, a noturna tradição da casa, o Bar do Quintino, velho de guerra, bem no canto da Itamaracá, funcionando, para alegria dos olhos de quem chega, numa casarona que é primor da arquitetura colonial da cidade.
Enganam-se os que acham que a Zona se acabou; ou que atualmente só em casas noturnas afastadas pela periferia da cidade, animadas com música de discoteca é que se encontraram as alegres mulheres da noite (e mais ou menos tristes do dia, como qualquer pessoa que vende mal o seu trabalho). Não. A Zona está longe de ter morrido completamente. Da Instalação para baixo, quem quiser é só ir lá, basta a noite descer, que ninguém fica na mão.
Só resta a destacar, dentre as mulheres de fama, a que também só deixou memória do apelido: xibiu venenoso. Dois cidadãos idosos, um era português de alto comércio, outro um distinguido funcionário público, morreram abraçados com a cabocla cheia de fogo num quartinho da Joaquim Sarmento. Ambos na hora da sesta.

segunda-feira, junho 24, 2019

ABCedário íntimo para uso público (20)



Por Thiago de Mello
S de Samuel Benchimol,
Cientista social amazonense apaixonado pelo Amazonas. Autor de uma obra notável, infelizmente tão pouco divulgada por motivos editoriais, publicou o seu primeiro livro aos vinte anos, “O Cearense na Amazônia”. Recém-formado em Direito, pela Faculdade do Amazonas, parte como bolsista para os Estados Unidos, de onde regressa com sua tese de mestrado: “Manaus, o crescimento de uma cidade no vale amazônico”. Hoje Samuel é dono de uma obra invejável: trinta livros, todos sobre o Amazonas. De todos os trabalhos deste nosso contemporâneo do Ginásio, o mais importante, e não só a meu juízo, é o “Amazônia, um pouco antes e além depois”, verdadeiro compêndio de consulta permanente.
Alguns amazonenses (quero me dizer entre eles) frequentemente divergem ideologicamente de Samuel e de certos aspectos de sua interpretação da história. É natural, e é até saudável, quando honesto, o exercício do questionamento capaz da superação de divergências. Mas há também aqueles (que jamais eu me inclua no rol) cujo sectarismo, enfermidade que cega, se empenha, já verão que inutilmente, em negar as virtudes deste homem de ciência que soube ganhar dinheiro (não vejo nisso especial proeza quando prevalecem as leis de cão do sistema capitalista selvagem), mas que sabe e gosta de gastá-lo em benefício do estudo da realidade amazônica, no qual o Samuel põe um amor que se encontra em muito poucos de nós.
Durante a organização do material para este livro, decidi cutucar-lhe a memória com o intuito de obter alguma informação de fonte séria sobre a migração judaica para o Amazonas. Custamos a chegar ao tema, porque Benchimol começou a relembrar episódios do período em estudo, que é justamente o dos começos de sua formação. Ele concorda com a volta ou com a vinda das famílias do interior como fator da recuperação da amazonidade do nosso povo, no período 30/40.
– Isso ocorreu com muitos – opina Samuel. Comigo mesmo, que voltamos lá do nosso querido Abunã, em Rondônia, fronteira com a Bolívia, onde meu pai tinha um seringal e lá teve dois filhos. Passou-se o mesmo com os Menezes, o Aderson, os irmãos, vindos de Parintins; com o Cariolano Lindoso, o José, vindos de Manicoré; com o Plínio Coelho, cuja família veio de Humaitá; com o Aderson Dutra, vindo de Barreirinha; com os Garcia, vindos do lado do Saracá, de Silves; com o Vasconcelos Dias, vindo de Itacoatiara, com o poeta Tufic, que veio lá do Acre, com o Elson Farias. Toda essa geração, que estudava no Ginásio ou no Dom Bosco, foi uma geração essencialmente cabocla; ou etnicamente cabocla ou culturalmente cabocla, marcada por um grande amor à sua terra.
Samuel recorda com indisfarçável emoção os seus tempos de Ginásio, cujo curso, feito sob a direção de Carlos Mesquita, concluiu em 37, justamente o ano em que me iniciava como ginasiano. Faz questão de ressaltar a amizade que unia um bom grupo de colegas, muito pobres mas muito unidos no gosto pelo estudo, sem embargo da diferença de idéia e concepção que de vez em quando os situavam em campos opostos: e era quando, em vez de afastamento, a discussão ganhava mais corpo e terminava por uni-los ainda mais. Regressam-lhe à memória as figuras jovens de Arthur Pucu, José Ivan de Hugo e Silva, Coriolano e José Lindoso, Salignac de Souza, Jauari Marinho, Francisco Alves dos Santos, Agnello Bittencourt Filho, Moysés Israel, Hamilton Cidade de Araujo, Plinio Coelho.
– Pobres, nos ajudávamos uns aos outros, através de uma espécie de biblioteca circulante. Até que um dia – relembra Samuel com os olhos iluminados – o professor Agnello Bittencourt, mestre cuja memória perdura em nós como um grande exemplo, colocou sua riquíssima biblioteca à disposição de seus alunos, que éramos recebidos como filhos na sua casa da Dr. Moreira. A propósito, quero te chamar a atenção para um fato raramente lembrado: foi o professor Agnello que teve, no seu livro “A Terra e o Espaço Amazonense”, a premonição do petróleo no rio Juruá.
Como o petróleo e o gás lá do Juruá são matéria da grande inquietação atual de Samuel, tema por sinal de um livro seu que, sempre mal distribuído, acaba de ser editado em Manaus, tenho que achar caminho delicado para trazê-lo de retorno às décadas de nossa juventude. Ele retorna com uma contribuição importante:
– Aquele período que tu chamas de reconquista de amazonidade, que implicava a preocupação de valorizar e estudar as coisas da terra, numa espécie de volta às origens, acabou por dar origem ao movimento do Glebarismo. Carlos Mesquita era glebário. Ramayama de Chevalier (O Circo sem Teto da Amazônia), Alvaro Maia, Genesino Braga, Aldo Moraes – eram glebários. A palavra gleba era pronunciada com unção, reflexo do empenho no estudo das coisas da terra, sustentado pela preservação de nossos valores culturais, sobretudo pelos adeptos do movimento vindos do interior.
Àquela época, concluído o curso ginasial, iniciavam-se os estudos preparatórios dos cursos universitários. O Ginásio mantinha os cursos pré-jurídico, pré-politécnico e pré-médico, com duração de dois anos. Em 1940 esses cursos foram extintos pelo MEC. Foi quando a direção do Dom Bosco, em gesto que até hoje conta com o reconhecimento de juristas, magistrados e mestres em Direito no Amazonas, decidiu instituir o curso pré-jurídico, preparatório do vestibular, prestado aqui na nossa nobre Faculdade e de cujo exame constavam as seguintes matérias: História da Literatura, Filosofia, Latim, Português, Geografia, História e Biologia, em provas escritas e orais. 
Convém deixar aqui um registro, desses em aparência insignificantes, que costumam cair no esquecimento: para manter o curso pré-jurídico, o Colégio Dom Bosco, então dirigido pelo Padre Stelio, apesar da boa renda que lhe advinha dos cursos frequentados por gente em geral baluda, em regime de externato e internato, começou a enfrentar aperturas financeiras. Como os costumes e os valores do tempo eram outros, prontamente mestres já de boa nomeada dispuseram-se a ensinar gratuitamente. Entre outros, Mario Jorge Couto Lopes, Arthur Reis, Leopoldo Peres.
Samuel interrompe a amena conversa que foi assumindo forma de entrevista, entremeada de relembranças em voz alta, para atender a um telefonema num dos vários aparelhos eletronicamente controlados sobre sua principal mesa de chefe de empresa, onde se envolve com números de muitas cifras e toma decisões cujas implicações talvez nem ele próprio domine completamente. Sozinho com ele na vasta e sóbria sala, não pude me impedir de captar alguns lances do diálogo telefônico que versava sobre guias de exportações e outras prendas de papel, de permeio às quais os milhões apareciam, numerosos como as estrelas de cidade poluída, como os detalhes menos importantes da questão.
Perspicaz como ele só e, em reação a meu pedido de concluirmos nosso trabalho sem interrupção, chamou a eficientíssima secretária, filha por sinal de um japonês radicado em Barreirinha, e ordenou que não nos perturbassem. E retornou a conversa bem a propósito do telefonema:
– Virei empresário por acidente. Fiz todo o meu curso de Direito como despachante de bagagem da antiga Panar do Brasil. Acordava todos os dias às duas da madrugada e trabalhava no aeroporto até as sete da manhã. Antes, já aos 15 anos, eu trabalhava ensinando Português na Escola Ruy Barbosa, do Hamilton Cabral, depois na Escola do professor Vicente Blanco ali na Miranda Leão, junto com o poeta Áureo Mello.
Só então é que o Samuel entrou na matéria do meu interesse maior, começando pelas andanças do velho Benchimol.
