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quarta-feira, janeiro 29, 2020

Helvécio Nogueira e o valentão do bairro



Maio de 1953. Redator da Associação Comercial do Amazonas (ACA), seu Alfredo Magalhães morava ao lado do Campo da Barra, na Rua Tefé, na Cachoeirinha. Em 1950, ele havia se candidato a deputado estadual e causado frisson na cidade. Numa época em que iluminação pública era ficção científica, seu Alfredo fazia seus discursos montado em cima de um caixote de madeira, com um megafone na mão e uma lamparina na outra, para iluminar o comício. Ficou conhecido como “Alfredo Lamparina”, mas não foi eleito.

Seu Alfredo era pai dos moleques Rui Magalhães, Zé da Barra, Carlito Mão-de-pilão e Maria Helena. O educadíssimo Rui se tornou o melhor jogador de dominó da época, com uma característica original: se sentava sempre de costas para a mesa. Sua única exigência era que o jogo fosse “cantado”. Ele mentalmente ia montando o jogo na cabeça e sentando suas pedras, sem errar uma única vez. Nunca perdeu uma partida. Na quarta rodada, ele já sabia quais pedras estavam nas mãos de cada jogador e dificilmente se equivocava. Era um gênio.

Zé da Barra ganhou esse apelido porque, se pudesse, passaria 24 horas por dia jogando futebol no Campo da Barra. O invocado Carlito Mão-de-pilão, por sua vez, era o desordeiro da rua. Dava porrada em tudo quanto era moleque da sua idade. Gostava de brigar e brigava bem. Quando não encontrava ninguém que quisesse sair na porrada com ele, ficava dando murros e chutes nos postes de luz feitos de acariquara até escalavrar os dedos das mãos e os peitos dos pés. Era um sadomasoquista de carteirinha que gostava de tocar terror.

Aos 11 anos, Helvécio Nogueira também morava nas imediações do Campo da Barra, na companhia de quatro irmãos (Olga, Stanislaw, Ismelinda e Maria Gertrudes) e de três primos (Selmo Caxuxa, Sérgia e Afonso Libório). Nessa época, seu pai, o marceneiro Hilário, estava fazendo as esquadrias da mansão do empresário João Braga, ali no cruzamento da Rua Paraíba com a Rua São Luiz, em Adrianópolis.

Diariamente, Helvécio levava uma marmita de comida para seu pai, esperava ele terminar de almoçar, e levava a marmita de volta para casa. Indo e voltando a pé, evidentemente, que a molecada da época era muito diferente da atual “geração nutella”. O único vício de Helvécio era jogar bolinhas de gude. Era um ás no “ronda-dedo”. E no Campo da Barra sempre havia muitos moleques brincando de bolinhas.

Um dia, depois de ter cumprido sua tarefa diária, Helvécio nem foi em casa deixar a marmita vazia: já parou no Campo da Barra e começou a fazer a faxina entre os moleques que estavam no local. Um dos patos depenados foi o invocado Carlito Mão-de-pilão. O sujeito ficou puto:

– Você me ganha nesse jogo de merda, mas eu te dou porrada!

Helvécio tentou contemporizar:

– Porra, Carlito, eu não quero brigar contigo. Se você quiser, eu devolvo as bolinhas que você perdeu...

O sujeito ficou mais puto ainda:

– Pode enfiar essas bolinhas no cu, zé ruela! Eu te dou porrada, porra! Eu te dou porrada!

Pacifista até a medula óssea, Helvécio, ouvia as imprecações calado.

De repente, Carlito deu um chute tão violento na marmita vazia, que ela bateu nas estacas de mourão que cercavam o Campo da Barra e já caiu no chão completamente detonada.

Na mesma hora, Helvécio sentiu nas costas a lambada de cinturão que ia receber em casa ao devolver a marmita naquele estado. O sangue lhe subiu à cabeça. Perdido por um, perdido por mil. Sem outra alternativa, ele resolveu “sair na porrada” com o desordeiro.

Chutes pra cá, murros pra cá, Helvécio se defendia como podia, até perceber a chegada no local do seu primo Paulo Nogueira (hoje delegado aposentado da Polícia Civil). Dois contra um talvez empatassem o jogo, um deles, sozinho, fatalmente seria massacrado, era só questão de tempo.

– Porra, meu primo, compra essa briga comigo... – ganiu Helvécio, desesperado.

Paulo Nogueira não deu a mínima.

Percebendo que Paulo Nogueira havia “esfriado”, Carlito Mão-de-pilão ficou mais arretado do que nunca. O sujeito estava com o diabo no couro e começou a distribuir sopapos com vontade.

De repente, ele conseguiu acertar um murro violento no rosto de Helvécio que, com o impacto, bateu com a cabeça nas estacas de mourão. Ele passou a mão na nuca e quando olhou, sua mão estava banhada de sangue. O filho da puta havia lhe partido a cabeça.

Helvécio ficou possesso. Saiu dando murros, chutes e pernadas no valentão numa velocidade tão impressionante que Carlito começou a recuar, tão surpreso quanto incrédulo. Sem perder a fúria, o ímpeto e o embalo, Helvécio deu uma rasteira tão poderosa no adversário, que Carlito caiu no chão, de peito pra cima, feito um pacote bêbado.

Aí, sem vacilar, Helvécio sentou em cima do peito do valentão, prendeu sua cabeça entre as próprias coxas e passou a socar impiedosamente a cara do infeliz, que rapidamente se transformou em um disforme patê de fígado. O sangue escorria em cascata do nariz do valentão do bairro.

Quando a turma do “deixa-disso” resolveu interferir e tirar Helvécio de cima do moribundo, ele ainda conseguiu dar uma mordida no rosto do Carlito, arrancando um grande naco de carne da bochecha do sujeito.

Enquanto Carlito chorava feito um bezerro desmamado e lambia suas feridas, Helvécio era comboiado em triunfo para casa, carregando o seu valioso troféu de guerra: a marmita amassada.

Desse dia em diante, Carlito Mão-de-pilão corria léguas ao pressentir o Helvécio se aproximando, estivesse onde estivesse. A história correu pelo bairro como fogo em capoeira.

Vascaíno desde criancinha, Helvécio teve uma das adolescências mais tranquilas da Cachoeirinha porque, por onde ele passava, os moleques repetiam:

– Foi esse cara aí que deu porrada no Carlito Mão-de-pilão! Ele é muito foda numa briga de rua! Não tem pra ninguém, mano, não tem pra ninguém! Só te digo isso...

Assim nascem as lendas.

sexta-feira, janeiro 24, 2020

Haja paciência!



Até o Papa Francisco a perdeu, no dia 1º de janeiro deste ano. 
Deu um chega-pra-lá numa “fiel” pentelha. E nós?

Por Mouzar Benedito

Nestes tempos em que qualquer discordância é motivo para querer matar alguém ouso fazer uma reclamação que vai na contramão do pensamento racional e lógico: uma parcela grande dos brasileiros está tendo paciência demais.

Um governo que vai destruindo a Previdência, o sistema educacional, o sistema de saúde, o meio ambiente, os Direitos Humanos e tudo que veio sendo construído há muito tempo, com toda muito trabalho e muita paciência, deveria ter feito a gente perder a tal de “santa paciência” e sair às ruas, como os chilenos fizeram, mas não. Continuamos com uma paciência bovina, vendo tudo desmoronar.

Alguns podem lembrar – como coisa positiva – a tal de “paciência de Jó”.

Segundo a Bíblia, Deus resolveu testar a fé de um sujeito, o Jó, e foi detonando a vida dele, para ver se ele ia se revoltar. Mas ele permanecia fiel. Foi progressivamente perdendo tudo o que tinha: seu rebanho de ovelhas, seus camelos… E manteve sua fé. Depois, seus filhos, sua mulher… E continuou fiel ao Deus que lhe castigava só por uma espécie de vaidade.

Como prêmio, recebeu rebanhos em dobro, pôde casar-se de novo e ter outros filhos. A paciência dele, então, foi premiada! Viva! Acho o cúmulo da escrotidão essa história toda. Ora, e os filhos e a mulher que morreram, sem motivo algum? Que se danem, né? Amor à mulher e aos filhos não valem nada? Ou valem uma indenização em dinheiro, em rebanho, riquezas enfim? O dinheiro compensa tudo!

Bom… Fiquei curioso sobre provérbios e o que disseram filósofos, escritores, artistas e todo tipo de gente sobre a paciência. Sabia que ia encontrar frases louvativas, de pessoas “tementes a Deus”, que recomendam o exemplo de Jó, e também gente que diria que “a paciência é revolucionária”, mas esperava encontrar muitas gozações e contestações sobre a paciência, e me decepcionei. Até que existem, mas são muito poucas.

Enfim, aí vão as frases que coletei. Escolhi umas com as quais concordo, mas também outras que vão contra o que queria encontrar:

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Stanislaw Lec: “Você tem que ter muita paciência para aprender a ter paciência”.

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Ditado português: “Paciência tem limite”.

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Edmund Burke: “Há um limite onde a paciência deixa de ser uma virtude”.

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Madame de Staël: “O segredo da ordem social reside na paciência dos outros”.

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Simone de Beauvoir: “Mesmo com toda libertação feminina, essa ‘paciência’ que nos caracteriza nunca deve acabar. É uma riqueza de infinitos alcances que aumenta os poderes de paz do universo”.

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Vitor Caruso: “A paciência é uma forma de hipocrisia para uso próprio”.

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Lewis Carroll: “Somos tão pacientes conosco mesmo, que nunca nos irritamos com a nossa própria estupidez”.

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Adélia Prado: “Eu mesmo não entendo minha enormíssima paciência de ficar à toa, só pensando, pensando e sentindo”.

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Carlos Drummond de Andrade: “Não é fácil ter paciência diante dos que a têm em excesso”.

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Drummond, de novo: “O povo não costuma perder a paciência porque ela é seu único bem”.

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Gandhi: “Perder a paciência é perder a batalha”.

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Ditado popular: “Quem não tem paciência não cozinha pedra”.

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Provérbio chinês: “Espere com paciência, ataque com rapidez”.

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Ambrose Bierce: “Paciência: uma forma menor de desespero, mascarada de virtude”.

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Marquês de Maricá: “A paciência, em muitos casos, não é senão medo, preguiça ou impotência”.

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Luc de Clapiers Vauvernargues: “A paciência é a arte de esperar”.

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Martha Medeiros: “Paciência só para o que importa de verdade. Paciência para ver a tarde cair. Paciência para sorver um cálice de vinho. Paciência para a música e para os livros. Paciência para escutar um amigo. Paciência para aquilo que vale nossa dedicação”

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Anne Frank: “O papel tem mais paciência do que as pessoas”.

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Ditado popular (para responder a quem fica falando que a gente tem que ter paciência): “Paciência é o nome de uma vaca velha”.

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Provérbio persa: “A paciência é uma árvore cujas raízes são amargas, mas os frutos são saborosos”.

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Barão de Itararé: “Cúmulo da paciência: fazer um galo na cabeça e ficar acordado até de madrugada, esperando que cante”.

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Fabrício Carpentier: “O problema é que a paciência parece falta de interesse”.

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Cora Coralina: “Há muros que só a paciência derruba. E há pontes que só o carinho constrói”.

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Francisco Manuel de Melo: “Não há estado tão triste no mundo que não haja outro mais triste com que aquele possa consolar-se”.

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Machado de Assis: “Suporta-se com paciência a cólica do próximo”.

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Ditado popular: “Pela paciência se vai à alegria e pela impaciência à dor”.

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Tati Bernardi: “E o homem perfeito teria a maior paciência do mundo em curar dessa loucura, e você tem a maior paciência do mundo para aumentar minha loucura”.

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Caio Fernando Abreu: “Algumas coisas não servem mais. Você sabe. Chega. Perda de tempo, paciência e sentimento”.

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Clarice Lispector: “Tenho que ter paciência para não me perder dentro de mim: vivo me perdendo de vista. Preciso de paciência porque sou vários caminhos, inclusive o fatal beco sem saída”.

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Ditado popular: “A paciência é unguento para todas as chagas”.

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Charles Chaplin: “Aprendi que vai demorar muito para me transformar na pessoa que quero ser, e devo ter paciência. Mas aprendi também que posso ir muito além dos limites que eu próprio coloquei”.

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Isaac Newton: “Se fiz descobertas valorosa, foi mais por ter paciência do que qualquer outro talento”.

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Beethoven: “Tenho paciência e penso: todo mal traz consigo algum bem”.

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Provérbio árabe: “Senta-te à tua porta e verás passar o cadáver do teu inimigo”.

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Giacomo Leopardi: “A paciência é a mais heroica das virtudes, justamente por não ter nenhuma aparência heroica”.

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Benito Perez Galdoz (escritor espanhol): “O dinheiro é ganho por todos aqueles que, com paciência e boa observação, vão atrás daqueles que o perdem”.

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Ditado popular: “Quem não tem paciência, não cozinha pedra”.

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Confúcio: “Transportai um punhado de terra todos os dias e fareis uma montanha”.

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Maomé: “Deus criou a mulher de uma costela de um osso torto. Se procurares endireita-la, quebrará. Tenham pois paciência com as mulheres”.

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Provérbio português: “Ao marido, prudência; à mulher, paciência”.

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Leon Tolstói; “O tempo e a paciência são dois eternos beligerantes”.

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Ralph W. Emerson: “Adote o ritmo da natureza. O segredo dela é a paciência”.

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Ditado popular: “Com paciência e perseverança, tudo se alcança”.

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Fernando Sabino: “… E viver, afinal, é questão de paciência”

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Camões: “Não se pode ter paciência com quem quer que lhe façam o que não faz”.

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José Sarney (quando lhe disseram que Itamar Franco tinha o “pavio curto”): “Nada melhor do que a presidência para esticar o pavio.

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Margaret Thatcher: “Sou extraordinariamente paciente – desde que as coisas sejam feitas do meu jeito”.

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Ditado popular: “Com paciência o céu se ganha”.

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Horácio: “A paciência torna mais leve o que a tristeza não cura”.

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Joseph Joubert: “A paciência é a única solução para males que não têm solução”,

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Ditado popular: “Paciência e caldo de galinha não fazem mal a ninguém”.

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Renato Kehl: “A impaciência é sinal de fraqueza; a paciência de força, de inteligência”.

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Immanuel Kant: “A paciência é a fortaleza do débil, e a impaciência a debilidade do forte”.

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 Camilo Castelo Branco: “A paciência é a riqueza dos infelizes”.

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Guimarães Rosa: “Não por orgulho meu mas antes por me faltar o raso de paciência, acho que sempre desgostei de criaturas que com pouco se contentam”.

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Guimarães Rosa, de novo: “Sem malícia, com paciência, sem insistência, principalmente”.

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Ditado popular: “A paciência é a mãe da boa vontade”.

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Millôr Fernandes: “Se certas pessoas tivessem um pouquinho de paciência, pensassem um pouquinho mais, acabavam pensando antes de falar”.

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Ataulfo Alves (no samba “Vai, mas vai mesmo”):

“Vai, vai mesmo.

Eu não quero você mais.

Tenha a santa paciência,

Ponha a mão na consciência,

Deixe-me viver em paz”.

***

Mouzar Benedito, jornalista, nasceu em Nova Resende (MG) em 1946, o quinto entre dez filhos de um barbeiro. Trabalhou em vários jornais alternativos (Versus, Pasquim, Em Tempo, Movimento, Jornal dos Bairros – MG, Brasil Mulher). Estudou Geografia na USP e Jornalismo na Cásper Líbero, em São Paulo. É autor de muitos livros, dentre os quais, publicados pela Boitempo, Ousar Lutar (2000), em co-autoria com José Roberto Rezende, Pequena enciclopédia sanitária (1996), Meneghetti – O gato dos telhados (2010, Coleção Pauliceia) e Chegou a tua vez, moleque! (2017, e-book). Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às terças.

quarta-feira, janeiro 22, 2020

Clipe Oficial da BICA 2020



Ainda bem que deixamos de fora esses versinhos para a letra da marchinha não virar samba enredo:

“Queimada faz muito mal e não tem graça / Porque acaba com o ambiente pelo meio / Atrapalha os povos todos da floresta / Pra essa desgraça só existe cartão vermelho / O seringueiro não pode tirar leite do pau / O castanheiro não pode quebrar um só ouriço / O pescador não pode botar pacu na vara / E nós no fogo sem encontrar um periquito”

A BICA e os sucessos das músicas de duplo sentido no Brasil



Por Raphael Vidigal

“A gente pensa numa coisa, acaba escrevendo outra e o leitor entende uma terceira coisa… e, enquanto se passa tudo isso, a coisa propriamente dita começa a desconfiar que não foi propriamente dita.” (Mario Quintana)

É de um intelectual a constatação de que o amplo entendimento do duplo sentido no Brasil remonta ao período da escravidão. Em outros países essa cultura não seria tão difundida. De acordo com a tese se vivia naquela época sob uma realidade de mentira, em que a hipocrisia era dominante e as pessoas, escravos preponderantemente, tinham que recorrer a artimanhas para se comunicar e expressar com seus companheiros. Já que não podiam falar abertamente, a exclusão da liberdade lhes foi o mote para criar o “duplo sentido”.

Como muitas contribuições da cultura negra no país, o duplo sentido se estendeu para as artes, com especial alcance na música, principalmente a nordestina. Se o nome do intelectual se esqueceu, o sentido duplo permanece.

“Eu dei…”, de Ary Barroso, talvez tenha sido a marchinha de carnaval a iniciar a malícia do duplo sentido na cultura musical com acento tipicamente brasileiro. O que muito se explica em razão da conotação da festança, que tem nos deuses do vinho e do prazer, como Dionísio, todo o seu efeito e sentido.

“Eu dei…” composta por Ary Barroso e lançada por Carmen Miranda em 1937 já brincava com a relação sexual entre a expressão e as múltiplas possibilidades que ela desperta no imaginário. O desejo de cada um é que define o que foi afinal que deu Carmen, afinal ela não revela, e “adivinhe se é capaz…”.

Genival Lacerda é um dos ícones da música de duplo sentido no Brasil. Natural de Campina Grande, na Paraíba, criou um estilo caricatural, pautado nas vestes espalhafatosas e na famosa dança ‘sensual’ em que põe a mão na barriga, influenciando nomes da região que também fizeram sucesso no Brasil, como Reginaldo Rossi e principalmente o cantor Falcão.

Em 1975, esse gênero musical que sempre esteve ligado às camadas mais populares, viu nascer o forró “Severina Xique-Xique”, de Genival e João Gonçalves. Com uma letra mais óbvia do que na época das marchinhas, mas ainda ambígua, não se precisa de muito para imaginar o que é a butique da protagonista… “E ele tá de olho / É na butique dela…”.

Em 1980 o baiano Raul Seixas, que sempre gostou de mesclar o rock a ritmos brasileiros e idolatrava tanto Elvis Presley quanto Luiz Gonzaga, também entrou na onda do duplo sentido, bem à sua maneira. Criou com o parceiro Cláudio Roberto a história da cobra que observa a briga de duas aranhas, numa óbvia alusão aos apelidos dados aos órgãos sexuais no Brasil. E como era de costume fazia troça de qualquer movimento que se insurgia pretensiosamente, no caso, alas mais radicais do feminismo.

A relação lésbica é observada por Raul com curiosidade e desejo, ansioso por participar dessa festança da natureza. “Vem cá mulher, deixa de manha / Minha cobra quer comer sua aranha…”.

Sérgio Reis começou a carreira cantando rock na Jovem Guarda, e teve êxito com a música “Coração de Papel”, de sua autoria, mas fez mesmo sucesso foi como cantor sertanejo. Em 1983, já com uma longa estrada percorrida, lançou a canção da dupla Moraezinho e Auri Silvestre, “Panela Velha”.

O sucesso foi tão grande que mesmo quem não a conhece, se é que isso ainda é possível, é capaz de cantar o refrão, que impregnou-se como ditado na nossa cultura. O duplo sentido faz referência ao elogio que o protagonista dirige à mulher amada, com o uso de outra gíria muito típica da nossa cultura. Afinal de contas, “não interessa se ela é coroa / panela velha é que faz comida boa…”. Entenda como quiser.

Duas personagens importantes e carismáticas estão ligadas à música “Prenda o Tadeu”. Clemilda (que divide a autoria com Antônio Sima) e Maria Alcina, intérprete que a popularizou para o Brasil inteiro. As duas a gravaram no mesmo ano, em 1985. Com interpretações que variam entre a irreverência e o ritmo mais tradicional do forró, ambas sublinham o duplo sentido da canção, na história característica do folclore da região, em que uma moça perde a virgindade para um tal garanhão, no caso, o temido Tadeu.

Claro que a preocupação da família, e especialmente das irmãs, é nítida. “Prenda o Tadeu” é parte dum imaginário riquíssimo da cultura de duplo sentido nordestina, que conta ainda com nomes de peso como Anastácia, que também abasteceu o repertório de Maria Alcina, e Sandro Becker, além de obras de domínio público como “É mais embaixo” e “Calor na Bacurinha”, todas cantadas pela mineira de Cataguases que lançou Fio Maravilha no Festival da Canção de 1972. “Seu delegado / Prenda o Tadeu / Ele pegou a minha irmã e / Oh!…”.

O pagodeiro Bezerra da Silva praticamente não assina nenhuma das composições que tornou célebres no Brasil inteiro. O estilo particular e característico é tão próprio que soa limitado classificar como “samba”, afinal de contas Bezerra da Silva canta num outro ritmo, melhor entendido como “Bezerra da Silva”.

Muitos dos autores dessas músicas, inclusive, não tinham os nomes divulgados, mas sim, codinomes, por serem procurados pela polícia pelos mais diferentes motivos e transgressões da ordem. Logo, não é de se espantar que como os escravos, das quais a maioria descende, eles utilizem de uma linguagem própria, codificada, para tratar de temas como violência e uso de entorpecentes proibidos pelo Estado.