– O velho nasceu em Aveiros, no Tapajós. Imagina que o avô era o correspondente do Times em Itaituba. Veio para o Amazonas aí por 1910 e foi logo para o interior, lá para o Abunan. Trabalhou como regatão e com a borracha. No ano 20 perdeu tudo, ficou na mais extrema miséria. Foi com toda a família para o Abunan, só voltou em 1931. A minha mãe era de Tefé, a avó, judia portuguesa, casada com o Siqueira, piloto fluvial. Aqui em Manaus, o meu pai começou a trabalhar como guarda-livros de várias firmas. Foi quando conhecemos a família do professor Agnello. Dona Zulmira e minha mãe tiveram o mesmo números de filhos: oito. O velho era sócio do Otavio Reis num seringal. Quando faliu, entregou tudo o que tinha ao J.G., as casas, as terras, tudo. Porque ele era financiado pelo J.G., embora legalmente ele não estivesse obrigado a entregar. Mas ao cabo de vinte anos acabou pagando tudo o que devia ao seu financiador, depois de trabalhar incansavelmente nos livros das firmas Sarfaty, José Tadros, Roberto Daou, Oliveira Barbosa, Solon Benemon, enfim, ele tinha umas dez ou doze escritas. Uma noite o velho Benchimol reuniu os filhos e teve com eles uma conversa que não demorou: “Só tem uma solução para sairmos da pobreza: é vocês estudarem. Todos vocês vão se formar”. Disse e cumpriu: educou os oito filhos, a todos deu curso superior.
Antes de empresário, sociólogo e professor universitário, Samuca quis tentar a política, que, como antes, continuou a ser, para a maioria dos que a escolhem como carreira, um simples meio de vida. Mas se deu mal, ainda que bem. Era o tempo dos tuxauas Álvaro Maia e Severiano Nunes. Samuel era do PSD, mas como não lhe sobrou vaga, concorreu pela UDN, qual a diferença que fazia? Teve oitenta votos.
Resumo os dados que me dei o Samuel sobre os seus irmãos judeus no Amazonas:
– A presença de amazonenses de origem judaica naquele período foi marcante. Portugueses judeus, originários de Tanger e Marrocos, chegaram (talvez expulsos, não se sabe bem, pelo sultão de Marrocos) e foram se implantar no interior. Todos. Ninguém ficou em Manaus nem em Belém. Os Sabbá são a família judaica mais antiga da Amazônia, estabeleceu-se em Cametá aí por 1820. A família Serruya foi para Santarém. Os Benchimol foram para Santarém e Itaituba. Os Assayag para Parintins. Os Siqueira para Tefé. Os Peres para Itacoatiara, um deles, o Isaac, foi o grande prefeito que o município já teve. Os Ezaguys também foram para lá. Os Benzecry escolheram Cametá. Todos, enfim, foram viver e trabalhar no interior. Foi uma migração rural e sobretudo familiar. Todos chegaram com as famílias. Primeiro foram ser regatões. Depois, seringalistas. Na época da decadência, todos perderam praticamente tudo. A maioria foi à falência. Só então é que vieram para Manaus.
Na chamada grande depressão, ingleses, alemães e muitos portugueses que aqui tinham comércio, emigraram. Pouquíssimos os que permaneceram. Os judeus ficaram – para recomeçar. Ou como empregados de comércio, ou com pequeninas indústrias. Foi por essa ocasião que se fizeram exportadores e os primeiros a industrializar os produtos nativos: borracha, castanha, pau-rosa, piaçava, cumaru; processavam, descascavam, lavavam, beneficiavam. O I.B. Sabbá foi o primeiro lavador de borracha. Depois teve serrarias, como a da rua Isabel, e a Usina Vitória, no antigo Monte Cristo. Os Benzecry foram curtidores de couro, no curtume canadense ali na Casa Branca, no Rio Negro. O Sabbá partiu para a industrialização da essência do pau-rosa, de fibras nativas e da juta. Depois é que veio a aliança com o Adalberto Vale. Mas foi o Sabbá o verdadeiro pioneiro da industrialização, até chegar, mas isso já na década de 50, à refinaria de petróleo. O grande aliado, o grande cérebro do Sabbá foi o Moysés Israel, sobrinho dele.
S de Sebastião Bogea Saint-Clair, o Saint-Clair funcionário das Águas daqueles bons tempos e depois diretor de um daqueles vários Institutos de Aposentadoria. Até hoje me oponho com vigor a quem diz, relembrando as suas admiráveis tiradas, hoje incorporadas ao folclore da cidade, que o Saint-Clair era um mentiroso, que tinha o fraco de contar mentiras. Absolutamente. O Saint-Clair foi simplesmente um notável inventador de histórias, um extraordinário mitômano, dotado do talento de compor, ali na hora, em cima da circunstância, a propósito de um episódio, acontecimento público, ou de algum fato narrado em roda de amigos, uma história urdida com minúcias, com seguimento lógico, embora, é verdade, não fosse ele um criador, preferindo fugir sempre ao senso comum, às fronteiras das convenções, e enveredar, ajudado pela voz grave e forte que assegurava veracidade ao que dizia, pelo seu campo predileto, o da realidade mágica. 
Tinha fome de fantasia, que era o seu pão de cada dia. Mal acordava, antes mesmo de tomar o bonde para o trabalho, ia ao vizinho ou ao taverneiro, contar uma história quem sabe fabricada em sonho, talvez instantaneamente ocorrida pela visão primeira de seus olhos mal abertos. O espaço não dá para uma antologia, mas vale a pena registrar a sua chegada a Manaus, num dos hidroaviões do Loide Aéreo, e mal desembarcou foi logo contando com o seu vozeirão que o avião voara tão alto, mas tão alto, que a certo instante começaram a ouvir-se vozes, eram muitas vozes cantando, cantando, era uma maravilha, eram os anjos cantando Ave, ave, ave Maria, lá bem juntinho do céu. 
Houve uma ocasião em que uma falha nas máquinas do bombeamento da Ponta do Ismael deixou a cidade sem água. O Saint-Clair publicamente defendia os serviços das Águas: “Não temos culpa que uma sucuriju descomunal tenha penetrado pelo cano mais grosso e entupido completamente a bomba”. Meu pai costumava, mais por troça que por implicância, moderar os ímpetos inventivos do seu amigo, correto e digno em todos os demais aspectos de sua vida. Quando o mitômano chegava à repartição espalhando a notícia de que acabara de ver no mercado um tambaqui de mais de seis metros, meu pai se limitava a uma advertência: “Deixa por menos, Saint-Clair”. E o amigo cedia, reduzia o tamanho do peixe. 
Uma vez houve, todavia, que o Saint-Clair não transigiu, nem deixou por menos, quando um domingo de manhã ele contava para uma roda de amigos (era um tempo de muita saúva estraçalhando as roseiras dos jardins) que, ao acordar, foi descer da rede e viu que o chão estava completamente recoberto de saúvas, era como um tapete que estremecia brilhando, de mais de um palmo de altura de saúvas avermelhadas. Meu pai se aproximou a tempo de pegar o final do relato e limitou-se à advertência habitual: “Deixa por menos, Saint-Clair. Um palmo de saúva já é demais”. “Está bem, Thiago, eu deixo por meio palmo. Mas por menos de meio palmo, não deixo, então é melhor logo que não tenha saúva nenhuma, nem vale a pena que tenha.”

ABCedário íntimo para uso público (19)



Por Thiago de Mello
R de rua do Dr. Moreira, que antes de ter as suas casas demolidas e desfiguradas para adaptar-se, de ponta a ponta, às exigências da atração comercial, com suas vitrinas onde os artigos importados se acumulam em desordem, os letreiros coloridos desenhados sem arte, as fachadas remodeladas às pressas – era uma das ruas mais bonitas e de melhor história e tradição na vida da cidade, onde nasceram e viveram amazonenses da melhor cepa, cuja memória é tão mal servida por quem dela tem a obrigação de cuidar. 
Se nada se faz por ela, como é que o proprietário do atual Hotel Floriano, por exemplo, pode lá ter interesse em saber e, depois de ter a informação, até usá-la para promoção publicitária de seu negócio, divulgando que aquela casa foi residência de um governador do Amazonas, o coronel Antonio Bittencourt, por ele construída em 1914? Para mim, era a casa do professor Agnello, cuja esposa, a professora Zulmira, Uchoa de solteira, sempre nos servia um refresco quando lá íamos consultar a biblioteca do mestre.
Era uma das ruas pelas quais mais gostava de caminhar, fim rosado de tarde, sempre que, já escritor, vinha todos os anos a Manaus. Que admirável conjunto de sobrados, construídos com cuidados de acabamento para durar a vida inteira! Deles parece que atualmente só continua erguido o da família Nery, aliás habitado ainda por um dos descendentes do antigo governador, acho que o Guilherme ou o Pery.
Na esquina com a Quintino Bocayuva funcionava o então famoso Instituto Universitário, fundado e dirigido pelo José Chevalier Carneiro de Almeida, pai do Ramayana, cujo nome completo era Walmiki Ramayana Paula e Souza de Chevalier. Muitos de nós estudamos o admissão no colégio do velho Chevalier, o responsável pelo curso era o professor Osiris, a quem com muito custo perdôo a palmatória. O vozeirão do velho Chevalier, durante as aulas, era ouvido pela rua inteira. Fundador do escotismo, como em algum lugar já referi, vestia-se ele próprio, que era de corpo avantajado, de escoteiro com chapéu e tudo. 