“Tem coca aí na geladeira”, registrada como de Regina do Bezerra, esposa do cantor, faz uma óbvia brincadeira com o produto amplamente aceito e propagandeado pelo império norte-americano que soa como aquele outro, proibido e perseguido pelos mesmos barões da situação. Afinal de contas, a diferença entre o remédio e o veneno é a dose. É dose!

Um dos maiores hits brasileiros com duplo sentido é “Vou de Táxi”, da Angélica. O sucesso da cantora e apresentadora tem várias interpretações, mas uma em específico é bem polêmica para a época. Ao se lembrar do rapaz do táxi por quem se apaixonou, ela canta “Mas no banho / Foi só me tocar / De repente / Lembrei do teu olhar”.

A dupla Sandy e Junior lançou vários sucessos infantis, mas, em plenos anos 90, era difícil não procurar um significado oculto por trás das letras. Em “Pingolim”, Junior fala sobre uma estrela de brinquedo com esse nome, com a qual ele adorava brincar. No entanto, o verso “Se pinta uma garota que ele fica afim / Já quer mostrar o seu pingolim”, além de várias outras referências, é bastante sugestivo de outro significado.

As canções infantis de Xuxa sempre foram abertas a várias interpretações. Uma delas é “Xuxerife”, que o público cantava de outra forma do que a letra original, mas que fazia total sentido para o contexto da época. No verso em questão, a cantora fala sobre o tal Xuxerife: “Fugiram feito lagartixa e o povo atrás gritava (legal)”. Claro que, para rimar, as pessoas cantavam “Bicha”, de uma forma nada legal.

“O Pinto”, canção do Raça Pura, do álbum homônimo que ganhou o disco de ouro, é mais explícita ainda, mas não ao ponto que crianças não possam cantar. Apesar de falar sobre um galinheiro, com pintinhos e galinhas, o sujeito claramente não está falando sobre um filhote de galo adotado pelo seu pai.

“A Pipa do Vovô” é outra que com certeza já foi cantada por muitas crianças que não fazem ideia do seu significado duplo. Apesar de falar sobre um vovô que não consegue empinar pipas, a compositora da letra, Ruth Amaral, escreveu com a ideia de falar, implicitamente, sobre os problemas de desempenho que vem com a idade.

A banda “É o Tchan” colocou todo mundo para dançar com axé nos anos 90. A música “Na Boquinha da Garrafa” virou um hit, mas claro que a maioria nunca prestou atenção na letra. Em “Vai ralando na boquinha da garrafa / É na boca da garrafa”, a canção não está sendo tão literal assim e não fala, bem, de uma garrafa.

Outra das mais famosas músicas de duplo sentido nacionais veio do Só pra Contrariar em um dos seus primeiros hits, “A Barata”. Na faixa, lançada em 93, Alexandre Pires encontra “a barata da vizinha” todo dia que chega em casa, e não é possível que a mulher que more ao lado realmente tenha este inseto de estimação. Trecho da música: Toda vez que eu chego em casa / A barata da vizinha está na minha cama / (...) / Eu vou dar uma paulada / Na barata dela”.

Um dos maiores sucessos da banda de axé é a música “Minha Pequena Eva”, eternizada na voz de Ivete Sangalo e que todo mundo canta em todo carnaval – sem nem prestar atenção na letra. A canção fala sobre Adão e Eva, que fogem em uma astronave durante o apocalipse, ou “Olha só, hoje o sol não apareceu / É o fim da aventura humana na Terra”. Metal pesado!

A música da banda Titãs fala sobre flores, como o próprio título entrega, mas há um significado controverso – e bastante mórbido – por trás da letra. “Flores” poderia estar falando sobre suicídio, como em “Os punhos e os pulsos cortados / E o resto do meu corpo inteiro” e “As flores tem cheiro de morte / A dor vai fechar esses cortes”. Hardcore.

Outra música que ficou muito famosa foi “Lepo Lepo”, do Psirico, em 2017. O refrão grudento colocou todo mundo para cantar a sina de um homem que não tinha muito dinheiro, mas que queria manter o relacionamento com a mulher amada. Em “Eu não tenho carro, não tenho teto, mas se ficar comigo é porque gosta do meu lepo lepo”, estamos falando de… bem, você já entendeu.

O funk também é mestre em fazer isso, e o clássico acima de todos é de Tati Quebra-Barraco, em “Fogão Dako”. A letra é bem simples, e por mais que ela peça calma, é difícil de imaginar que Tati esteja realmente fazendo uma música para elogiar a marca Dako. Trecho da música: “Entrei numa loja, / Estava em liquidação / Queima de estoque / Fogão na promoção / Escolhi da marca Dako, / Porque Dako é bom / Dako é bom / Dako é bom / Calma, minha gente, é só a marca do fogão!”

“No Cume”, do cantor cearense Falcão, vai na mesma linha. Trecho da música: “No alto daquele cume / Plantei uma roseira / O vento no cume bate / A rosa no cume cheira / Quando vem a chuva fina/ Salpicos no cume caem / Formigas no cume entram / Abelhas do cume saem”.

“O Gato Tico-Tico”, de Sandro Becker, não fica atrás. Trecho da música: Tico-Tico é um gato / Que a Maria quer bem / Não dá, não vende, nem troca / E não empresta a ninguém / O Tico tem um defeito / Que nem dá pra consertar / O defeito do Tico / É que é danado pra miar / Tico mia na sala, Tico mia no chão / Tico mia na cozinha, encostado no fogão / Tico mia no tapete, Tico mia no sofá / Tico mia na cama, toda hora sem parar”.

Michel Teló estourou com “Fugidinha” em 2011, e a música que o tornou famoso fala sobre um cara popular que está na balada e se interessa por uma menina que nunca tinha visto antes. Na verdade, muitos dizem que a tal “fugidinha” que o rapaz propõe não é sobre, simplesmente, fugir dali para que os dois possam se conhecer melhor. Trecho da música: “O jeito é dar uma fugidinha com você / O jeito é dar uma fugida com você / Se você quer saber o que vai acontecer / Primeiro a gente foge / Depois a gente vê”.

O cantor Leonardo lançou a canção “Água de Coco” em 2000, falando sobre uma mulher que está tomando água de coco de um jeito bem provocante. Porém, não era bem sobre o coco que ele estava falando, como mostra o verso “Ela segurava o coco / E alisava o canudinho / Pra me deixar no sufoco / Dava um tapinha no coco / Só pra me deixar doidinho / Ela balançava o coco / E também meu coração / E eu ali naquela sede / Parecendo o coco verde / Que ela passava a mão”.

Outras canções sertanejas, que hoje rivalizam com o funk na onda do duplo sentido:

“A Gata do BMW”, de Cezar & Paulinho. Trecho da letra: “Eu vou meter ela no pau / A gata do BMW me xavecando, xavecando / E o que eu quero é receber / Eu vou meter ela no pau / É top model, é sensual / Mas com ela eu jogo duro / Eu vou meter ela no pau“.

“Garagem da Vizinha”, de Sandro & Gustavo. Trecho da música: “Põe o carro / Tira o carro / A hora que eu quiser / Que garagem apertadinha / Que doçura de mulher / Tiro cedo, ponho a noite / E também de tardezinha / Tô até trocando óleo / Na garagem da vizinha”.

“Quem Quer Verdura”, de Felipe & Falcão. Trecho da música: “Quem é que quer verdura / Quem quiser pode falar / Você deu uma risadinha / Você quer verdura minha / E tá sem jeito de pegar”

“Eu Já Fui de Você”, de Gino & Geno. Trecho da música: “Eu só fui de você, / Eu não fui de mais ninguém / Você me fez feliz / E eu te fiz feliz também / Mas você foi embora / E nunca mais veio me ver / E eu só fico lembrando / Quando eu fui de você / Eu já fui de você, / Eu já fui de você / Meu amor eu não me esqueço / Que eu já fui de você”.

“Só Dou Carona pra Quem Deu pra Mim”, de Teodoro & Sampaio. Trecho da música: “Mas eu venci e dei a volta por cima / Mas quem me dava carona lembro bem eu sei quem é / Hoje eu tenho e meu carro importado / Que roda sempre lotado de gatinhas junto a mim / Quando recordo o passado fico pensando / E por isso que tô mudando o meu jeito de agir / E é por isso que eu sou assim, / Eu só dou carona pra quem deu pra mim”.

E tem gente se escandalizando com esse trecho da marchinha da BICA: “A pirralha faz pirraça / E a BICA entra na graça / A Greta quer ver pau em pé / A BICA abunda, bate forte e bota fé / Pois pau pegando fogo / Só quem quer ver é mané!”

Ah, vá chupar prego até virar tachinha, criatura! E pare de tanto mimimi...

O samba do afrodescendente doido!



Por Agamenon Mendes Pedreira

Pela primeira vez, desde Estácio de Sá, o Rio de Janeiro tem um carnaval gospel. Agora que o prefeito da Cidade Maravilhosa é o Bispo Marcelo Crivella, o tríduo momesco virou evangélico de cabo a rabo. Aliás, rabo não que no rabo é pecado.

Na sexta-feira de carnaval, as Mil Trombetas de Jericó, que vieram direto da Terra Santa, tocaram no início das festividades momescas. Mas desta vez Momo não foi coroado. Porque o único Rei é Jesus, que, aliás, foi um grande carnavalesco, pois andou pela Galileia inteira vestindo um abadá. Jesus Cristo desfilava em tudo que era bloco carnavalesco: Palestina é Quase Amor, Toca Sauuuuul, Cacique de Amós, Me Beija Que Eu Sou Fariseu, Ressuscita o Lázaro. E ainda fundou o Meu Suvaco no Jardim Botânico. A escola de samba do coração de Jesus era a G.R.E.S. Império Romano.

No carnaval, o pessoal apelava para Cristo quando acabava a cerveja, pois Jesus era o único que conseguia transformar água em vinho ali, na hora, para desespero dos executivos da Ambev, que patrocinavam o carnaval na Faixa de Gaza. Carnaval bom mesmo era nos tempos bíblicos, conforme nos ensina o Antigo Testamento. Os carnavais de rua de Sodoma e Gomorra deixam qualquer cidade do Brasil no chinelo com a sua caretice e conservadorismo. E tinha os Bailes como As Mil Línguas de Babel, o baile gay O Sacrifício de Isaac e a matinê infantil do Tio Herodes.

Aliás, folheando a Bíblia, o livro sagrado, me ocorreu uma dúvida, que atormenta a minha alma inquieta: será que Deus não está na lista da Odebrecht? Sigam-me o meu raciocínio: Deus é brasileiro e é empreiteiro (construiu o Céu e a Terra), portanto pode muito bem estar envolvido em escândalos de corrupção em obras faraônicas. Senão, vejamos: como ficou a prestação de contas das obras de transposição do Mar Vermelho para os judeus fugirem do Egito? E a Torre de Babel? Até hoje inacabada! E a Arca de Noé? Quem financiou? Os estaleiros da Sete Brasil?

E se Deus realmente estiver na delação premiada, será que Ele vai ter direito a foro privilegiado? Ou só o Moreira Franco? Chega de teologia. Vai começar a Quaresma, época de recolhimento, quando o Tony Ramos não pode fazer anúncio da Friboi.

(*) Armagedon Mendes Pedreira acha que o carnaval é o fim do mundo.

(Publicado no jornal O Globo, em 28 /02/2017)

segunda-feira, janeiro 20, 2020

A BICA e os miquinhos amestrados do ativismo nutella



No último sábado, meia dúzia de ativistas de sofá foram fazer um “protesto” em frente ao Bar do Armando. Como estavam interessados apenas em fazer uma foto histórica para ser postada no Instagram mostrando sua “indinguinassão morau (sic) contra isso tudo aí, aproveitaram o fato de o bar ainda estar praticamente vazio, posaram pro click e foram embora na miúda. O “protesto” transformou-se no “evento midiático” das redes sociais durante aqueles 15 minutos de fama dos babaquaras, já preconizado pelo artista plástico Andy Warhol nos distantes anos 70.

No mesmo dia, o escritor Chico Rogido, atualmente morando em Los Angeles, me mandava um papo reto pelo skype: “Porra, poeta, achei a marchinha genial e ri de rolar no chão. Tem culpa eu?... Quá, quá, quá... Mas qual é a parte em que vocês estão ofendendo a tataraneta da Greta Garbo?!...Juro que passei batido...”

Respondi mais ou menos assim: “Meu parceiro, quem quer procurar pelo em casca de ovo sempre acaba encontrando. Mas, cá pra nós, só uma mistura muito grande de mau-caratismo, estupidez e cinismo pode encontrar “apologia a crime de assédio e estupro” nesses versos de pura ironia a favor da floresta amazônica: A pirralha faz pirraça / E a BICA entra na graça / A Greta quer ver pau em pé / A BICA abunda, bate forte e bota fé / Pois pau pegando fogo / Só quem quer ver é mané! Estou desconfiando que os manés de ontem são os imbecis de hoje e que o nome deles é legião...”

Frases de duplo sentido, com alguns palavrões de permeio, a BICA utiliza desde a criação do seu próprio hino, em 1987 (“Na Banda Independente Confraria do Armando / Tá todo mundo dando, tá todo mundo dando...”), e nunca ninguém reclamou. Eis alguns exemplos pescados ao sabor do vento:

Em 1990: “Ainda existe liberdade cultural / No além-Tejo e na terra varonil / Cruzado livre em Portugal / E o Escudo português cá no Brasil”. Em 1996: “Ou dá ou desce, ou dá ou desce / Macedo deu a dica e o Armando agradece”. Em 1998: “Quem vai dar?... Quem vai dar? / Uma zagaia e o rabo pro Valois?”. Em 2000: “A banda não que ser presa, capicci / Aqui na BICA todo mundo cheira vick”. Em 2005: “Sou português, mas não sou otário / Fiz vasectomia na cabeça do Carvalho”. Em 2009: “Então presta atenção onde mete a BICA / A mocreia da Nicéia que botou no Pitta”. Em 2014: “Sou índio sim, eu sou / Pode perguntar pro Artur / Eu sou da tribo, eu sou / Da tribo dos Papaku”. Em 2015: “Meu periquito era legal / Entrava na BICA sentava no pau”. Em 2016: “Tá foda aguentar Bolsonaro alucinado / Que discrimina puta, o pretinho e o veado”.

Então quem são hoje esses novíssimos guardiões da moral e dos bons costumes, que querem censurar a letra da BICA com esse autoritarismo de fancaria? Não faço a menor ideia, mas como já escreveu Julian Adornay, no site Mises Brasil, “no final, o que temos hoje é apenas uma defesa simétrica da liberdade de expressão: só é lícito aquilo que me agrada. Aquilo que me ofende deve ser proibido. Só que defender a liberdade de expressão de minhas ideias não é mérito nenhum. Tampouco representa qualquer utilidade social.”

E Julian bate pesado: “O verdadeiro mérito está em defender a liberdade de expressão daqueles que nos ofendem profundamente, e então vencê-los no debate por meio da razão. A censura prévia é simplesmente o método a que recorrem os intelectualmente incapazes. No geral, se você é de esquerda e defende censura e punição àquilo que você considera discurso de ódio da direita, você está apenas defendendo o privilégio da sua seita de abolir a expressão das ideias alheias. E vice-versa. A universalidade da liberdade de expressão não existe para proteger aquilo que nos agrada, mas sim para proteger da censura aquilo que nos ofende.”

Em 1989, no lançamento do LP “Preto com um buraco no meio”, o pessoal do Casseta & Planeta emplacou uma balada romântica chamada “Mobral” que era um primor de frases de duplo sentido: “Um avião que entra no hangar / Um ganso se afogando em alto-mar / Uma minhoca se esfregando num buraco / Duas bolas na caçapa e um taco / Uma pasta de dente espremida até o fim / Uma índia segurando um aipim / Um psicanalista com a boca no charuto / O líquido e o produto interno bruto... bruto... / Talvez um escritor, um intelectual / Encontre a imagem ideal / Mas pra falar de amor só precisa sentimento / E ter feito pelo menos o Mobral... Mobral... / Distinguir consoante de vogal / Fazer conta até a casa decimal / Um pouco de concordância verbal”.

Em 1996, o grupo paulista Mamonas Assassinas conquistou uma legião de fãs entre a pirralhada com a música “Vira-Vira”, executada diariamente nas rádios e em programas de auditórios: “Fui convidado pra uma tal de suruba / Não pude ir, Maria foi no meu lugar / Depois de uma semana ela voltou pra casa / Toda arregaçada não podia nem sentar / Quando vi aquilo fiquei assustado / Maria chorando começou a me explicar / Daí então eu fiquei aliviado / E dei graças a Deus porque ela foi no meu lugar / Roda, roda e vira, solta a roda e vem / Me passaram a mão na bunda e ainda não comi ninguém / Roda, roda e vira, solta a roda e vem / Neste raio de suruba, já me passaram a mão na bunda / E ainda não comi ninguém! / Oh Manoel olha só como eu estou / Tu não imaginas como eu estou sofrendo / Uma teta minha um negão arrancou / E a outra que sobrou está doendo / Oh Maria vê se larga de frescura / Que eu te levo no hospital pela manhã / Tu ficaste tão bonita monoteta / Mais vale um na mão do que dois no sutiã / Roda, roda e vira, solta a roda e vem / Me passaram a mão na bunda e ainda não comi ninguém / Roda, roda e vira, solta a roda e vem / Neste raio de suruba, já me passaram a mão na bunda / E ainda não comi ninguém! / Bate o pé / Hmm, bate o pé / Oh Maria essa suruba me excita / Arrebita, arrebita, arrebita / Então vai fazer amor com uma cabrita / Arrebita, arrebita, arrebita / Mas Maria isto é bom que te exercita / Bate o pé, arrebita, arrebita / Manoel tu na cabeça tem titica / Larga de putaria e vá cuidar da padaria.”

Mas vocês acham que esses miquinhos amestrados do ativismo nutella são capazes de se interessar por alguma outra coisa que não sejam suas idiossincrasias replicadas ad nauseam nas redes sociais?...

O fascismo politicamente correto



Por Walcyr Carrasco

Vivo numa democracia. Como escritor, é difícil ter certeza disso. Acho que todo artista em algum momento teve a mesma sensação. Pessoas comuns também. A proibição em torno do que deve ser ou não falado é de lascar. As crianças são usadas como pretexto para proibições que nada têm de democráticas. Existe o veto claro, por meio de leis batalhadas pelas ONGs que se dizem bem-intencionadas. Mas também o realizado por grupos, professores e até pais de alunos que, eventualmente, criam situações constrangedoras para os mestres.

Houve um caso, há anos, em que uma professora adotou, num colégio, um livro em que dois adolescentes tinham uma relação sexual – a primeira e mais romântica de suas vidas. Um pai exaltado reclamou. A saída encontrada pela direção foi arrancar a página da cena em que se realizava o ato, de todos os livros já comprados. Mas Shakeaspeare não mostra, em seu inesquecível Romeu e Julieta, dois adolescentes passando uma noite juntos? Escrevo livros infantojuvenis. Nunca me aventurei a falar de sexo por um simples motivo: a maioria dos pré-adolescentes sabe bem mais do que eu poderia escrever!

Professores cedem à pressão. Escolhem livros que não ofereçam riscos de reclamação. Da mesma maneira, o Estatuto da Criança e do Adolescente proíbe colocar as crianças em situações constrangedoras. Aqui no Brasil, seria impossível filmar O exorcista, já que a menina possuída pelo demônio vive situações de violência.

Outro dia, estive num debate em que, como sempre, a televisão foi duramente atacada.

– Como vocês podem mostrar situações de violência? E as crianças?

Resolvi falar das histórias de fadas:

– Joãozinho e Maria são abandonados pelos pais numa floresta. Atraídos pela bruxa má, Maria se torna escrava doméstica e Joãozinho é preso em cárcere privado, para engordar. Será, então, devorado pela bruxa. Engana a canibal e mostra um ossinho de frango no lugar do dedo, para fingir que continua magro. Finalmente, ela resolve assá-lo. Com a ajuda de Maria, Joãozinho empurra a bruxa para dentro do forno. Apoderam-se de suas riquezas e voltam para os pais, que os recebem felizes.

Quando terminei, houve um silêncio. Ninguém pensara nesse e noutros contos de fadas, muito mais fortes que qualquer novela de televisão. Concluí:

– Mas o conto é instrutivo. Ajuda a criança a lidar, simbolicamente, com sentimentos de rejeição familiares. A saber que há um mundo difícil a enfrentar lá fora. Do ponto de vista do inconsciente, é rico em possibilidades.

As ONGs e os defensores do politicamente correto se apoiam em questões que julgam ser objetivas. Dividem o mundo entre bom e mau. Confundem o que é complexo com o nocivo. Mesmo a Cinderela, tão querida do público infantil, não pode passar por uma interesseira, que se casa baseada no status do príncipe? Hummm... mas a questão é que esse é um conto de formação, que novamente lida com a rejeição e a existência de qualidades intrínsecas ao ser humano, aquelas que sobressaem mesmo quando negadas.

O inconsciente não funciona como uma receita de bolo, em que determinados ingredientes levam aos mesmos resultados. É um sistema complexo e simbólico. Vivenciar a realidade por meio da ficção é uma preparação para a vida adulta e para este mundo, que não anda nada fácil.

As restrições já deixaram o campo da teoria. Além de livros inscritos num “índex educacional”, há escolas que aboliram o Dia das Mães e dos Pais. Argumentam que, com as novas famílias, divórcios, recomposições, deve ser comemorado o Dia da Família. Não é errado de um ponto de vista teórico. Poderia ser incorporado no calendário, assim como o Natal – que, para mim, sempre foi o dia da família, mas enfim... Defendo o Dia das Mães e dos Pais. É uma maneira de festejar um vínculo emocional, de reforçar os laços de amor, de dizer novamente: “Eu te amo”.