Naquela casa morou durante dezoito anos, imaginem só quem, o cientista Barbosa Rodrigues, um dos mais competentes estudiosos da natureza amazônica, cuja obra merece o respeito de todos aqueles que, no mundo inteiro, sabem dar valor às coisas sérias. Dentro das mesmas paredes nasceram o Arthur Cesar Ferreira Reis e o próprio Ramayana. Hoje é apenas a Pensão Carrilho, a cujo proprietário, que nada tem a ver com o descaso oficial pela memória da cidade e a quem só desejo muitos hóspedes, quero pedir que mande afixar bem ao lado da porta, uma sóbria placa de bronze (até me ofereço para ajudá-lo na redação do texto), que informe aos apressados transeuntes daquele miolo da zona comercial, o nome dos antigos e ilustres moradores do imóvel. Do velho Chevalier se pode afirmar que foi um dos homens mais apaixonados pela juventude da sua terra.
Na rua morou muita família que deixou nome na cidade, da qual ainda participam, com destaque, vários de seus descendentes. Contei com o auxílio da memória do bom Ulysses, o qual, como o Agnelinho, o Pedro e o caçula Benjamim, ali nasceu, para trazer de volta e a eles dar bom abrigo nestas páginas, alguns dos amazonenses que fizeram a vida da rua desfigurada pelas impiedosas exigências de um desenvolvimento econômico, cujos frutos nem toda a cidade prova.
O Ulysses começa pelo começo e me garante que quase todo o quarteirão pertencia ao velho José Bittencourt, pai do Antonio que foi governador e avô do nosso professor Agnello. Interrompo para adverti-lo que ele já está cansado de saber que meu interesse se prende ao período 30/40, justamente o ano que marcou o seu retorno a Manaus, dele, que era prefeito no Paraná e veio rever sua cidade, quando se vê chamado para ocupar a cadeira de geografia, no lugar do pai, que acabava de ser designado pelo Governo Federal para dirigir o Recenseamento de 40 no Amazonas, e o Ulysses foi ficando e foi gostando do ofício, que exercia com prazer só comparável ao gosto com que redescobriu os encantos morenos das moças da cidade, por isso mesmo é que se casando com a santa e linda Fernanda. 
Ulysses refuga relembranças com fumaças de indiscrição (com redobrado mas delicioso vigor, quando lhe informo que o nosso querido Jary Botelho me garantiu que várias noites viu ali no canto da Zé Paranaguá com a Dr. Almino, o nosso então elegantíssimo professor de namoro firme com a sensacional Crisálida, que depois foi Miss Amazonas).
Ulysses faz de conta que não relembra nada disso, faz é questão de lembrar orgulhoso que seu antepassado, o alferes José Ferreira Ribeiro Bittencourt, foi um dos assinantes, em 1852, da emancipação política do Amazonas. E que o irmão do alferes, Francisco Publio, além de professor de francês, foi dono da primeira foguetaria de Manaus, chegou a secretário de Estado, mas enriqueceu foi com os rojões.
Concordo que incluo no texto, que não é de historiador, esses informes que lhe são gratos e que noutro contexto podem até ser de utilidade, desde que percorramos juntos a rua da sua meninice.
De quem primeiro ele se lembrou foi de um mulato casado com uma francesa, o professor Garcia, dono de um colégio ali na rua que preparava alunos para concursos. Ensinava todas as matérias, a todas as horas do dia ou da noite. Vejo depois a casa do maestro Rebelo, cujos filhos todos foram músicos, o mais famoso deles, ainda hoje, o pianista e compositor Arnaldo Rebelo. 
A casa do Abílio Nery, irmão do Silverio que foi governador e pai do Paulo, do Guilherme e do Pery. Também morava lá o velho Hildebrando Marinho, pai do Jauari; o velho Isaac Benchimol, pai do Samuel e do Saul (embora o Samuel me tenha revelado que os Benchimol moraram na Q. Bocayuva, sendo dos Bittencourt vizinhos só de quintal); a família Frazão Ribeiro, cuja figura de mais fama ficou sendo a Elda, quando eleita Miss Amazonas, recebida de regresso pela cidade em festa cívica, com tropa militar vestida de gala; a família Lins, cujo chefe, João Teófilo de Sá Cavalcanti, avô do Ruy Lins, era fiscal da Prefeitura do Mercado; morava o coronel Medeiros, criador de galo, pai da Ilma Thoury, fundadora da Escola Royal de Datilografia, que funcionava, sempre muito frequentada, ali na mesma rua; e a família Carrera, da qual descende o nosso atual senador. 
Deixou para o fim a Pensão Vaticano, de lugar garantido na história da cidade, onde se hospedavam de preferência os acreanos que chegavam a Manaus, alguns deles estudantes, que faziam da Vaticano uma espécie de república, muitas noites transformada em campo de estrepolias boêmias.

domingo, junho 23, 2019

ABCedário íntimo para uso público (18)



Por Thiago de Mello
Na casa do seu Gumercindo (outro funcionário das Águas, creio que chefe de turma de trabalhadores da rede pública), eram famosas as festas de aniversário, preparadas e organizadas com antecipação de alguns dias por dona Alice, sua esposa, mãe da Anita, do Armando, do Alberto e da Anahyde, a única da família a quem agora reencontrei morando na mesma casa, só que amodernada e sem o belo de antigamente. O que não precisou de reforma foi a meiguice da menina.
Na vasta sala da frente, reuniam-se grandes e pequenos para as brincadeiras de salão, comuns às comemorações de aniversário da época. As principais eram a de berlinda, a do casamento oculto, a do anel, a de corrida em redor das cadeiras, a da passagem da revista ao batalhão.
Na da berlinda, uma pessoa era escolhida, moça ou rapaz, retirava-se da sala, enquanto um mestre-de-cerimônias perguntava a cada um dos brincantes porque aquela pessoa estava na berlinda e retinha na memória a resposta de cada uma. Os motivos dados eram os mais diversos, de elogio ou de implicância, rara vez eram indiscretos. Pode vir, gritava o chefe da brincadeira. A pessoa vinha lá de dentro, ouvia a enfiava de razões de sua berlinda e então escolhia aquela que mais lhe tocava. Era revelado o autor, o qual, por sua vez, passava à berlinda.
O casamento oculto era a que mais risadas provocava. A moça ia lá para a outra sala, de onde podia ouvir e ser ouvida. Quer casar com este?, perguntava o mestre da festa. Não. Por quê? Porque é muito feio, porque usa calça pega-marreca, porque não gosta de estudar, vinham lá de dentro as respostas. De repente vinha um quero, porque é muito educado, porque é bom com os amigos. O casamento começava e terminava num abraço sob as palmas da sala.
Além da mesa farta de sequilhos, olhos de sogra, babas-de-moça, bolos, pudins e compotas, de vez em quando corriam a sala bandejas com copos de guaraná e principalmente de aluá, bebida feita com cascas de ananás ou abacaxi deixadas em fermentação durante vários dias. Não faltavam os números musicais: moças e rapazes cantando ao violão as valsas e as modinhas de moda.
No final dos 30, também moravam na casa a dona Edna, irmã do seu Gumercindo, que enviuvou jovem: o marido, Antenor Rocha, morreu assassinado em circunstâncias nunca bem esclarecidas, quando participava, no interior da floresta, de uma missão parece que da Comissão de Limites, lá pelas brenhas do Rio Branco. Dona Edna tinha dois filhos, o Herivelto, que morreu moço e a encantadora Zenira, que depois tanto trabalhou pelo ballet no Amazonas.
Pegada ao portão do Almoxarifado moravam os Alves de Mello, seu Francisco Augusto e dona Julia, que era espanhola, cheios de filhos. A Noemia, de quem já andei lembrando, professora do grupo escolar Nilo Peçanha. A Virginia, hoje casada com o médico Platão Araujo. E a Esperança, de todas a única a quem reencontrei fiel à rua e à casa. Os meninos eram o Augusto, o Zeca, o Paulo, além de um filho-de-criação, ou parente próximo, o Virgilio, louro fortão, de corpo cheio de sardas, a quem a rua alcunhava de Virgilio Barata, de quem não esqueço as proezas de acrobacia num circo que ele mesmo fundou, com a ajuda do Tamar e do João Coroca, nos fundos do quintal da saboaria do J. Benayon, instalada do outro lado da rua. 
O cirquinho, armado num pequenino terreiro, com os galhos das árvores fazendo as vezes de lona de cobertura, teve inspiração num circo de verdade que, aí por 1935, visitou Manaus e foi, por alguns dias, a sensação da cidade, que por primeira vez via leões e elefantes de verdade, além de um palhaço sensacional, grande estrela da companhia.
Do outro lado da rua, no meio da qual duas enormes mangueiras se irmanavam às famosas mariraneiras, todas desaparecidas, já contei que na casa do canto da Zé Paranaguá morava a família Barroso. Das moradias vizinhas a memória só guarda a figura do Frejal, um rapaz que padecia de enfermidade neurológica que o fazia caminhar quase correndo e com o corpo levemente inclinado para diante: mesmo inseguro e vacilante, o Frejal não perdia uma oportunidade de chutar uma bola que lhe chegasse por perto, sempre de bico. E guardo o som de uma flauta noturna, tocada por um cidadão magro e solitário, cujo nome nunca aprendi.