Estruturar o mundo por meio do politicamente correto é criar proibições que afetam as obras artísticas. Mais que isso, as relações com as crianças. De que adianta criá-las numa redoma, se o mundo lá fora está cheio de lobos maus e um dia será preciso enfrentar alguns deles?

Antes eu achava que o “politicamente correto” era apenas uma grande bobagem. É mais sério: tornou-se um exercício de controle, travestido de boas intenções. Sob a capa de democrático, revive anseio por um mundo autoritário e, por que não dizer, fascista.

(Publicado na revista Época em 27/10/2016)

Guia Politicamente Incorreto – Filosofia



Por Rodrigo Constantino

O filósofo Luiz Felipe Pondé sempre desperta da sonolência o senso comum. Sem medo de colocar o dedo em certas feridas, ele liga sua metralhadora giratória para todos os alvos que representam os mascotes preferidos dos politicamente corretos. Povo bondoso, pobre mais honesto que rico, índios virtuosos, todos aqueles grupos de “minoria” que servem para enaltecer a imagem (hipócrita) dos supostos altruístas, gente com “consciência social”, são dissecados no terceiro volume do Guia Politicamente Incorreto, desta vez da Filosofia.

Com uma escrita direta, por vezes divertida, Pondé não poupa ninguém. Muitos pingos são colocados nos is, retirando a máscara da hipocrisia que campeia nos tempos modernos, uma era de covardia moral provavelmente acima dos padrões passados. A praga do politicamente correto, resultado, em parte, da descoberta pelos idiotas de sua superioridade numérica, precisa ser combatida, pois ela tenta destruir aquilo que temos de mais importante: o pensamento individual. Nem todos terão a coragem de usá-lo, mas os poucos que usam fazem toda a diferença do mundo. E levam os demais nas costas, mesmo que sem o devido crédito por isso (ao contrário, são atacados com virulência pelos politicamente corretos).

Abaixo selecionei os 20 trechos do livro que mais gostei. Mas não deixem de comprar o livro e ler o conteúdo na íntegra. Trata-se de leitura rápida, que pode ser feita em um voo entre Porto Alegre e Rio de Janeiro, como foi meu caso. O tempo da digestão do conteúdo é que possivelmente será maior para muitos leitores, pois Pondé não liga para as suscetibilidades das “almas sensíveis” que evitam a todo custo escutar certas verdades. E, convenhamos, alguém precisa dizê-las. Lá vai então:

Uma das coisas que os politicamente corretos mais temem é a ética aristocrática da coragem levada para a vida cotidiana, porque ela desvela o que há de mais terrível no ser humano, a saber, que ele é o animal mais assustado e amedrontado do mundo.

A sensibilidade democrática odeia esta verdade: os homens não são iguais, e os poucos melhores sempre carregaram a humanidade nas costas.

A diferença entre a velha esquerda e a nova esquerda é que, para a velha, a classe que salvaria o mundo seria o proletariado (os pobres), enquanto, para a nova, é todo tipo de grupo de “excluídos”: mulheres, negros, gays, aborígines, índios, marcianos...

Os melhores lideram, os médios e medíocres seguem. Qualquer professor sabe disso numa sala de aula. Uma das maiores besteiras em educação é dizer que todos os alunos são iguais em capacidade de produzir e receber conhecimento.

Uma das qualidades supremas de [Ayn] Rand é ter percebido ainda em meados do século 20 que o mundo se preparava para desvalorizar aqueles mesmos graças aos quais os outros vivem, sob o papinho da “justiça social”. Se ela tivesse conhecido Obama, vomitaria.

A distopia descrita por [Ayn] Rand é a melhor imagem do mundo dominado pelo politicamente correto: inveja, preguiça, mentira, pobreza, destruição do pensamento, tudo regado pelo falso amor pela humanidade.

O povo é sempre opressor. Quando aparece politicamente, é para quebrar coisas. O povo adere fácil e descaradamente (como aderiu nos séculos 19 e 20) a toda forma de totalitarismo. Se der comida, casa e hospital, o povo faz qualquer coisa que você pedir.

No fundo, o indivíduo fracassado e o homem-massa invejam a liberdade do indivíduo verdadeiro porque ela lhes parece um luxo. Na realidade são primitivos demais para entender a maldição que é ser indivíduo e a dor que é ser livre sem pertencer a bandos.

Achar que podemos transformar terroristas muçulmanos em membros do partido democrata americano, como pensa o atual presidente dos Estados Unidos de origem muçulmana Barack Hussein Obama, é uma piada. Basta se perguntar como, por exemplo, eles aceitariam o casamento gay em seus países.

Quando você começa a pensar que tribos que não conheciam a roda até ontem, como alguns índios brasileiros e alguns povos africanos, podem ser nossa esperança, poderá acordar sendo um romântico idiota.

Os idiotas românticos de hoje em dia esquecem que câncer é tão natural quanto os passarinhos e pensam que a natureza seja apenas os passarinhos.

Toda tentativa de proibir a exibição da beleza feminina é um ato nascido da inveja.

Nada é mais temido por um covarde do que a liberdade do pensamento.

A mídia muitas vezes parece uma reunião de centro acadêmico de ciências sociais na forma de simplificar o mundo ao nível de uma menina de 12 anos.

Se você bate foto dentro do avião, é porque não há esperanças para você. Ficar feliz por sair de férias de avião é brega.

Uma coisa simples que aparentemente muita gente não entende: lindos são apenas seus filhos para você, para os outros são pequenos seres humanos mal-educados fazendo barulho.

Não conheço ninguém que adote o politicamente correto e não seja mau caráter, fora aqueles que têm idade mental de 10 anos.

Dizer que se é budista (ninguém deixa de ser católico ou judeu e vira budista em três semanas num workshop em Angra dos Reis ou num centro budista nas Perdizes, em São Paulo) pega bem em jantares inteligentes, porque dá a entender que você não é um materialista grosseiro, mas sim um espiritualista sustentável. Basicamente, uma religião sustentável não precisa sustentar nada a não ser uma dieta balanceada, uma bike importada e duas ou três latas de lixo de design em casa, para reciclagem de lixo.

sexta-feira, janeiro 17, 2020

A BICA e a hipocrisia que não ousa dizer seu nome



Por Simão Pessoa

Estamos em 2008. O tema da irreverente Banda Independente Confraria do Armando (BICA) é uma crítica bem-humorada à Zona Franca Verde e ao quiproquó causado pelo artigo “Arca de Noé”, do professor universitário Sérgio Freire, em que criticava alguns tipos de professores. Um dos versos da marchinha intitulada “Arca da Lambança” dizia “Caboco não é mais mané / Dudu paga 50 / Pra manter o pau em pé”. Ninguém descontextualizou o verso para fazer ilações de que o governador sofria de disfunção erétil ou pagava de garoto de programa. Sim, os tempos eram outros.

Estamos em 2020. Dessa vez, o tema da irreverente BICA é uma crítica bem-humorada à crescente devastação da floresta amazônica. Aí um imbecil descontextualiza um verso da marchinha “Pirralha faz pirraça” (“A Greta quer ver pau em pé / A BICA abunda, bate forte e bota fé”), posta nas redes sociais e banca o lacrador desmiolado: “Além de ser apenas uma criança, Greta tem síndrome de Asperger, um tipo de autismo diagnosticado quando ela tinha 11 anos. O verso é visto como uma agressão desnecessária à garota”.

O que mudou nesses 12 anos?!

Bem, em 2008, o iPhone do Steve Jobs tinha apenas um ano de vida e custava os olhos da cara enquanto as redes sociais estavam apenas engatinhando. A popularização do smarthphone nos anos seguintes contribuiu para a popularização das redes sociais, o que levou o filósofo e escritor italiano Umberto Eco, em 2015, a proferir uma tirada clássica: “As mídias sociais deram o direito à fala a legiões de imbecis que, anteriormente, falavam só no bar, depois de uma taça de vinho, sem causar dano à coletividade. Diziam imediatamente a eles para calar a boca, enquanto agora eles têm o mesmo direito à fala que um ganhador do Prêmio Nobel. O drama da internet é que ela promoveu o idiota da aldeia a portador da verdade”.


Mas o caldo de cultura não estaria completo se não surgisse a praga do “politicamente correto” como se fosse uma infestação virulenta das redes sociais. Os imbecis agora tinham uma causa azul, mas levemente desbotada. Os defensores da mentalidade ”politicamente correta”, como se sabe, condenam todo e qualquer gesto que possa ser visto como remotamente ofensivo contra quem quer que seja, já dizia o saudoso Geneton Moraes Neto (leiam o texto dele aí no blog). Piadas sobre minorias? Nem pensar! Marchinha de carnaval com versos de duplo sentido? É caso de colocar os autores em uma fogueira da Santa Inquisição!

Essa percepção obtusa do humor elevou ao cubo a estupidez de um grupo de mulheres que viu no verso descontextualizado da marchinha já citada uma “erotização da adolescente e uma apologia aos crimes de assédio e estupro, além de desrespeito às mulheres”. Olha, manazinha, mas se você conseguiu ver isso tudo num simples verso de uma marchinha de carnaval, so sorry, mas você tem problemas! Freud explica.

Não custa lembrar que parte da letra da marchinha que as feminazi querem censurar diz o seguinte: A pirralha faz pirraça / E a BICA entra na graça / A Greta quer ver pau em pé / A BICA abunda, bate forte e bota fé / Pois pau pegando fogo / Só quem quer ver é mané! 

É uma exortação para quem não for zé mané ajudar a defender a floresta de futuras queimadas e não um convite a uma orgia sexual como querem dar a entender os invejosos maledicentes de plantão.

E como se comporta essa legião de imbecis? Simplesmente assim: algum imbecil se prontifica a fazer o papel de “coelho”. É ele que vai iniciar o bundalelê politicamente correto. O “coelho” descontextualiza o verso e publica sua “analise antropológica” em uma rede social. O rebanho de ativistas de sofá começa a replicar o texto inicial nos seus timelines. Aí, um grupo da “tchiurma” resolve interpelar a banda na justiça com argumentos mais risíveis que o próprio verso satanizado. O “coelho” que deu início a tudo repercute a interpelação.

Sim, é a cobra engolindo o próprio rabo. Isso é “new jornalism?”

Não, porra, isso é jornalismo gonzo da pior extração. Em um país medianamente informado, a fabricação de notícias em causa própria seria crime hediondo. Infelizmente, ninguém aqui na taba sabe o que é jornalismo gonzo. Seria cômico se não fosse trágico.

Bom, mas se não censuraram nenhuma letra da BICA até hoje não será agora que vai ser quebrada a tradição. Nossos advogados já estão a postos. Quem viver, verá! Taqui pra vocês, chupins desmemoriados!

PS: E é essa mesma turma politicamente correta que quer enfiar na goela dos biqueiros uma música apócrifa com agressões à honra e à dignidade do prefeito e de sua esposa. Assim caminha a humanidade. Giants.

O Manual Oficial do Politicamente Incorreto



Por Geneton Moraes Neto

Desde que a praga politicamente correta tomou de assalto as mentes simplistas, pega mal dizer que o feio é feio, a gorda é gorda, o negão é negão, o gay é gay, o branquelo é branquelo, o burro é burro, o bêbado é bêbado, o idiota é idiota.