Casa de muita gente era a da dona Naninha, sogra da dona Belinha Guimarães, irmã da Zuleika e cunhada do Hildebrando Marinho, então figura de proa de Manaos Harbour e pai do Jauari Marinho. Na casa morava também o aluno do Grupo Escolar José Paranaguá que viria a ser um dos melhores ficcionistas do Amazonas: o escritor Anthistenes Pinto. Dia que a rua não esquece é o da morte, na mesma noite, de dois irmãos que ali residiam, filhos-de-criação: a Iracy e o Alfredo, consumidos pelo tifo. Mas também guarda a recordação boa do casamento da Zuleika, moça prendada e de muito bom piano, com o viúvo seu Leal.
Sucediam-se as casas da família Cajui: da dona Josefa Silva, mãe do Novinho, do Adalberto e do Osvaldo: da família Macedo, um de cujos filhos, o Oyama, foi nosso bom colega de Ginásio. A última casa era a do seu Pantaleão.
A rua Isabel também serviu de morada à família Zuany, os descendentes do velho corso Zuany. Intacta no tempo, a ternura de Ana, que nasceu com o dom de repartir a alegria.
Refaço a viagem pela Quintino Bocayuva, uma das ruas que integrava o universo da nossa infância, pela mão amiga de um dos treze filhos (sete mulheres e seis homens, todos vivos e vendendo gosto de viver) do bom varão Manoel Feliz de Mendonça: Iacy, linda normalista, professora formada pela Escola Normal, Pucu por parte de mãe, dona Herculana, e que hoje leva feliz o sobrenome do marido: Moura Tapajós, médico a quem esta cidade deve tanto e ser humano admirável, a quem devo eu a prenda da amizade.
Nas nossas andanças e aventura não ultrapassávamos a rua Dr. Almino, em cuja esquina sempre morou o seu Alberto Cabral, pai de muitos filhos de dois matrimônios. O Albertinho, um dos meninos da rua, virou Alberto Simonetti, advogado famoso. Não me lembro do nome do vizinho, mas recordo o apelido do filho, o Alicate, mecânico de mão cheia. De pegado, era um terreno enorme (o terreno ainda está lá) em cujo centro havia uma carpintaria de um português, que se acabou, mas deixou a fama de Quatro Rodas, apelido do melhor marceneiro daquelas bandas. 
Depois vinha a casa da dona Teresa Cordovil, de quem se recorda a carinhosa paciência com que recebia o marido, que sempre chegava em casa mais para lá do que para cá. O pessoal daquele tempo sente saudades do Laci, a filha que se fez professora e foi embora para o Rio. Morava ao lado o dr. Nogueira da Mata, cujo pai, português, foi comandante de embarcação. A casa ainda está lá, com o jeitão antigo, habitada pelo filho, o Geraldo, e sua família. Como também ainda lá se encontra, o jardim da frente bem cuidado, com o seu gradil e portão de ferro, a casa amarela do tempo em que Iacy era solteira. 
O morador do lado, que parava pouco em casa porque vivia viajando, era o comandante Mendes, cuja embarcação, motor movido à caldeira, fazia a linha do Careiro, transportando passageiros e sobretudo rebocando a fila infindável de canoas. Chegamos afinal à casa da esquina alta, a do seu Azevedo, que era o dono do Canto da Fortuna, ao lado do Mercado de Peixes. Uma de nossas brincadeiras, à luz do lampião que pendia do poste de ferro, era saltar da calçada para um bueiro, uma boca-de-lobo, construção de pedra que chegava à altura da calçada, uns bons três metros acima do nível do chão enladeirado, mas dela afastada bem mais de um metro. A gente corria para tomar impulso, era bonito ver as saias das meninas esvoaçadas.
Do lado fronteiro, a primeira casa era do seu Tidoca, casado com dona Clarisse. Dos filhos homens, ganhou fama o Otávio porque era doido por briga; das moças, a Caboca, pela boniteza macia.
Outros moradores do quarteirão: o seu Severino, vendedor ambulante de redes, pai do Luiz, excelente violinista, fez boa carreira no Banco do Brasil. O seu Pio, pai da Zezé, da Geralda e do Azamor, era chefe de disciplina na Escola Normal, muito temido pelas normalistas. O taverneiro português seu Manoel, casado com dona Nazareth e pai de uma enorme filharada. A taverna, de três portas, ficava na parte da frente da casa que tinha um quintal cheio de árvores fruteiras, ao qual, por bondades do coração, o taverneiro nos dava acesso. 
Seu Manoel era bom e forçudo: um dia um automóvel, dos raros da época, ao dar marcha-á-ré, imobilizou sob uma roda traseira uma menina, sem chegar a passar-lhe sobre o corpo. O chofer freou o veículo, enquanto a criança gritava e a rua se alvoroçava. De repente surge o seu Manoel e sozinho levantou o automóvel pela traseira, liberando o corpo apenas machucando da meninazinha.
Merece destaque, pela imponência, o sobrado que se erguia em frente à taverna, habitado pela família Figueiredo, cujos cinco filhos eram conhecidos na vizinhança pelos fonemas que a consoante D formava com as cinco vogais repetidas: Dadá, Dedé, Didi, Dodó e Dudu. Só Dedé morreu. Dodó e Dudu são hoje ilustres Figueiredos da cidade. A propósito, me garante a Graci que uma das moradoras da Vila Pereira, que ficava ao lado da estância, a dona Santinha (mãe da Isailda, que acabou sendo poderosa mãe-de-santo) dava uns chinfrins, quer dizer uns arrasta-pés, todo sábado lá na Vila. Pois bem: lá o Dudu já dançava, ainda estudante, com a Regila, hoje sua esposa.
O quarteirão da rua Isabel entre a José Paranaguá e a Lima Bacury já ia ficando esquecido. É por sinal o trecho da rua onde se encontram, ainda hoje, alguns dos sobrados mais bonitos, construídos, frontão de azulejos, aí por 1910. Num deles morou o Acurcio Maia. Noutro, o comandante Frota, que fazia a linha dos vaticanos pelo médio-Amazonas, pai da Isa e da Junis, eram magrinhas, me lembro delas vendendo carambolas numa cesta. O sobrado passou depois para as mãos do dr. Felismino Soares.
Também ali morou tradicional família desta cidade: a dos Trigueiro. Um dos filhos maiores chegou ao comando da Polícia Estadual. Outro, o Francisco, para nós o Chico Trigueiro, a quem ainda não tive a alegria de rever, foi meu colega de turma e grande goleador do time de futebol do Ginásio.
Da Lima Bacury, quero trazer, para representa-la, a humilde a bonita família dos Bonatti. Para dois deles faço questão de gravar, com um ramo de mais límpida do rio Andirá, um sinal do respeito e da ternura que a vida me ensinou a ter por eles. Um é o Adílio, ardoroso e destemido no nosso tempo de Ginásio, hoje um engenheiro empenhado sobretudo na construção do edifício do futuro do nosso povo. O outro é o Bonatti que comigo foi menino de beira de igarapé: o Bonatti do Teatro Amazonas, ao qual deu, como servidor modesto, durante longos anos, o melhor de sua vida e de seu amor.
Da rua Dr. Almino o bom Marciano taverneiro já deu notícias de primeira água. Cabe, contudo, um pouco da história do casarão que deslumbrava os nossos olhos de meninos e que, ainda hoje, admiravelmente bem conservado pelos atuais donos e moradores, se constitui num dos melhores exemplos da arquitetura da Manaus antiga, marcada por influência europeia. Fica do lado direito de quem desce, já quase chegando à Quintino Bocayuva. Foi construído nos primeiros anos do século por um negro vindo das Alagoas, ou do Sergipe, chamado Ascendino Barros. Era contador, não se sabe se de diploma, enfim cuidava da escrita dos livros contábeis, e se fez empregado da Casa Canavarro, de onde saiu, para ter comércio próprio, de sociedade com o José Soares, fundador da casa que até hoje leva o seu nome. 
Nos anos 20 o sobrado foi adquirido pelo dr. Xavier da Albuquerque, que pouco tempo depois o vendeu a um português também associado ao Jota Soares, o comerciante Anibal Beça, casado com Dona Mercedes Magalhães. Um filho deles, o Alfredo Antonio Beça, casou com Clarice, linda filha de Luiz Maximino Corrêa, um dos maiores empresários da época. A casa continua com a família Beça: nela foi que Maria do Céu, filha do proprietário, se casou com Emidio Vaz de Oliveira, fino português dono de prestígio e poder na vida da cidade, que o tempo só fez alargar. O casal não tem filhos. Mas os dois souberam construir um secreto parentesco com a multidão de passarinhos que fazem morada no jardim do palacete, em cujo frontão aparecem as iniciais AB, e quase todo mundo pensa que se referem a Anibal Beça, mas são as iniciais do negro Ascendino Barros.