Qual é o problema? “Pega mal” dizer que um cego não pode ser fotógrafo. Mas peço licença à patrulha para dizer: não pode! Vi outro dia um fotógrafo cego pontificando na TV sobre enquadramento. Falava francês, claro (não há língua que se preste tanto a imposturas intelectuais). Cego falando de fotografia é algo tão grave e despropositado quanto este locutor participando de desfile de moda. Não há qualquer desrespeito na constatação do absurdo.

Fiz ao meu demônio-da-guarda a pergunta que todos fazem na surdina: por que é que o fotógrafo ceguinho não arranja outra profissão? Por que não aprende música? Por quê? Por que precisa aparecer na televisão falando de enquadramento fotográfico? Por quê? Por quê? O demônio-da-guarda se quedou silente.

Diante da mudez do bicho, desisto de lançar perguntas ao vento sobre o fotógrafo ceguinho e a miríade de personagens absurdos que compõem, com ele, o elenco desta nossa grande comédia de erros. Quem sabe, o melhor é deixar que o circo planetário siga adiante, sem ser importunado.

Mas…vasculho meu Museu de Miudezas Efêmeras (era assim que Jorge Luís Borges definia os jornais) em busca de um relato sobre dois ingleses que, faz algum tempo, lançaram um livro para provocar a estupidez politicamente correta reinante.  Voilà:

Defensores dos bons costumes e das boas maneiras, fiquem alertas. Militantes da mentalidade ”politicamente correta”, saiam da frente. Mal-humorados que levam tudo a sério, preparem o estômago.

Porque desembarcou nas livrarias da Inglaterra um dos mais ”politicamente incorretos” textos já produzidos. Não por acaso, a obra se chama ”O Manual Oficial do Politicamente Incorreto” (“The Official Politically Incorrect Handbook”). Os autores: dois escritores “free-lancers” ingleses, chamados Mark Leigh e Mike Lepine. A editora: Virgin Books. A missão: demonstrar aos incrédulos que, ao contrário do que acontece nos Estados Unidos, a Inglaterra não parece disposta a tolerar os excessos da mentalidade politicamente correta.

Os defensores da mentalidade ”politicamente correta”, como se sabe, condenam todo e qualquer gesto que possa ser visto como remotamente ofensivo contra quem quer que seja. A intenção pode até ser louvável. O problema é que o temor de ferir susceptibilidades alheias terminou criando exageros. Piadas sobre minorias? Nem pensar! Resta uma pergunta: onde é que fica o senso de humor – uma instituição secularmente cultuada na Grã-Bretanha?

Com o lançamento do livro da dupla Leigh & Lepine, os ”politicamente incorretos” lançam um novo – e bem-humorado – golpe contra os militantes radicais da pretensa correção política. Sem medo das patrulhas politicamente corretas, os dois ingleses reúnem, em 271 páginas, opiniões, tiradas e comentários que farão corar de raiva os apóstolos do ”politicamente correto”.


Eis uma amostra das estocadas politicamente incorretas da dupla inglesa:

1.”Por que é hora de começar logo uma nova Guerra das Malvinas? Como a gente vai perder mesmo a próxima Copa do Mundo, então é melhor arranjar logo alguma coisa para comemorar”.

2.”Por que estudar matemática na escola é uma completa perda de tempo? Ninguém jamais ficou rico por saber calcular o mínimo denominador comum”.

3.”Por que é tão bom ser estúpido? Porque um estúpido sempre encontrará o que ver na televisão”.

4. ”Por que a guerra é melhor que a paz? Dê um pulo no vídeo-clube. Quantos filmes de paz existem lá ?”.

5. ”Por que o sexo feminino é inferior? Tente se lembrar do nome de uma batalha importante vencida por uma mulher….” 

6.”Por que a França pode continuar a fazer testes nucleares no Pacífico? Porque seria uma completa irresponsabilidade fazer os testes no centro de Paris”.

7.”Por que é bom frequentar prostitutas? Porque, na hora H, elas dizem coisas como ”oh, baby!”, “oh, sim, sim!”, em vez de ”você levou o gato pro quintal?”.

8.”Por que é indispensável ver o discurso de Rainha na televisão no Dia de Natal? É uma excelente oportunidade para toda a família ir ao banheiro, antes de começar a ver, pela quinta vez, os ”Caçadores da Arca Perdida”.

9.”Por que ninguém deve se preocupar com a poluição das águas? Porque não vivemos nos rios”. 

10.”Por que é perfeitamente aceitável usar casaco de pele? Todos os animais usam. Ninguém nunca reclamou”.

11.”Por que é bom ser um branco anglo-saxão? A polícia nunca dá em cima de você”.

12.”Por que precisamos dos políticos? Porque, quando nos comparamos com eles, nos sentimos honestos e virtuosos”.

13.”Por que que é bom ensinar religiões alternativas nas escolas? Porque assim saberemos que não estamos perdendo nada. Além de tudo, cânticos e rezas de outros povos são em geral hilariantes…”.

14.”Por que a Inglaterra deve gastar mais dinheiro recrutando soldados para o exército do que contratando médicos para os hospitais públicos? A Rainha ia achar um tédio passar em revista uma tropa de especialistas em ouvido, nariz e garganta…”.

15.”Por que a arte moderna é uma porcaria? Qualquer coisa que parece melhor quando estamos bêbados do que quando estamos sóbrios é suspeita. Além de tudo, um tijolo é um tijolo: qualquer criança de cinco anos sabe. E um carneiro morto é um prato: não é um objeto de arte”.

16.”Por que a Previdência Social deve financiar as operações para aumentar os seios, em vez de gastar dinheiro com transplantes? Porque, ao contrário do que acontece com os seios, os homens jamais poderão enfiar o rosto entre rins transplantados e dizer ”glub, glub, glub”.

17.”Por que o Império Britânico era bom? Se o império não tivesse existido, o Cinema Império, no centro de Londres, provavelmente se chamaria hoje Odeon, o que criaria confusão no público, porque já existe um outro Cinema Odeon na cidade”.

18.”Por que o Budismo jamais pegará na Inglaterra? Porque os ingleses acham que é melhor ir para o inferno do que viver aqui por não sei quantas encarnações”.

19.”Por que os castigos corporais devem ser adotados novamente na Grã-Bretanha? Poderemos gravar os castigos e vender as fitas todas para a Alemanha”.

20.”Por que as companhias não devem dar emprego a ninguém com mais de sessenta anos? Porque os aparelhos de surdez podem causar interferências nos sistemas de alarme contra incêndio”.


Antes de começar a entrevista, Mike Lepine pediu licença para cometer o que chama de ”um ato politicamente incorreto”: acender um cigarro. O ”Manual Oficial do Politicamente Incorreto” pretende fazer o público rir, mas há um traço sério na obra:

– A propagação da mentalidade politicamente correta me faz lembrar o livro ”l984”, em que George Orwell fala da manipulação das palavras através da criação de um novo idioma – a ”novilíngua”. É o que os politicamente corretos estão fazendo, na prática: querem mudar nossa maneira de pensar mudando as palavras. Mas não queremos ser manipulados por eles!

Uma constatação: a mentalidade politicamente correta é nociva porque não permite que se façam julgamentos sobre o que é bom e o que é ruim. Mas os “padrões de julgamento” são necessários.

O politicamente incorreto Lepine admite que a mentalidade politicamente correta “pode até ter bons aspectos. Ninguém obviamente quer viver num mundo em que uns odeiem os outros. Ninguém – diz Lepine – quer racismo ou sexismo. O problema é como os politicamente corretos atuam: terminam se tornando, eles próprios, ofensivos! A correção política é uma camisa de força. Os adeptos desta mentalidade ficam brigando com as palavras, em vez de se ocuparem dos reais problemas. A mentalidade politicamente correta não permite que você faça julgamentos sobre o que é bom e o que é ruim. Não há padrões, portanto. Isto é nocivo! Quem luta contra a mentalidade politicamente correta tenta, na verdade, estabelecer padrões de julgamento – que são necessários!

Lepine se defende de eventuais críticos:

– Tudo o que fizemos, no Manual, foi escrever coisas que as pessoas normalmente dizem nos pubs, numa roda de amigos. Ali, a verdadeira opinião de cada um aparece. As pessoas são todas, por natureza, politicamente incorretas. Mas eu simplesmente não consigo ver que danos ou prejuízos o senso de humor pode causar.

Ninguém escapa da pena afiada dos dois autores politicamente incorretos – nem Tarzan e muito menos a classe operária. Aqui, eles explicam por que Tarzan é o “modelo ideal para um operário” – um exemplo típico do humor politicamente incorretíssimo:

”1.Só se comunica através de grunhidos; 2.Gosta de andar sem camisa; 3.Não tem a menor idéia sobre a identidade do pai; 4.Aprendeu suas maneiras com um chimpanzé; 5.Carrega uma faca; 6.E vive aterrorizando a população negra da vizinhança”.

(publicado no site “Dossiê Geral”, em setembro de 2009)

A praga do politicamente correto e as tradições que somem



Por Cláudio Levada

Vendo a noite bonita de São João, o equivalente cristão às festas pagãs do solstício de verão (no hemisfério norte), que celebravam o sol e a fertilidade, noto que faltam no céu não só os balões que se tornaram delitos – com argumentos corretos, por sinal –, mas também os fogos de artifício, cada vez mais estigmatizados pela crueldade com os animais e pelo sossego da vizinhança.

Sem querer polemizar, e já polemizando, o que mais se vê é o monopólio cultural do politicamente correto. Os fogos não podem, a comida das festas juninas não é saudável, as fogueiras poluem, piada sobre caipira não pode porque discrimina o homem simples do campo etc, etc. O politicamente correto virou uma praga.

Viver está cada vez mais sem graça. Piadas sobre homossexuais para uma parcela da sociedade são crimes; sobre portugueses e sua burrice, idem (burrice que nunca existiu, claro, mas que sempre gerou situações de humor). Falar de loiras é diminuir a mulher, de cabelo duro é racismo, de torcer pela polícia contra o marginal é contra os direitos humanos (se falar que “ainda bem” que um assaltante morreu em um confronto, então, haverá um verdadeiro linchamento moral em prol das vítimas da sociedade capitalista).

E por aí vamos, sempre em proteção às chamadas minorias, que são tantas que esse caráter de minoria tem desaparecido gradativamente: quem não tenha mais do que 60 anos, seja heterossexual, ache que bandido é bandido por opção e deve ser reprimido, não seja da esquerda caviar etc. tem preferido ficar quieto, no seu canto, porque na voz das legiões será ou fascista, ou um nefasto neo liberal opressor, machista, sexista ou sei lá mais que tipo de ser desprezível.

Confesso-me cada vez mais perplexo. Evito piadas, opiniões heterossexuais, brincadeiras com loiras ou com qualquer etnia, soltar estalinho perto de cachorros ou gatos, falar de política, religião ou da saia da vizinha etc etc. Vou me limitar ao futebol, mas sem zoar quem perde, que poderá pedir indenização por danos morais contra mim pela horrível humilhação a que foi exposto; e sem soltar fogos quando for campeão ou ganhar do maior rival, para não ser processado por alguma sociedade protetora dos animais. E se tomar quentão não dirija!!