Termino com o quarteirão da Quintino Bocayuva que descia da taverna do seu Emidio, e cujas modestas casas, hoje guarnecidas de grandes metálicas, mal podem respirar debaixo da ponta de concreto que as oprime. Ao lado da taverna, morava o seu Adolfo Pires, pai da Apolônia, gorda bondosa e janeleira e do Tibiriçá, que atualmente dirige importante companhia de aviação. 
Para a casa ao lado, alugada ao velho Abdon Said, nossa família se mudou, quando saímos da José Paranaguá. De tudo que a vida nos deu durante a temporada em que residimos naquela casa, gravou-se na memória o primeiro contato direto com a morte. Com meus pais e minhas irmãs maiores, vi pela primeira vez uma pessoa morrer: o meu avô paterno Gaudencio José, o longo corpo estendido na rede na sala de visitas, o olhar doce passeando o seu amor pelos parentes. Uma semana depois, na mesma casa, morria o meu outro avô, de quem eu fora guia quando cego. Em poucos dias perdi dois grandes amigos, que, cada um a seu modo, sabiam se fazer meninos para me ajudar a crescer, a me fazer homem.
Obtenho do meu amigo Waldir Garcia, figura que ocupou cargos de importância na administração do Estado, e que também foi menino da rua Isabel, onde morou com sua tia Ana, casada com o João de Azevedo, valiosas informações. Sua memória reteve, por exemplo, a mania que tinha o comandante Frota, seu vizinho, pelos galos de briga, aos quais dedicava cuidados especiais e em cuja rinha, armada ao fundo do quintal, reuniam-se “galeiros” de fama, um deles o marchante João Magalhães. 
Também da memória do Waldir foi que desencavei o nome do taverneiro da esquina da Lima Bacury com a Isabel: era o seu Rodrigues, português bonachão, que desrespeitava muita vez a consigna afixada em letras bem graúdas numa tabuleta na parede, “Fiado só amanhã”, para ceder mercadorias a crédito aos moradores dos casebres humildes da beira do rio. 
Waldir guardou o nome da moça cuja beleza fez fama na época, Amenahide; mas foi incapaz de recordar (nem ele nem tantos dos moradores das redondezas, a quem indaguei) o nome de moça já de bom tope, dona de doce jeito de avançar, cabeça erguida, segura de suas pernas altas, mas cuja atração maior, à qual não resistia o olhar mais sossegado da rua, era o busto empinado e perfeito que a natureza lhe deu. Peito de aço, era como a rua a conhecia.

ABCedário íntimo para uso público (17)



Por Thiago de Mello
Da casa em que moravam dona Lídia e seu Sebastião Brito, trabalhador da turma de encanadores da rede hidráulica (populares figuras da cidade), restam só os resíduos dos escombros. Também em ruínas estão as paredes que serviram de moradia a um dos casais mais queridos e respeitados de toda a redondeza: os velhos Bayma, seu Felix e dona Maria. O belo jardim de dona Maria, a cujo cuidado ela dedicava um pedaço grande de suas manhãs, atualmente é um chão de cimento que serve de garagem. 
Os Bayma eram um casal de negros pobres chegados do Maranhão antes da Primeira Guerra Mundial. Trouxeram o filho primogênito, o João, com 4 anos e foram morar na Cachoeirinha. Aqui nasceu a Jória, nasceu e viveu, e até hoje vive com o bom do seu marido Godofredo. Porque entre João e Jória nasceram e morreram sete filhos. Seu Felix já chegou à rua Isabel para ser, como o foi até morrer, o zelador da Usina de Esgotos, erguida com talento pelos ingleses no começo do século e que nunca chegou a funcionar; sólida e imponente construção que ainda hoje, posto que inteiramente devastada, pode ser contemplada atrás da rua Isabel, de frente para o igarapé, com a sua elegantíssima chaminé de ladrilhos refratários vermelhos, a boca adornada por uma renda de ferro.
A chaminé, nos dias da nossa adolescência, já não funcionava: era morada de andorinhas (aquelas andorinhas em cujo estremecer das asas meu avô materno Joaquim Mitouso, cego de catarata, sabia reconhecer, valendo-se das informações que eu lhe transmitia, prenúncios de chuvarada.). Mas no interior do edifício, guarnecidos por grossas paredes de pedra de cantaria e entrevistos através dos espessos cristais dos harmoniosos janelões, lá estavam – intactos, perfeitos, reluzentes de limpos – os metais das máquinas do seu Felix. 
Porque era assim que o velho negro as chamava – “as minhas máquinas”, expressão da responsabilidade e do carinho que tinha no trato cotidiano com elas. Era vasto o terreno que circundava a Usina, todo cercado de altas grades de ferro, de acesso interditado a estranhos. Mas o zelador, de andar sossegado, com um inseparável boné que lhe protegia a calva lisa cobreada, fazia vista grossa, para a criançada da rua, cujos quintais faziam limite com o Almoxarifado. Porque era este, para nós, o nome do lugar, jamais foi Usina, e cuja entrada principal, um largo portão de itauba, ficava lá para o fim do quarteirão. 
O portão só se abria quando saía ou chegava o automóvel do diretor, um Ford de bigodes e capota de lona creme, que ali tinha a sua garage e a moradia do seu chofer: o seu Josias, mulato finíssimo de trato. Um filho dele, caboquinho troncudo, uma tarde caiu dentro de um dos tanques enormes e fundos, revestidos de chapas de ferro, eram uns quatro ou cinco tanques daqueles, retangulares, com maquinarias lá por baixo, suponho que bombas; eram destampados, porém grossas correntes serviam de grades; ficar espiando lá de cima o fundo deles, um tempão grande sem nenhuma palavra, era um de nossos encantamentos. 
Jamais esquecerei a operação de salvamento, sob o comando do velho Felix. Amarrou uma corda no peito largo e por debaixo dos bíceps de aço do seu filho João Bayma, também operário de encanação de água, que foi se arriando rente à parede, sustentado pelos pulsos do velho e do pai do menino, logo alcançou a água onde aflito se debatia, já cansado, o nosso companheirinho. Para alçar o homem e o menino abraçados foi muito mais difícil e mais demorado; em compensação já eram muitas, as mãos, muitos eram os músculos e os corações que de repente foram chegando, e num único empenho solidário, juntos forcejavam para erguê-los até a borda. 
Não há cinza de tempo que embace a limpidez da emocionada alegria iluminando o semblante de todos no momento em que o negro João Bayma entregou a criança ao seu Josias e, em seguida, estendeu um braço para fixar a mão no batente externo da borda: mas foi a mão, foram as duas mãos cheias de amor do velho Felix Bayma que agarraram a do filho para ajudá-lo a subir. Retiradas as cordas, os braços e o peito do negro corpulento sangravam escalavrados. 
Eu conseguira me aproximar da beira do tanque, com esse dom que criança sempre tem para inventar brechas, e olhava espantado as feridas do seu João, nosso vizinho de quintal na Quintino Bocayuva, quando de repente me dei com os olhos presos ao rosto do seu Felix: ele ofegava compassado, mas sorria silencioso; o corpo bem plantado, sem nem enxugar as lágrimas orgulhosas que porventura havia muitos anos não lhe nasciam do peito.
O bando de meninos e meninas também – andávamos entrando na casa dos dez – festejamos a aventura com uma de nossas brincadeiras prediletas ali nos domínios do Almoxarifado: apostar corrida sobre os enormes canos negros de ferro, uns dez metros de comprido por um, eu calculo que mais, de diâmetro, dispostos um ao lado do outro perpendicularmente ao rio, quase todos bem encostadinhos, só uns três ou quatro é que guardavam entre si espaços maiores, meio metro se tanto, a não ser o penúltimo, que, já bem próximo ao portão de ferro que se abria para a ladeira do igarapé, tinha depois dele o vão mais avantajado, que pedia canela arisca para atingir o cano final, onde a competição findava em brados de novo desafio. Mas nem todos chegavam à ultrapassagem da meta. 
Sucedia que precisamente essa última tubulação, termo que aliás ainda ninguém conhecia, tinha, além do vão maior a separá-la da penúltima, duas outras particularidades que agravaram a dificuldade dos lances finais: não só era mais alta que todos os outros canos, como ainda estava um tanto inclinada. A queda de algum camarada no vão fazia parte da nossa alegria, dentro de cuja frágil casca, a infância sabe dissolver humilhação, a raiva e a mofa. A corrida daquela tarde quem ganhou foi o Tamar, já conto dele, que era o mais engenhoso da turma da rua Isabel. 
Eu, de regresso à casa, ganhei uma sova daquelas em que meu pai se esmerava (era o seu jeito de amar), as lambadas seguidas do tormento maior de um sermão infindável, inspirado na hipótese de que poderia perfeitamente ter sido eu, seu filho, quem tivesse caído no tanque do Almoxarifado e como eu então não era bom de nado, certamente teria morrido afogado; e tome faca de couro.
Seu Felix Bayma já morreu faz tempo. Mas posso garantir, e comigo a rua inteira, que ele, por mais que as amasse, não pediu que lhe botasse no caixão as suas máquinas, que lá permaneceram na Usina. Como lá ficaram as centenas de negros canos enormes e os tanques com as suas aparelhagens que jamais estiveram emperradas.