(*) Cláudio Antonio Soares Levada é Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo. Mestre/USP e Doutor/PUCSP em Direito Civil. Professor e Coordenador do Núcleo de Prática Jurídica do Unianchieta. Professor da Pós-Graduação da PUCSP em Direito Civil. Diretor Jurídico da Associação Paulista dos Magistrados.

Esse é o “Verão da Inguinorança”


Por Edson Aran

Em épocas mais civilizadas, todo verão tinha um tema, tipo o “Verão da Lata”, o “Verão da Asa Delta”, “O Verão do Nosso Descontentamento” etc. Está na hora dessa moda voltar e já tenho um tema para a estação mais calorenta do ano: o “Verão da Inguinorança”. Tem que escrever “Inguinorança” em vez de “ignorância” para homenagear Abraham Weintraub, ministro da educação (hahaha) do governo Bolsonaro (hahahahahahahahaha). Weintraub abriu o ano escrevendo “imprecionante” numa mensagem para o chefe que, felizmente, é ainda mais analfabeto do que ele. Ainda bem. Assim o ministro não corre o risco de perder o emprego.

Seria injusto, no entanto, atribuir a “inguinorança” atual ao governo Bolsonaro. A política apenas expressa movimentos socioculturais mais profundos e esse conluio de fundamentalistas e loucos fugidos do hospício que ocupa temporariamente o poder é a consequência, não a causa.

Veja o caso do Porta dos Fundos e do Ricky Gervais, por exemplo. Os mesmos caras que criticaram a censura ao Porta, saíram por aí dizendo que Gervais foi “tóxico” no Globo de Ouro. Antigamente, só a direita dizia que o “pobrema do mundo é os tóchico”, agora não. A esquerda também acha. Para defender o Porta, teve até gente que atacou o Painho do Chico Anysio e o Renato Aragão.

Mesmo Gregório Duvivier, que pertence a uma longa linhagem de gente bem-criada e bem-educada, caiu na armadilha. Primeiro: fazer resenha-retrô de produtos culturais do passado é ridículo. Segundo: Painho é um pai de santo gay, mas as crenças dele não são o objeto da piada.

Veja bem: dei boas risadas com o especial do Porta, considero que ele é um avanço na sátira nacional, e penso que nada, absolutamente nada, deve ser sagrado no humor. Ponto. Mas comparar o Painho com o Porta, só aprofunda a “inguinorança” que envolve a questão. O que está implícito na jogada é uma espécie de “censura reversa” ao trabalho de Chico Anysio, um gênio do humor que devia ser mais valorizado.

A intolerância contra o humor — seja piada com bicha, piada com Jesus ou piada com Jesus bicha — faz parte do mesmo “momentum” cultural que produz Bolsonaro, Trump e Putin. E que antes deu em Mussolini, Hitler e Stálin. E não adianta colocar a mão na cintura feito um bule e gritar “Isso é falta de simetria porque bullying é diferente de sátira!”

Ah, é? Os católicos e evangélicos acham que o especial do Porta é bullying e não sátira. E a Woke Culture pensa que Ricky Gervais não fez sátira, mas sim bullying. E aí, como é que fica? É claro que quem joga molotov ou invade redação atirando, como aconteceu no Charlie Hebdo, é muito mais desclassificado do que quem promove “cancelamento” em rede social. As ações não são mesmo simétricas, mas o caldo cultural que produz as duas coisas é o mesmo, percebe?

Outro exemplo do “Verão da Inguinorança”. A defensoria pública do Ceará soltou comunicado avisando que “religião não é fantasia” e que não pode sair pra brincar carnaval vestido de padre, judeu, orixá, muçulmano etc porque isso “ofende tradição e crenças de outros povos”. No meme divulgado no Twitter tem um cara vestido de “árabe”, o que já evidencia a confusão mental entre etnia e religião, mas esse é o “Verão da Inguinorança”, então tudo bem. Ano passado, em São Paulo, teve bloco de carnaval proibindo marchinhas tipo “Cabeleira do Zezé” e “Maria Sapatão”. E veja que “sapatão” é uma palavra “resinificada” pelas próprias lésbicas, mas cantar a música não pode. Ah, tenham dó. Você reclama do Bolsonaro, mas tem um “Bolsonarinho” vivendo dentro de você como se fosse uma lombriga. Vai tomar um vermífugo, porra.

Gente que se leva a sério é que faz do mundo a porcaria que ele é, daí a importância da irreverência. Na vida, eu penso que só precisamos ser sérios numa coisa: na hora de enfrentar a “inguinorança” nas suas muitas e variadas formas. O verão já é uma época insuportavelmente calorenta. Tudo o que a gente não precisa é da “inguinorança” pra deixar estação ainda pior.

terça-feira, janeiro 14, 2020

Como fazer humor com lado



Por Edson Aran

A primeira coisa é descobrir de que lado você está. Para resolver isso, imite o Tião Macalé: “Ô crioula difícil… tchan!” Se você for amordaçado e cancelado, você está à esquerda. Se você for endeusado e celebrado, você está à direita. Se sua plateia conhece o Tião Macalé, você está em 1982. Se você estiver no lado esquerdo tem permissão pra fazer piada com pastor, terraplanista e Pinochet. Se você estiver no lado direito tem permissão para fazer piada com pai de santo, sebastianista e Fidel.

Piadas com Adolf Hitler estão liberadas nos dois lados. O cara é considerado de esquerda por quem está à direita e de direita por quem está à esquerda. Hitler, na real, sempre foi de direita, mas nós vivemos em tempos onde tudo que é sólido se desmancha no ar, feito avião da Avianca.

Alguns grupos radicais são proibidos nos dois lados. Feminismo e Islamismo, por exemplo. Vai dar ruim, tô avisando. Religião é tema sutil. Um pregador anti-aborto é mais tolerável se for católico e mais execrável se for crente. Não me pergunte por quê. É o mesmo lance do pai de santo e do pastor. Aparentemente, alguns amigos invisíveis são mais bacanas que os outros. Na dúvida, risque “religião” da sua lista de temas. E “aborto”, é claro. Nem devia ter entrado.

Corrupção é outra coisa delicada. Se você está à direita só pode criticar corruptos da esquerda. Se você está à esquerda só pode criticar corruptos da direita. Se você não se incomoda com a corrupção, está fora do Brasil. A regra é clara: se a sua agenda política vem antes da sua piada, você está à esquerda. Se a sua direita vem antes da sua piada, você é uma agenda política. Se o humor é sua única política, você terá sempre a agenda livre. Aproveite para ir ao cinema.

Humor é ao mesmo tempo um estilo e um gênero. Você pode usar o humor para construir ensaios eruditos como, digamos, Umberto Eco. Isso é estilo. E você pode ter o humor como o centro da sua produção tipo, sei lá, o P. G. Wodehouse. Isso é gênero.

E o humor também é uma escola literária. Ao longo da história, sempre existiram pessoas que olham pra toda essa desgraceira e dá risada em vez de chorar. Aristófanes, Miguel de Cervantes, Millôr Fernandes, Karel Capek, Vladimir Nabokov, Woody Allen. Ainda bem. Sem humor, a vida é chata como um dramalhão mexicano, só que sem vilãs de tapa-olho pra gente se divertir.

Vamos a um exercício prático. Imagine o seguinte esquete. Brasília, reunião de ministros. O titular da Economia faz a seguinte proposta: para aumentar o PIB e diminuir a fome, os favelados do Brasil estão liberados para comer os próprios filhos. O ministério, inclusive, vai lançar um fabuloso livro de receitas para ser distribuído gratuitamente à população.

Você escreveria essa piada?

1 — Não! É cruel demais e os meus amigos do Leblon nunca mais vão me convidar para tomar suco de melancia e comer sushi.

2 — É claro que não! Essa é uma proposta econômica das mais sensatas e tem o meu total apoio. Eu não brinco com coisa séria.

O esquete acima é baseado no texto “Uma modesta proposta”, escrito por Jonathan Swift em 1729, e considerado um dos pilares do humor sarcástico na literatura. Swift só trocou os favelados (perdão, moradores de comunidades) por irlandeses que, no século 18, eram os favelados do Velho Mundo (perdão, moradores da comunidade europeia).

A melhor maneira de fazer humor com lado é evitar o humor. Um humorista deve criticar o que conhece. E isso pressupõe rir, antes de tudo, do que está ao seu lado. Afinal, se o cara não consegue tirar sarro do que está perto dele, como vai tirar sarro do que está longe?

Para fazer humor com lado, deixe o humor de lado.

sábado, janeiro 11, 2020

BICA 2020: De volta para o futuro!



No início da terceira década do Terceiro Milênio, a civilização se vê às voltas com uma série de questões que muitos julgavam já terem sido superadas: o descaso pelo aquecimento global, a escalada do genocídio indígena, o aumento da intolerância religiosa e a negação da própria ciência (o crescimento dos defensores da conspiratória teoria da Terra Plana está no cerne de todas as muvucas anteriores).

Com o tema “Pirralha faz pirraça e a BICA entra na graça”, sugerido pela biqueira Neidinha, esposa do Manuel Batera, a banda carnavalesca mais escrachada de Manaus resolveu cutucar a onça com vara curta e mostrar que o aquecimento global é uma ameaça real que precisa ser combatida, nem que seja com doses cavalares de ironia e bom humor.

A exemplo dos anos anteriores, o tema foi escolhido na segunda quinzena de dezembro do ano passado durante uma reunião da velha guarda dos biqueiros no Bar do Armando, regado a cerveja e xis-porco.

– Não deixar a Amazônia se transformar em uma nova Austrália me parece uma questão fundamental, como já denunciava o maestro Adelson Santos nos anos 80 – resumiu o artista plástico João Rodrigues, um dos biqueiros presentes na reunião.

Mas os biqueiros não estão sozinhos nessa tarefa. Basta lembrar que, recentemente, a “pirralha” Greta Thunberg foi eleita a personalidade do ano pela revista Time, por inspirar movimentos estudantis de todo o ocidente na luta contra o aquecimento global e em defesa da natureza. Aos 16 anos, ela é a mais jovem personalidade contemplada com esse título.

Também não é a primeira vez que a BICA investe na questão ecológica. No carnaval de 1992, com o tema “No Reino do Jacaré”, os biqueiros denunciaram a tentativa de se introduzir no Amazonas a caça seletiva de jacarés a partir de uma notícia nunca confirmada de que havia uma superpopulação de répteis assassinos no município de Nhamundá.

A marchinha da banda ia direto na ferida: “Assim não dá pé / Assim não dá pé / Pegar pra pato / O pobre do jacaré / Tão me culpando de tudo / Por todas as mazelas da população / Escola e Saúde falidas / Falta d’água, esculhambação / Querem tirar o meu couro / Sou o culpado pela devastação / A Lourdes disse e o Armando confirmou / Jacaré não é boto nem vilão / É ou não é?... / Coitado do jacaré!”

Os biqueiros também recuperaram uma tradição quase esquecida de homenagear como letristas os foliões da banda que atravessaram o espelho. A letra da marchinha deste ano é atribuída ao cantor e compositor Afonso Toscano (um dos fundadores da banda), ao radialista Joaquim Marinho, ao poeta Almir Graça e ao pagodeiro Agnaldo do Samba, todos falecidos no ano passado.

– É uma maneira de perpetuarmos a memória dos verdadeiros baluartes da brincadeira! – explica Ana Cláudia Soeiro, atual responsável por colocar a banda na rua desde o falecimento de seu pai, o comerciante Armando Soares, em abril de 2012.

Segue abaixo a letra oficial, que será gravada pelo rei Davi Assayag, com arranjos do maestro Reina e também homenageia o cantor e compositor Adelson Santos:

Não mate a mata por favor

Tem toco cru pegando fogo pelo chão

Não mate a mata, não mate a mata não

A verde virgem bem que merece consideração


Não tem culpa eu, não tem culpa tu

Não tem culpa ninguém

Mas culpa todo mundo tem

Salve a selva hoje

Pra vida salvar também


A pirralha faz pirraça

E a BICA entra na graça

A Greta quer ver pau em pé

A BICA abunda, bate forte e bota fé

Pois pau pegando fogo

Só quem quer ver é mané!


A hora é essa pra salvar o planeta

Chega de papo, não vem com mutreta

Não entra nessa de quebrar o galho

Se não, ora pois, vá pra casa do c'aralio


Entra na BICA pra não se queimar

A BICA é grande, você vai gostar

Só dá prazer e não faz mal

Levanta sua bandeira nesse carnaval

domingo, janeiro 05, 2020

Lúcio Preto e o desafio da pedra de gelo



Dezembro de 1989. A cachorrada reunida no Top Bar está dividida em torno de um desafio lançado pelo abusado Lúcio Preto: de que ele é capaz de ficar sentado nu em uma pedra de gelo durante meia hora.

O empresário Frank Cavalcante comanda a turma de 15 pessoas que acham que ele não aguenta.

O boêmio Nei Parada Dura comanda a turma (eu, ele e Lúcio Preto) que acha que ele aguenta.

Começam as apostas, em dinheiro, do tipo “the winner takes it all” (“o vencedor leva tudo”).

Não lembra da canção do ABBA, não?! Ah, tudo bem...

Rubens Bentes e Jones Cunha vão até a Frigelo, ali na final da Rua Carvalho Leal, compram uma pedra de gelo de respeito e retornam ao bar, para tirar a prova dos nove.

A pedra de gelo mede um metro por 50cm.

Calculo que aguenta três pessoas sobre ela, sapateando músicas escandinavas.

Lúcio Preto faz uma única exigência: quer ficar sentado de costas para a Rua Borba, em virtude de existir uma parada de ônibus na frente do boteco.

A exigência é aceita. A pedra é colocada quase no meio-fio da Rua Borba, mas ainda dentro dos limites do bar.

Por volta das 16h de um sábado, Lúcio Preto fica completamente pelado, senta na pedra de gelo, cobre as partes pudendas com a cueca e o resto dos cachorros começa a contar o tempo.

Os transeuntes que passavam em direção à feira livre da Cachoeirinha ficavam intrigados com aquela presepada.

Quando o primeiro ônibus para em frente ao bar, os passageiros fazem um tremendo alvoroço para apreciar aquela inusitada situação.

Lúcio Preto nem aí.

Com 10 minutos, as apostas começam a dobrar.

Meia hora depois do início da prova, o quarto-zagueiro se levanta.

Na pedra de gelo, lindamente esculpida, suas duas nádegas.

Nei Parada Dura começa a receber a grana das apostas.

O dinheiro apurado é suficiente para levar Lúcio Preto para uma consulta na Drogaria Menescal, porque ele não estava mais sentindo a própria bunda.

O farmacêutico Francisco Menescal ficou louco:

– Caralho! Faltou muito pouco para essa tua bunda não começar a entrar em processo de gangrena terminal! Que merda foi que vocês andaram aprontando?...

Nei Parada Dura explica o acontecido.

O farmacêutico receita antibióticos de última geração.

Lúcio Preto passou quase dois meses sem poder beber e sem poder se sentar sobre a própria bunda.

Mas manteve a dignidade de cumprir seus desafios, apesar de tudo.

Sem contar que, com a grana das apostas, ele comprou um fusquinha azul do empresário Louro Sarará, amigo do Frank Cavalcante.

Assim nascem as lendas.

sábado, janeiro 04, 2020

Feliz ano... o quê mesmo?



Por Ivan Lessa, de Londres

Lá se foi mais um ano, lá se foram mais 200 mil neurônios. Parece que é isso que queimamos no decorrer de 365 dias. Ou um dia. Mês, talvez. O neurônio é uma célula. Dizem. Importantíssimo para nossas faculdades mentais. Por que celebramos a passagem do ano? Em memória das células que se foram, que descansem em paz.

Como a humanidade não prima pela inteligência – olhem ao redor, humanos irmãos –, acha que o fato de se aproximar mais um pouquinho de bater com as dez, vestir o paletó de madeira, pedir o boné, ou o eufemismo gracioso que quiserem para o velhusco “bater com as botas”, é fato a ser comemorado com flores a iemanjá aí, cervejadas na rua aqui.

Talvez, pessimista e cético que sou, vai ver o que estão comemorando mesmo é o fato de terem todos, ou termos todos, ultrapassado mais um ano razoavelmente de pé, sem partir na horizontal para parte alguma. De qualquer forma, maiuscular Feliz Ano Novo. Passar bem, neurônios. Estamos todos mais velhos e tão burros quanto sempre. Mas sobrevivemos.

Mal chega ao fim um ano, quando as listagens vestem seu black tie na mídia, e a ciência e a medicina, essas mesmas que descobriram o raio do neurônio, começam a dar palpite, na tentativa óbvia de nos animar em meio aos horrores de sempre que nos cercam pelos quatro cantos da Terra e os sete de nosso corpo.

Cientistas, muitos com diploma provando, insistem em desfazer mitos. Papai Noel, a maior parte de nós já sabe que não existe. Deus? Bem, Deus teve um grande ano em 2007. Sua existência foi discutida em dois ou três livros de sucesso nas duas ou três línguas que contam, à exceção, é óbvio, do latim falado no Vaticano e arredores.

Existência ou não de uma entidade superior é assunto que já não consta de minha pauta de preocupadas indagações há muito tempo. Claro que existe. Tem uma voz possante em câmara de eco e é maior que Godzilla e King Kong brincando de cavalinho. Deus apareceu várias vezes em alguns dos meus episódios favoritos de Os Simpsons.

Assim como Joana Do Arco ouviu vozes, eu vi, guerreiros, eu vi. Eu vi Deus participando da série, assim como aqueles macaquinhos que a família "trapíssima" veio a encontrar no Rio. Eu vi Deus nos Simpsons e acreditei. Acreditei em Deus assim como em todos os outros astros convidados e não dublados em português do Brasil: de Michael Jackson a Alec Baldwin e Kim Basinger.

Impossível qualquer tentativa de descrença. Deus existe e frequenta a série criada pelo esplêndido Matt Groening. Estabelecido isso, o que mais pode nos oferecer a ciência? Bem, desfazer alguns mitos é uma boa para se atravessar o ano. Mais lógico do que se vestir de branco e ir jogar flores brancas nas águas da orla marítima carioca para agradar uma entidade de origem nigeriana, a popular orixá iemanjá.

Por essa magnífica empreitada, vale a pena, na noite do 31, enfrentar os macaquinhos que infernizaram a vida de Homer, Marge e Bart. Os tambores e os fogos de artifício também ajudam nessa curiosa experiência religiosa místico-carnavalesca-candomblesiana-ortodoxa. Sim, sim, mas e os outros mitos?

Bom, a ciência deixou de lado Deus e iemanjá e proclamou, além das virtudes de um alcacelça no primeiro dia do ano, que ler no escuro não faz mal nenhum aos olhos. Provar? Isso fica para o ano. Acrescentou a ciência que essa mania de beber água o tempo todo, como se fosse coisa salubérrima, é pura embromação daqueles que querem – aqui estão minhas flores brancas, Sá Dona Iemanjá – pegar alguns trocados de nosso rico dinheirinho.

Todos os bancos de dados de todos os redutos científicos proclamam essas verdades como absolutas. Nenhuma pesquisa médica, a sério ou de sacanagem, provou coisíssima alguma. Quem o diz é o British Medical Journal em artigo da autoria de Aaron Carroll e Rachel Freeman, minha dupla dinâmica para 2008. Que aliás, pensando bem, também não provam nada. São bons de afirmações vagas como as cartomantes da rua do Catete.

Vão além os dois e desfazem – do verbo "desfazer", conforme conjugado por eles – outras lendas. Nem os cabelos nem as unhas crescem depois que a gente morre. Portanto, a vaidade, juntamente com tudo mais, inclusive os olhos azuis e o nariz arrebitado, se vão para sempre deste mundo descontentes.

Nossos cérebros? De pouca valia, conforme o atestam alguns milhões de anos de nossa história. Não exageremos pois afirmando que só usamos 10% dos 100% de suas possibilidades. Não, não. Somos burregos mesmo. Einstein e a mais recente senhorita nua em pelo (cada vez menos pelo) da revista masculina usam o máximo que podem de sua matéria cinzenta. Ponto.

Inclusive, cientista e miss podem ler à vontade no escuro. Não faz mal nenhum. É apenas mais difícil. Se Einstein raspava o cabelo das pernas, não sei. Nem de qualquer outra parte de seu corpito. Sei que as misses raspam, das pernas, e mais, muito mais, estou cansado de saber, tendo constatado mediante folhear desinteressado das tais revistas.

Não é verdade que mesmo a depilação, o brazilian, aquela aparação praieira, faça os cabelos crescerem mais rápido e mais ásperos. As misses que não se preocupem, como Einstein, que não se preocupou com seus 100% do uso de seu cérebro genial e não rapado.

E esse celular que você ganhou no Natal? Esse que lhe recomendaram que não fosse usado nos hospitais e suas imediações? Tolice. Fale besteira nele a seu bel-prazer. Tudo onda, inócua onda, nenhuma perigosa. Chata sim, perigosa não.

Quanto ao peru deglutido no Natal, aquele que você jura que lhe deu um bruta sono? Tudo na sua doentia cabeça, companheiro. Peru não dá sono. Dormem o sono eterno cercado de iguarias e muito vinho fraquinho, mas não dão sono. Mesmo. Juro pelo meu exemplar do British Medical Journal fazendo uso dos mesmos 100% de minhas faculdades mentais, exatamente como fazia o querido Einstein.

Feliz ano novo. Cuidado ao jogar as flores brancas nas ondas do verde-mar. Parece que se no meio for uma rosa vermelha, ou mesmo amarela, é azar para o ano inteiro. Isso é um fato científico.

(Publicado na BBC Brasil em 31 de dezembro de 2007)