Nos primeiros dias de 78 chamei o poeta Bacelar para que me acompanhasse a uma visita ao Almoxarifado e percorrer aquele campo de antigas descobertas. Entramos pelo portão já sem portão, apressei o passo para rever os misteriosos tanques escuros. Não existiam mais; foram simplesmente entupidos com terra. Dobrei para o edifício da Usina e logo me deparei com as vidraças das janelas rompidas, todas elas, uma a uma, estilhaçadas a gosto perverso. Entrei pela porta escancarada do primeiro salão, onde esteve montado o conjunto maior dos motores, dos quais só restavam, além de pequenas peças inutilizadas pelos cantos, grandes rombos no chão. 
No salão central encontrei pessoas andrajosas dormindo no chão, uma mulher jovem e suja preparava um café: só não encontrei as máquinas. O terceiro salão, em cujo ângulo esquerdo se abria a boca de ingresso para a chaminé, era um depósito de detritos metálicos, monturo apodrecido. Deixei o casarão devastado, tomei pela direita, na direção da Quintino Bocayuva, quando de súbito a memória me devolveu os canos que por ali se alastravam. Não havia mais nenhum para contar a história. História que os moradores das cercanias também não sabem contar. 
A muitos deles, gente do meu tempo, indaguei quem retirara ou quem mandara arrancar as máquinas, para onde tinham ido os canos, quando e como foram levados, já que pesavam às toneladas, quando é que entupiram os tanques, quem são as pessoas que habitam o prédio abandonado. Ninguém me deu resposta nem explicação. O bom Adelson, aliás casado com uma Bayma e que nunca perde o humor desde adolescente, quando iniciamos uma camaradagem que até hoje se mantém, o jeito que achou foi achar graça: “Levaram tudo, meu mano. Mas quem foi, ninguém sabe, ninguém viu”.
Despedia-me contemplando em silêncio a velha e digna chaminé, que só por um milagre se mantém erguida, quando o poeta Luiz Bacelar me dá a notícia, quem sabe no intuito de serenar minha perplexidade, de que existe um projeto para restaurar as instalações da Usina e destiná-la a um teatro popular. 
Confesso que me animei, pelo menos se lavava a mancha vandálica com um serviço ao campo das artes, nesta cidade para a qual nenhum governo teve uma política cultural. Logo, no entanto, o cético Luiz, revelava que o projeto era já de muitos anos, de vez quando voltava a ser vaga notícia em jornal, ou uma frase em discurso, mas de real mesmo ele só mantinha o nome: Projeto Chaminé.
Imperturbável e inútil, a chaminé hoje compõe, com os seus tijolos, apenas um marco, envergonhado, que recorda e denuncia para a cidade, a incompetência, o descaso e o desrespeito dos seus admiradores. (Não me contenho e decido anunciar, com a humildade que convém mas com a determinação de que me sei capaz, que vou me empenhar como puder para que vingue o Projeto Chaminé. Não tenho função pública nem disponho de recursos. Mas acho que sempre vale a pena ajudar a fazer o que vale a pena ser feito, principalmente quando se trata de servir ao povo. Aos meus companheiros de meninice no universo do Almoxarifado, não prometo descobrir quem deu fim naqueles preciosos bens do Estado. Prometo só o que nosso cumprir: fazer a minha parte para que as crianças da rua, as grandes de permeio, tenham um teatro, que também é universo mágico, de arte popular.)
Releio as últimas linhas, pondero vagaroso os adjetivos que ficaram ligados ao triunfo do Tamar e ao castigo que meu pai me infligiu, e aproveito para dizer (acho que mal não faz e quem sabe pode até ser de serventia a algum leitor que não padeça de pressa) que faz tempo já convenci minha memória das virtudes da moderação, indispensável a esse seu ofício de ir buscar de volta a vida que desapareceu nas águas do lago do tempo. Águas, nunca imóveis, em cujas funduras muito esmeralda acaba virando lama pegajosa, mas de onde, em compensação, uma flor silvestre pequenina e meio murcha que te foi oferecida – oferta que na própria oferta se cumpria – e a tua lembrança afogou em indiferença, eis que inesperada emerge, sem que a memória a chame, deslumbradamente transfigurada em estrela de ametista, pelo imperceptível trabalho de lavor, que nunca cessa, das unhas do tempo vivido.
Moderado que, contudo, não se confunda na recusa ou, o que é mais cruel, no medo que cega, de olhar nos olhos transparentes da explicação do mistério, que nunca penetraste, e afinal decifrado pelos grãos da ampulheta implacável. Medo, por exemplo, de frontear a verdade brilhando na cara agoniada da pantera que amaste, e de cuja mordida de fogo, naquela tão antiga madrugada em que ardias pelo orvalho do seu dorso, teu peito só quis guardar a queimadura queimando na memória, queimadura que escarvas, que mais escarvas quando a solidão te aconchega, e com mais fúria escarvas quando te surpreendes já quase esquecido da traição que nunca existiu naquela mordida, cuja dor urdiste à imagem e semelhança de tua falta de amor.
Enfim, que, no geral, prevaleça a moderação. Salvo nos casos de reencontro inesperado ou de reconstrução intencional daqueles instantes, de maravilhada alegria, que a memória jamais dissolveu. Ou nos de louvação, que sempre se quer demasiada, dos amigos que já partiram mas que nos enriqueceram a vida com o seu convívio leal e amoroso, e cujas imperfeições e fraquezas, lavadas pelo tempo, a memória, feliz e travessa, transforma em simples expressões da condição humana. Mas voltemos à rua Isabel.
O único telefone existente na rua Isabel, até os primeiros anos 40, estava instalado na casa do seu Felix. O aparelho constava de duas caixas de madeira superpostas, de uns vinte centímetros cada uma. Na face frontal da superior ficavam as campânulas côncavas de metal, que soavam estridentes, percutidas por um badalinho de ferro; na face direita, a manivela que se rodava até o fim da corda para que a voz chegasse pelo bocal fixo da fala e partisse pelo auditor, ambos na caixinha inferior. Estava na sala de visitas, fixado à parede do lado direito de quem entrava, depois de ultrapassar o perfumado jardim sempre florido de dona Maria. 
Se não me engano, o aparelho do zelador só se comunicava com a repartição central das Águas, num prédio que até hoje existe na Miranda Leão, para o qual estou com vontade de abrir verbete especial. Como numerosos dos seus servidores moravam na rua Isabel e redondezas, eram frequentes os chamados, quero dizer, uma vez por dia e olhe lá, mais de uma só em caso de doença, a alguma pessoa da família. 
Lá saía alguém da casa do zelador, uma das netas, ele próprio, a transmitir o recado. Minha mãe quase sempre me escolhia, vá lá ver o que seu pai quer, eu gostava de falar no aparato milagroso, dobrava correndo a esquina do seu Emílio, só ia parar diante do telefone, com a afobação nem me ocorria dar os bons-dias, no plural, como a dona da casa preferia, mantendo o costume que trouxe do Maranhão. 
Para a dona Maria do seu Felix, minha Mãe nos educava no cumprimento completo: Bons-dias, dona Maria, como é que a senhora passa? Passo com a graça dos justos, respondia com indisfarçável satisfação. Também não disfarçava o desagrado quando um de nós, na pressa de chegar ao telefone, passava por ela sem um ai. O resmungo era instantâneo e tocava nos brios: “Na minha terra também se usa um cristão saudar a outro”. Dava-se por contente e voltava às suas begônias.
Muitos netos Maria Bayma ganhou do filho mais velho, o João, que casou com dona Celina, e foi morar numa casinha estreita, que colindava com uma imensa construção de zinco, onde funcionava uma fundição, nos terrenos do Almoxarifado. Ali nasceram o Sorimam, a Irene, a Isaura, a Teresinha, a Ivete e o Acatauaçu, de cujo parto dona Celina morreu, assistida por minha mãe. Seu João tornou a casar-se, teve mais três filhas, e ficou morando na mesma casa, de frente para a Quintino Bocayuva, até hoje residência da segunda família.
Era da janela dessa casa, recuada alguns metros das grades bem altas do Almoxarifado, que o seu João curtia invariavelmente os seus excessos de XPTO ou da “Branquinha”, desafiando aos berros o seu vizinho português, bom também de trago, que logo assomava ao parapeito, rico de impropérios cabeludos, rebatidos por seu João com palavrões sonoros que acordavam os vizinhos, alguns dos quais atiçavam os desafetos, minha mãe é que lá se levantava e usava de toda a sua doce energia para apaziguá-los. 
Nunca passaram dos xingamentos. Recordo pelo menos uma vez em que seu Rodrigues saltou da janela de terçado na mão disposto a tudo. Seu João ainda tentou ultrapassar as grades, mas a família conseguiu contê-lo, enquanto mofava do adversário, vociferando que com ele era no braço, não precisava de terçado, não.
Quem sabe a vocação frustrada do pai para a briga no braço é que fez do seu filho Sorimam, alguns anos depois, um dos mais temidos brigões das noites do bairro, enturmado com o Segadilha, outro bamba da rua. Ainda bem que salvou-se das arruaças e tornou-se um dos melhores lutadores de boxe da cidade, acabou campeão da fama, lástima que efêmera.

sábado, junho 22, 2019

ABCedário íntimo para uso público (16)



Por Thiago de Mello
Defronte da casa do professor Monteirinho, bem no canto (naquele tempo esquina era canto), morava a família portuguesa Pinho Maia, cheia de filhos. O Geraldo, o Francisco, hoje são médicos. Muitas moças, todas cheias de graça. Uma delas se casou com o Serafim, irmão do José Grosso. Outra, um dia o Oswaldo Said se engraçou por ela. Quem me contou foi o Amim. Os Said tinham uma prima que era muito amiga da moça. Então o Oswaldo pediu à prima que perguntasse à amiga se ela não queria namorar com ele. Era o costume do tempo. A menina foi lá, falou com a Pinho Maia, voltou com a resposta: ela quer, sim, mas só que você tem que se manifestar. Como? Manifestar? Só podia ser uma declaração de amor. 
O Muraid, o irmão mais velho, tinha um livro cheinho de cartas amorosas, para todas as circunstâncias. Oswaldo escolheu o texto mais bonito, mais derramado, era na segunda pessoa do plural, copiou e mandou para a moça. A prima voltou com a notícia de que a vizinha lera a carta e ficara radiante e que agora só faltava mesmo o Oswaldo se manifestar, que ela estava esperando. Sucede que naquele tempo o Oswaldo não sabia o que era se manifestar e o namoro sequer começou.
Os Pinho Maia não demorou muito se mudaram, quem veio morar na casa foi a família Azevedo.
A família Said morava no 493. Bem em frente morava o professor Carlos Mesquita, diretor do Ginásio, amado pelos alunos. A biblioteca ficava na sala da frente, as duas janelas sempre abertas, a gente passava, lá estava ele, lendo ou escrevendo, numa bela mesa de itaúba. Bem ao lado da casa do professor Mesquita é que morava, com a mãe, o Aderson e a Socorro Dutra.
Passando o Grupo Escolar, a casa do Zé Galinheiro, um dos maiores empinadores de papagaio que Manaus já conheceu. O Jorge, irmão dele, era fortíssimo: levantava uma canoa sozinho. Depois era a casa do Eduardo, filho da dona Felizmina Brandão. Eduardo fazia as maiores e mais bonitas rabiolas do bairro.
No mesmo quarteirão morava a família do falecido Eneas Cabral, pai da Marcolina, que se casou com o Xavico, morador da Lima Bacury. Xavico, irmão do Natan, da Moto Importadora, é o Ministro Xavier de Alburquerque, atual presidente do Supremo Tribunal Federal e filho de uma bela figura humana, patrimônio da cidade, o decano dos médicos de Manaus, o centenário dr. Xavier, que naquele tempo e durante quase cinquenta anos dava consultas na Farmácia do Povo, que ficava ali na rua dos Barés, pertinho da Sapataria Onça. Ainda hoje, quando sai de casa, o dr. Xavier gosta de dar uma volta por lá, devagarinho.
Bem defronte ficava a casa generosa da bela família Moreira.
O seu Moreira, casado com a tia Mocinha, parenta de minha mãe, era um dos homens mais elegantes da rua, usava o chapéu de feltro meio de lado, tinha um jeito fraterno de tratar as crianças e um riso cheio de doçura que transmitiu aos filhos e que até os netos herdaram. Para a rua, era a casa da família Moreira. Pra mim, porém, sempre foi a casa da Zaíra, minha doce amiga Zaíra, dona desde menina de uma força envolvente e cristalina que a vida só fez aprimorar. As virtudes daquela casa eram a bondade e a inteligência. Eram muitos irmãos. Dois deles, o Antonio (como era fascinante ouvir o Antonio falar) e o Renatinho já morreram. Ficou o Almir. A Yolanda era a mais velha das moças: Ondina, Maria do Carmo e a querida Belemita, perdão, doutora Darcy Santana Moreira da Costa, procuradora do Estado.
Descendo a mesma calçada lá está o sobradão de parede lateral toda negra, onde morava dona Diquinha Lessa, senhora mais imponente ainda que o sobrado. Morenona, era do Juruá, teve educação europeia, foi criada em Londres. Voltou quando o pai morreu. Sempre se manteve inteirada da literatura que se fazia na França. Falava inglês com o professor Carlos Mesquita, a gente ficava só ouvindo, embasbacado. No sobradão, moravam ela e a filha, a Ena.
Na casa do lado morou um bocado de gente, família nenhuma demorava muito tempo nela. Nós também moramos lá, poucos meses, lugar de triste memória, pois foi lá que arremataram todas as nossas coisas, num leilão cuja história quem conta bem é minha linda mãe dona Maria no seu livro autobiográfico que em breve será editado.
Quem morou também ali foi o Juvenil, famoso jogador de futebol da época. Jogou no Olympico e no Rio Negro, era um craque, acabou na seleção paraense. E antes do canto morava a família Albuquerque, uma das filhas era pintora excelente, dava aulas particulares. O irmão dela, o Elysio, transformou-se num dos maiores atores brasileiros, com desempenho notáveis no TBC e na companhia Celli-Tonia-Autram.
No canto da Zé Paranaguá com a rua Isabel, pela direita de quem desce, está a casa do dr. Estéfano, casa em ângulo, um lado para cada rua. O dr. Estéfano era juiz, pai dos Carlos Barroso, professor de filosofia no Ginásio, e da linda Rosa Amélia, que se casou com o nosso inesquecível Gualter, grande jogador de basquete e sobretudo um companheiro que tinha na cabeça ideias claras e justas.
O último quarteirão da Zé Paranaguá, entre a rua Isabel e a beira do igarapé, guarda um lugar especial na minha vida, porque dele me vêm as mais antigas recordações da minha infância em Manaus: eu correndo num pátio acimentado, cheio de roupa colorida estendida no arame, atrás de uma bola rolada por meu pai.
Lá em baixo, junto ao rio, ficava o estaleiro do seu Augusto Lima. Era um lugar mágico. Horas e horas esquecidas a gente ficava a olhar os barcos nascendo das mãos sábias dos carpinteiros caboclos. Atrás do estaleiro, a casa. Seu Augusto era pai da Sara, casada com o seu Lourival, pais da Talita, mistura lusa e tapuai, o riso da Talita era uma exortação à bondade. Pai da Eunice, na época uma figura de vanguarda. Professora, fazia viagens ao Sul. Uma vez voltou, alugou uma sala no quarteirão de cima, passou a dar aulas de ginástica. Beleza corporal, ela dizia. Recebia gente para cantar e recitar. Pai da Luzia, pai da Josefa, que foi a segunda mulher do Amazonino Aguiar, quando viúvo ficou da nossa santa dona Joaninha, mãe da Enoy, doce e triste colega do Ginásio que morreu tão cedo, do Ernane, do Enoque, do Edgard e do Edson, o mais lindo e meigo doido de Manaus.
No quarteirão morava o seu Pedro Marques. Não guardei o nome da esposa. Tinha cinco filhas: a Lê, a Lulu, a Ana, a Didi, está me faltando o nome de uma. Pai do Jason, que um dia deu uma surra num padre que andou se metendo de engraçado com a Didi. O padre se lascou todo. O seu Pedro Marques tinha uma casa no Curari, a Lê era professora numa escolinha de lá e dava aulas particulares, nas férias, na casa da Zé Paranaguá.
Do mesmo lado morava o seu Waldemar Moraes, que trabalhava na serraria e cuja mulher, portuguesa, levava e engomava para fora. Morava também, casa de madeira com quintal na frente cheio de jasmineiros, a dona Chica, Chica Velha, pegava sapo cururu com a mão.
Bem no centro do outro lado ficava a nossa casa. Durante a elaboração deste livro, depois de mais de trinta anos, decidi revê-la. Não mudou nada. O mesmo pátio acimentado. A varanda lateral cheia de janelas verdes. Minto: a fachada mudou. As duas janelas da frente foram unidas numa só, defendia por vigorosa grade de ferro. Me deu vontade de subir de novo a escada de madeira da entrada, de infinitos degraus na minha lembrança. 
Bati na porta, a mesma porta antiga, guarnecida de almofadas de cedro. Veio abri-la um cidadão assustado, eram três horas da tarde de um domingo. Com simplicidade, desculpei-me importuná-lo e pedi permissão para visitar “a nossa casa”. O homem assustou-se ainda mais e me pediu documentos. Eu não os levava comigo, quis dizer-lhe o meu nome e o meu propósito. Mal eu iniciara a frase, ele me bateu a porta. Guardei o brilho amedrontado dos seus olhos.
Romance das Ruas e Praças
Os nomes
Rua Saldanha Marinho era a rua da Palma, 
outra que foi Demetrio Ribeiro 
antes foi rua do Sol 
a Marechal Deodoro 
foi rua do Imperador.
E todos foram caminhos 
de pés ou de igarapés. 
Hoje a Sete de Setembro 
foi a Rua Brasileira, 
o antigo Largo da Pólvora 
é a General Osório, 
antes rua da Olaria 
já foi também a das Flores. 
E todos foram caminhos 
de pés ou de igarapés. 
(Elson Farias)
A três lindas pessoas com quem brinquei de roda pedi que me acompanhassem com a memória e o coração, nesta viagem de retorno que acabo de fazer à rua Isabel da nossa meninice: a Joria, a Teresinha e a Graci. De retorno, para mim; porquanto a Jória e a Graci até hoje continuam morando naquela rua onde nasceram, e onde fui encontra-las depois de tantos anos e foi como se eu nunca tivesse saído de lá: a Jória, a professora Jória, estava lavando a calçada, era a manhã de um sábado, mal me viu franziu a testa e enviesou o queixo, no mesmo jeito de falsa zanga que herdou da mãe para dissimular a ternura, e foi logo me perguntando o que é que tu queres, Amadeu. Respondi quero te dar um beijo, ela caiu na gargalhada, a mesma risada-canção de antigamente. 
A Graci estava com uma freguesa (costureira de mão cheia, não há quem faça em Manaus melhor cabeça de noiva do que ela), mas me mandou entrar como pessoa da casa. A Teresinha, sobrinha da Jória, já não mora mais lá. A minha humilde e pequenina amiga, hoje assistente social, inegavelmente uma das mulheres mais belas de Manaus, casou-se com o Clovis Vale e mora na Vila Municipal, de cujo jardim não precisamos sair para viajar pelo tempo em que fomos vizinhos de quintal.
Para quem vinha do Monte Cristo e entrava pela rua Isabel, a primeira casa, ao lado direito, era a da família do seu Martins, gerente da serraria, homem grave, alto, espadaúdo e dono de uma cabeça avantajada. Todos os filhos saíram com a cabeça do pai, inclusive a Odaísa, única mulher, era um gosto vê-la, com a sua farda azul e branca de normalista, caminhando desenvolta e bonitona. Os meninos eram o Odair, o mais velho, excelente corredor, apesar de grandalhão, nas disputas de barra-bandeira; o Odimir, o Orsini, o Omar e o Oiama. A mãe deles era a professora Ediberta Braga Martins, mas para a rua e para os seus alunos da José Paranaguá ela era a querida dona Mocinha. A casa era assobrada e no porão, habitável como o da maioria das casas de alvenaria da época, funcionava uma pequena indústria do J. G. Araujo, que fabricava pregos e saltos de borracha para sapato. Ficou na memória da rua a figura de uma operária gorda que não ria para ninguém.
Vinha depois uma casa muito bonita, de porão alto, porta imponente de cedro com almofadas, janelas com balcões de arabescos de ferro, que até hoje lá ainda se ergue conquanto mal envelhecida: é das poucas que restam da rua de antigamente. Nela morava o seu Fabio Costa, que tinha umas fazendas nos Autazes e cuja mulher, dona Magá, queria mudar o calendário: botava na organização do calendário a culpa por muitas das mazelas da humanidade.
A família Barroncas, que vivia na casa de parede e meia, até hoje tem ligações com a rua Isabel. Chiquinho e Elvira Barroncas eram pais de muitos filhos, todos de olhos esverdeados. O Ely se zangava quando a gente o chamava de “olho de gato”. Mas as moças até que gostavam muito da força verde com que nasceram: a Lourdes, a Wandira, a Iraídes e a Waneíde.
No canto direito de Isabel com a Quintino Bocayuva, casa estreita e comprida, o quintal ia se acabar lá na beira do rio, ninguém parava lá por muito tempo. Mas é de justiça registrar, pelo doce bem que fez aos olhos de rua e da cidade, a figura da Dorothy, moça que, pelos meados dos anos 30, veio do Rio de Janeiro com o irmão e a mãe para morar ali. Alta, olhos de ágata, riso estrelado.
O lado esquerdo do quarteirão era habitado pelos mais humildes moradores da rua, reunidos no espaço terreno de uma estância cheia de barracos de madeira. Na Manaus daquele tempo eram numerosas as estâncias, geralmente encontradiças nos bairros mais pobres e de beira de rio. Várias casas contíguas ou pouco distanciadas uma da outra, chão de terra batida, o banheiro era de todos, da torneira uma calha de zinco se bifurcava para encher mais de uma tina de madeira, em redor das quais trabalhavam as lavadeiras. 
Naquela estância da rua Isabel, atravessada por muitas cordas de estender roupa (o capinzal servia de quarador), a lavadeira mais recordada é a dona Amélia, preta, alta, magra, mãe do João e do Bia, exímios na arte do pião, da Maria e da Otavia: comentava-se na rua que a Otavia, morena de larga cabeleira ondulada, era parecida demais com a Dorothy Lamour, atriz norte-americana que fazia furor nas tela do Politheama com o filme Princesa das Selvas. A Mariazinha casou depois com o Arthurzinho, cunhado do seu Gumercindo das Águas e que sacudiu a tranquilidade da rua, anos mais tarde, quando se transformou no seu primeiro suicida.
No canto do lado direito do segundo quarteirão, bem ali onde hoje a Ponte dos Educandos começa a subir engolindo o casario da Quintino Bocayuva, ficava a taverna do português seu Emídio. A taverna ainda está lá no mesmo lugar. Já não estão mais o taverneiro nem sua mulher dona Mocinha, magra e baixinha, já de cabelos brancos quando, meninos, íamos ali comprar um tostão de manteiga, dois tostões de banha de porco marca Rosa. 
Dona Mocinha era exímia na feitura de filhoses de farinha de trigo recobertos de açúcar e canela, cujo gosto minha memória guardou, particularmente daqueles que ela me dava de presente. Era impressionante a perícia do seu Emídio para embrulhar as mercadorias. Usava, para produtos gordurosos, um papel translúcido e fino, dito manteiga. Para a farinha, o açúcar, o pó de café, o arroz, era esse mesmo encorpado, cinzento, que até hoje se usa. Com dedos firmes e ágeis, o taverneiro ia unindo as duas bandas laterais do papel, numa sequência de dobras que lembravam um debrum: o embrulho ganhava a forma de um triângulo de lados arredondados, e nunca se desfazia, ainda que não levasse cordão.
Confesso que não consigo dominar uma vontade que me enfia o seu doce espinho agora, no instante em que, quase quarenta anos depois, embalado pelo vento do entardecer do rio Andirá, escrevo e escrevo estas palavras simples sobre pessoas e coisas que não existem mais. É a vontade de dizer que ali naquela taverna vivi momentos que duram, perduram na minha vida, porque marcados pelo fascínio que tem, para uma criança, descobrimentos de coisas tão diferentes de que é feita a natureza humana.
Depois da taverna, morava a dona Matilde. A casa da turca, a rua dizia. Acho que já relembrei que, por aqueles dias, o povo não distinguia os árabes chegando a Manaus, oriundos sobretudo da Síria e do Líbano: todos eram simplesmente turcos. Baixa, gordona, cara grande, dona Matilde era a bondade em pessoa. Só se zangava quando a meninada começava a atirar pedras para derrubar as frutas das mariraneiras, uma delas bem defronte à sua casa. E ralhava no seu português arrevesado e lindo. 
Pelos domingos, fazia deliciosos quibes de frigideira, o azeite dourado e cheiroso, para repartir com a vizinhança. Fiquei comovido quando me contaram que a vizinha generosa, cuja casa tanto frequentei e de onde nunca saí de mão abanando (certa vez saí levando uma galinha pedrês pesadona de tão gorda para o “seu muxarifa”, que era como ela se referia a meu pai, então almoxarife do Serviço de Águas e Esgotos da cidade) – pois me comovi quando me contaram que dona Matilde morreu doida. Na chamada idade crítica, entrou a ter ciúmes do meu companheiro, o Marques, lusitano que vendia vitalidade. Consta que virou sovina, escondia cédulas num buraco de colchão. Passeava a sua loucura pelas ruas de Manaus, o olhar de desespero, pasto de escárnio.
Vinha em seguida a casa do meu Manuel Martins, outro português da rua, casado com dona Ana e dono de negócios que levaram a largas temporadas no interior da floresta, de onde um dia chegou trazendo o caboclo Xiburita, bom como água. Já o filho, o Ivan, pequenino mas forçudo, era um violento, dava tudo por uma briga. Brigava bem, o danado; corajoso, desafiava rapazotes mais taludos. Um dia perdeu uma briga com as ondas do rio, morreu afogado.
Ainda está lá, tal e qual, com quase todos os moradores de antigamente, a casa do seu Orlando e dona Dilia, pais do Sebastião e da Graci. Seu Orlando, funcionário das águas, homem austero, era bom de bola, fez fama jogando no time do Nacional. Mas na rua ele se fez famoso como empinador de papagaio, ofício no qual era um mestre e ao qual se dedicou, apaixonado, até quando já ultrapassara os sessenta anos. Dona Dília era quem lhe preparava os papagaios, que ostentavam o emblema do seu clube, armado em papel de seda. No meu retorno à rua, os homens da família já não moravam nem na rua nem no céu dos papagaios. Continuam na casa a viúva e a Graci, hoje Afonso de casada, mãe de quatro filhas que confirmam a tradição da rua em matéria de moça bonita.